Opinião

Os efeitos da pandemia da Covid–19 nas conciliações trabalhistas

Autor

  • Deives Fernando Cruzeiro

    é juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

15 de maio de 2020, 17h03

A pandemia da Covid–19 não somente atingiu o sistema de saúde, seus prejuízos irradiaram-se para diversos setores, como a economia, e, inevitavelmente, alcançaram as relações de trabalho. Originariamente, o debate jurídico sobre as consequências trabalhistas da pandemia convergiu para eventual caracterização de "fato do príncipe" ou de força maior, na medida em que referidos institutos relacionam-se com os contratos de emprego potencialmente atingidos pelas medidas de quarentena.

Entretanto, as consequências trabalhistas da Covid–19 afetaram as relações jurídico-processuais. As implicações da pandemia no âmbito processual não se limitaram à suspensão dos prazos processuais ou das audiências trabalhistas (Resolução nº 313/CNJ e Ato Conjunto CSJT.GP.VP e CGJT. nº 001/2020), haja vista que as obrigações ajustadas pelas partes no âmbito da relação processual também passaram a ser objeto de questionamentos, por exemplo, as conciliações pendentes de cumprimento.

Formularam-se requerimentos no bojo dos processos trabalhistas a fim de que os vencimentos das parcelas de conciliação fossem postergados, de que os termos da conciliação fossem redefinidos ou de que a cláusula penal deixasse de ser aplicada. Evidentemente que o juiz do Trabalho, lidando diuturnamente com a seara eminentemente social do Direito, não pode ser alheio à situação excepcional causada pela Covid-19, mas toda deliberação jurisdicional deve respeitar os institutos jurídicos e, em especial, as normas constitucionais.

A decisão jurisdicional que homologa conciliação trabalhista é imbuída de irrecorribilidade pelas partes (artigo 831, parágrafo único/CLT). Em razão dessa qualidade, a decisão homologatória de conciliação transita em julgado no momento da homologação (Súmula nº 100, V/TST).

Logo, a formação da coisa julgada (artigo 5º, XXXVI/CF) impede que os termos da conciliação sejam alterados autônoma e unilateralmente pelo juiz do Trabalho.

Ademais, ainda que o TST (Súmula nº 259/TST) entenda que a ação rescisória corresponde à via processual adequada para desconstituição do termo de conciliação, o corte rescisório pressupõe existência de vício na decisão rescindenda (artigo 966/CPC). Porém, eventual pretensão de alteração dos termos da decisão homologatória de conciliação por força da Covid–19 ampara-se nas consequências advindas da pandemia e, por isso, não se refere a qualquer vício do ato jurisdicional suscetível do corte rescisório.

Amparando-se no trânsito em julgado da decisão homologatória de conciliação, poder-se-ia argumentar que os termos ajustados na conciliação poderiam ser objeto de revisão (artigo 505, I/CPC). A previsibilidade processual da revisão enseja alteração das circunstâncias de fato ou de direito existentes à época do proferimento da decisão jurisdicional.

Contudo, as circunstâncias de fato ou de direito suscetíveis de revisão correspondem àquelas que foram objeto de definição na sentença. A sentença homologatória de conciliação não implica análise do mérito pelo juízo trabalhista e, por isso, não existe definição de situação de fato ou direito. Portanto, entende-se que o instituto da revisão (artigo 505, I/CPC) é inaplicável à hipótese de alteração dos termos da conciliação trabalhista.

Com efeito, a conciliação trabalhista trata-se de solução protagonizada pelas partes e advogados, haja vista que o juiz do Trabalho atua unicamente fazendo ponderações acerca dos riscos processuais e das possibilidades conciliatórias. Nesse contexto, a repactuação das condições da conciliação depende de deliberação conjunta dos litigantes por força do instituto da novação (artigo 360, I/CC).

Relativamente à eventual cláusula penal estabelecida por ocasião da conciliação trabalhista homologada, sua incidência também tem sido objeto de debates. Inclusive há afirmação de que a situação de força maior (artigo 1º, parágrafo único da Medida Provisória nº 927) autorizaria a exclusão da multa pelo inadimplemento do pacto trabalhista (artigo 537, §1º/CPC). Todavia, o instituto trabalhista da força maior previsto legalmente (artigo 501/CLT) não implica isenção de pagamento de títulos, mas unicamente redução da parcela devida (artigo 502/CLT).

Além disso, o dispositivo processual que prevê exclusão da medida pecuniária (artigo 537, §1º/CPC) está inserto no capítulo relativo ao cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer. Portanto, o conteúdo ali tratado corresponde a meio coercitivo de cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer, logo, consiste em astreintes.

As astreintes possuem natureza eminentemente processual e, por isso, esse regramento do Código de Processo Civil (artigo 537, §1º/CPC) não se confunde com a cláusula penal fixada na conciliação trabalhista de natureza material em razão de corresponder a obrigação acessória que visa a garantir o adimplemento da obrigação principal e a definir antecipadamente as perdas e danos advindos do descumprimento da avença (artigo 411/CC). Além disso, em se tratando de cláusula penal, o ordenamento jurídico não prevê a possibilidade de sua exclusão nas hipóteses de descumprimento da obrigação por culpa do devedor, mas somente de sua flexibilização a depender da natureza e finalidade do negócio jurídico entabulado (artigo 413/CC).

A exclusão da cláusula penal é prevista nas ocasiões em que o descumprimento da obrigação não derive de culpa do devedor (artigo 408/CC). Esse dispositivo civilista decorre da pressuposta isonomia entre os contratantes nas relações civis e é preciso ser reanalisado a partir do prisma trabalhista que trata da disparidade entre as partes e da assunção dos riscos do negócio pelo empregador (artigo 2º/CLT).

Em verdade, a pandemia da Covid–19 corresponde à situação imprevista e excepcional. Contudo, o ordenamento jurídico é construído prevendo a normalidade e, também, prevendo a excepcionalidade, por exemplo, ao tratar do estado de defesa (artigo 136/CF) e do estado de sítio (artigo 137/CF).

No âmbito trabalhista, as situações excepcionais e de crise são igualmente reguladas, por exemplo, redução salarial mediante negociação coletiva (artigo 7º, VI/CF) ou suspensão contratual para qualificação profissional (artigo 476-A/CLT). Logo, argumentos de que a situação de exceção possibilitaria medidas de Direito e processuais excepcionais são contrários às cláusulas pétreas de proteção à legalidade (artigo 5º, I/CF), ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (artigo 5º, XXXV/CF) e igualmente contrários aos propósitos do constituinte originário que procurou garantir a estrutura jurídico-constitucional inclusive em momentos de crise.

Referência bibliográfica

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2012.

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    é juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

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