Direito Civil Atual

A proteção e a responsabilidade do agente público de tempos de Covid-19

Autor

  • Reinaldo Couto

    é procurador-chefe da União na Bahia advogado da União e professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado da Bahia.

15 de maio de 2020, 14h17

A convite do professor associado da USP Otavio Luiz Rodrigues Júnior, que conduz diversos projetos exitosos, entre eles esta prestigiosa coluna de "Direito Civil Atual", na ConJur, passa-se a analisar a edição da Medida Provisória (MP) nº 966, de 13 de maio.

ConJur
São Tomás de Aquino estudou de maneira profunda a prudência, aduzindo que:

Há três atos de razão referentes ao agir humano: o primeiro, deliberar; o segundo, julgar; o terceiro, comandar. Os dois primeiros correspondem a atos do intelecto especulativo, que são inquirir e julgar, pois a deliberação é um tipo de inquirição. Mas o terceiro é próprio do intelecto prático, enquanto operativo, porque a razão não pode comandar o que não pode ser feito pelo homem. […] Portanto, […] à prudência, como virtude principal, se ligam, como virtudes secundárias, eubulia, que ajuda a bem deliberar, mais synesis e também gnome, partes da potência judicativa[1].

A responsabilidade, ao contrário do que a maioria dos doutrinadores de Direito Administrativo pensa, tem a sua origem no Direito Civil e, ainda hoje, são as bases normativas deste Direito que justificam a responsabilidade civil do agente público perante o Estado.

Nada mais justo, portanto, do que relembrar São Tomás de Aquino e reverenciar o Direito Civil.

Inicialmente, faz-se necessário deixar claro que neste artigo não se aborda a responsabilidade civil do Estado trazida pelo §6 do artigo 37 da CF/88, pois a Medida Provisória n. 966, de 13.5.2020, trata da responsabilidade do agente público perante o Poder Público nas demandas de regresso e na esfera funcional.

Neste artigo, apesar de a MP tratar de todos os agentes públicos, tomar-se-á como referência de corte uma espécie de agente público: o servidor público federal.

Não há falar, conforme já decidiu o STF no Recurso Extraordinário 1.027.633/SP, na possibilidade do cidadão ajuizar diretamente ação indenizatória ou qualquer outra relacionada à reparação diretamente contra o agente público, fazendo-se necessário o ajuizamento contra a pessoa jurídica de direito público da qual ele faz parte, a fim de que, se condenada a pessoa jurídica e constado o dolo ou a culpa, seja descontado o valor ou ajuizada ação contra o agente público pelo Poder Público (Direito de Regresso). Trata-se do princípio da dupla proteção.

O agente público ficará protegido das ações temerárias que tenham como objetivo minar a sua imparcialidade na atuação e o cidadão ficará protegido, pois, ainda que o patrimônio do preposto do Estado seja insuficiente para cobrir os seus prejuízos, o do Estado, certamente, não o será.

Ora, o direito de regresso do Poder Público contra o agente público, por mais incrível que pareça, não é tratado pelo Direito Administrativo e sim pelo Direito Civil e com base na análise da existência de prudência ou não na atuação daquela pessoa física que representa ou presenta o Estado.

Não é o §6º do art. 37 da CF/88 nem são as regras dos art. 121 a 182 da Lei n. 8.112/90 que tratam da responsabilidade civil do agente público perante o Estado nas demandas regressivas e sim os art. 186 e 187 c/c o art. 927 do CC[2].

O Direito Civil é o instrumento que assegura a análise subjetiva da conduta que deve ser pautada na prudência tomista, na perícia,na devida atenção e na ausência de dolo.

Já a responsabilidade administrativa dos servidores públicos federais é tratada pela Lei n. 8.112/90. As esferas cível e administrativa são independente e podem coexistir, na forma do art. 125 da mencionada lei. E o agente público também responderá pelo ilícito funcional.

Feita essa introdução, tem-se que, em 13.5.2020, foi editada a Medida Provisória n. 966, cujo objeto é dispor sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19.

Aquele repositório normativo deixa claro que trata de dois tipos de responsabilidade, quais sejam: a civil e a administrativa.

O seu artigo 1º já começa exigindo não apenas a culpa simples, pautada na imprudência, negligência ou imperícia, mas imputando responsabilidade civil ou administrativa somente no caso de erro grosseiro e dolo.

A pandemia declarada pela OMS com base nos critérios do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005, exige, de fato, uma mitigação das responsabilidades civil e administrativa dos agentes públicos, visto que a excepcionalidade que lhe é inerente reduz a capacidade humana de exercer o seu ofício com a prudência descrita pelos tomistas.

O ser humano, em condições normais, é falível, comete diversos erros, sendo certo que deve ser adotada em relação aos agentes públicos a Teoria dos Riscos da Atividade Administrativa.

Assim como, no Direito do Trabalho, existe a Teoria do Risco da Atividade Econômica, existe também, no desempenho da atividade estatal, o Risco da Atividade Administrativa.

Os agentes públicos são seres humanos suscetíveis a índices aceitáveis de erros que podem ser extraídos de uma média de falhas cometidas em uma determinada atividade durante um período.

Esses índices de erros não podem ser imputados aos agentes públicos, portanto fazem parte do Risco da Atividade Administrativa imputável ao Poder Público que se utiliza de seres humanos, falíveis por natureza, para a consecução dos seus fins.

A responsabilidade administrativa apresentada pelas regras da Lei n. 8.112/90 e a responsabilidade civil do agente público dos art. 186 e 187 c/c o art. 927, todos do CC, não consideraram as variações do Risco da Atividade Administrativa. Por isso, veio a Medida Provisória em estudo para afirmar que o risco aumentou[3] e que esse aumento deve ser suportado pelo Estado e não pelo servidor público.

O seu texto é bem curto e elucidativo em relação a essa escolha. In verbis:

Art. 1º Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:

I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e

II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.

§1º A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:

I – se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou

II – se houver conluio entre os agentes.

§2º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.

Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:

I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;

II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;

III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;

IV -as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e

V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia dacovid-19e das suas consequências, inclusive as econômicas.

Art. 4º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.

Mitigou-se claramente a culpa, exigindo-se a culpa qualificada pelo erro grosseiro com elevado grau de imperícia, imprudência e negligência para a responsabilização, impediu-se a responsabilização automática, relativizou-se o nexo de causalidade e foram listados elementos contextuais para a caracterização do erro grosseiro.

Dessa forma, Kant deve ter sido lembrado pelos redatores da MP em estudo, pois o ser humano é um fim em si mesmo e falha constantemente. O Poder Público não pode esquecer que os seus agentes públicos não são máquinas programadas para o desempenho das atividades estatais e que os erros pautados no critério do homem médio fazem parte do seu Risco da Atividade Administrativa.

Por fim, deve ser agradecida a ajuda dos colegas Vítor Cássio, João Dourado, Rogério Costa, Daniel Carvalho e da colega Wedja Bezerra, membros do Grupo de Estudos sobre Esgotamento da Instância Administrativa da Universidade do Estado da Bahia, e deve ser dito que o presente texto foi elaborado com base na liberdade de cátedra estabelecida nos incisos II e III do art. 206 da CF/88 e apenas, e tão somente, no exercício do cargo público de docente.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] Suma de Theologia. Iª-IIª, q. 57, a. 6

[2]COUTO, Reinaldo. Curso de direito administrativo / Reinaldo Couto. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

[3]BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade / Ulrich Beck; tradução Sebastião Nascimento. 2. ed. (2011), 2. reimpr. (2016). São Paulo: Editora 34, 2016.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado da Bahia, advogado da União, ex-secretário do Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal.

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