Opinião

A inconstitucionalidade voluntariosa e a norma oculta

Autor

  • Eugênio Pacelli de Oliveira

    é advogado doutor em Direito pela UFMG ex-Procurador-Regional da República no Distrito Federal e relator-geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal instituída pelo Senado da República.

15 de maio de 2020, 14h03

Sabemos todos a clareza do texto do artigo 37, §6º, da Constituição da República, que prevê a responsabilização do Estado (também) pelos danos causados por seus agentes, garantido o direito de regresso contra o servidor que tenha agido com culpa ou dolo.

Consta na LINDB, com as alterações da Lei 12.376/10 e, sobretudo, da de nº 13.655/18, que "na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados" (artigo 22, caput), e que o agente público "responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro" (artigo 28).

Eis que chega a Medida Provisória 966, de 13 de maio último, para dispor sobre a responsabilização de agentes públicos por ação ou omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19.

Dando de barato a viabilidade do instrumento normativo escolhido, dado que não conseguimos atinar para a urgência (artigo 62, CF) de modificação das regras vigentes (dolo ou culpa), cabem algumas considerações sobre a tal MP, sobre a norma oculta ou misturada que veio dali, e, segundo nos parece, carregada de inconstitucionalidade.

Anote-se, para logo, que o critério de cronologia na vigência de normas legais não permitiria a invalidação de sanções por atos praticados antes da nova regra, na medida em que não se estaria falando em abolitio criminis e tampouco de Direito Penal, quando, por muito mais razões, seria incabível a edição de MP.

Se estiver correta essa premissa, a aludida medida provisória traz também uma confissão de responsabilidade anterior, por atos manifestamente contrários às soluções técnicas defendidas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde, no que toca à recomendação da política de distanciamento social como prevenção de expansão da Covid-19. Isso a despeito e tudo bem considerado dos efeitos obviamente deletérios na economia mundial.

Estamos a dizer, então, da canhestra (passe o eufemismo) tentativa de legitimar, como excludente de responsabilidade administrativa e civil, ações ou omissões que se declarem fundadas no combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19 (artigo 1º, II, MP 966).

A ver com olhos a tal norma o resultado seria: tudo que eu fizer motivado pela preservação da economia, incluindo a abertura ampla e irrestrita de todos os estabelecimentos de produção e de consumo, estaria excluído do dolo ou do erro grosseiro.

Ocorre que o Brasil adota a política pública do distanciamento social, independentemente de saber os riscos à economia. Essa é a decisão técnica, que sequer poderia ser questionada como grosseiramente equivocada, por se encontrar atrelada ao governo federal e se encontrar na mesma linha decisória de quase todos os países do mundo, além da OMS.

Aquele administrador ou membro do Executivo que descumpre as normas e diretrizes do Ministério da Saúde atua com dolo. Se o particular abrir seu comércio, em favor da preservação da economia, caberá discutir o âmbito de sua responsabilização pelo poder público. Mas não é disso que estamos a tratar.

O chefe do Executivo confessa, então, que todos os atos de combate aos efeitos sociais e econômicos praticados por agentes públicos, antes da MP 966, eram (e ainda são) manifestamente ilegais! E passíveis de responsabilização!

Mas a tal MP tem outro propósito e não teme as respostas da lei e do Direito. Está se preparando para outra política pública na Saúde.

Ao acabar esse texto, a imprensa informa o pedido de demissão do ministro da Saúde. Essa, a pedido mesmo.

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    é mestre e doutor em Direito. Advogado, ex-procurador regional da República no Distrito Federal. Relator-Geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal, instituída pelo Senado da República.

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