Opinião

A MP 966: entre a sanha persecutória e a isenção de responsabilidade

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14 de maio de 2020, 21h02

Um de nossos maiores publicistas, o professor Geraldo Ataliba, pontificava: "Regime republicado é regime de responsabilidade". Nesses termos, a responsabilidade se colocaria como uma contrapartida às prerrogativas de que são investidos os agentes públicos. De acordo com o ilustre jurista "os agentes públicos respondem pelos seus atos. Todos são, assim, responsáveis" [1]. De modo que, segundo lição de outro preclaro jurista, Dalmo Dallari, 'todos os que agirem, em qualquer área ou nível, como integrante de algum órgão público ou exercendo uma função pública devem ser juridicamente responsáveis por seus atos e omissões" [2].

Por isso, para não deixar dúvidas, a Constituição Federal, no artigo 37, § 6º, estabelece que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão por danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurados o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" (grifos dos autores). Portanto, o Estado, pessoa jurídica, responderá objetivamente pelos atos praticadas por seus agentes e, no exercício de ação de regresso, buscará o ressarcimento pelos valores dispendidos junto ao agente público que tenha agido deliberadamente ou de modo reprovável contra a ordem jurídica. Há, pois, conforme lição do ilustre jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, "expressa previsão de retorno da pessoa de Direito Público ou de Direito Privado prestadora de serviço público contra o agente causador do dano uma vez ocorrentes os seguintes requisitos: a) tenham sido condenadas a indenizar terceiro por ato lesivo do agente; e b) o agente responsável haja se comportado com dolo ou culpa" [3].

Não é por outra razão que, com exceção dos governantes, os demais agentes públicos mantém vínculos com a Administração Pública de natureza profissional baseados em suas habilidades técnicas comprovadas por meio de aprovação em concursos públicos para ocupar cargos de provimento efetivo ou presumidas pela nomeação deles para ocupar cargos de livre provimento, cuja escolha deve basear-se nas qualidades e habilidades técnicas e profissionais do escolhido (CF, artigo 37, II). Busca-se, com isso, a profissionalização dos agentes públicos para que os assuntos públicos, o manejo de competências públicos e a tomada de decisões sejam exercidos por pessoas altamente qualificadas.

Por outro lado, não obstante os cuidados tomados pelo texto constitucional no sentido de profissionalizar o exercício das distintas competências públicas, mesmo assim, são bastante conhecidos os casos, sobretudo nos últimos anos, de violações à ordem jurídica no exercício da atividade administrativa ativa, embora se reconheça, também, um certo exagero no exercício da atividade controladora a justificar um fundado receio de responsabilizações indevidas de agentes públicos probos.

No entanto, nunca é demais insistir: nos quadros de uma democracia constitucional, nenhum agente público está acima da ordem jurídica, ou seja, isento de responsabilidade. Por isso, causou-nos espanto a publicação da Medida Provisória nº 966/2020, que tratou de restringir o exercício de regresso por parte da Administração Pública contra o agente público faltoso ao dispor que nos casos relacionados direta ou indiretamente com medidas de enfrentamento da emergência da Covid-19 ou no combate aos seus efeitos econômicos ou sociais, a responsabilização somente ocorreria nos casos de dolo ou culpa grave, dando origem a um quadro de responsabilidade mitigada do agente público em situação de emergência, quando, na verdade, situações como a nossa, de pandemia, de urgência, de emergência, deveriam exigir do agente público justamente o contrário, ou seja, um regime de responsabilidade agravada para que ele, no exercício das respectivas competências públicas, tomasse, exclusivamente apoiado em informações suficientes disponíveis, medidas adequadas, necessárias e proporcionais à eliminação ou mitigação das consequências sanitárias, econômicas e sociais decorrentes da pandemia.

Parece-nos que, ainda que de forma involuntária, a referida medida provisória está na contramão da Constituição Federal e escolheu a ineficiência e a incompetência como critérios norteadores do exercício das funções públicas, pois só essa escolha justificaria o acolhimento de circunstâncias como a incompletude de informações como excludente ou mitigadora da responsabilização dos agentes públicos quando, como dito, no regime republicano de responsabilidade o que se espera dos agentes públicos é que eles tenham os predicados intelectuais e os conhecimentos científicos necessários para que exerçam as competências públicas em que foram investidos.

Saliente-se que em seu conteúdo a aludida medida provisória traz pequenas, mas decisivas, inovações em relação às recentes alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Muitos, apressadamente, têm dito que a medida provisória tem "mero efeito psicológico", "não introduz qualquer novidade", o que, ao nosso ver, não é verdade.

Dois dispositivos merecem especial atenção: os incisos III e V do artigo 3º da referida medida provisória, cujos termos seja-nos permitido transcrever:

"Artigo 3º  Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados: (…)
III a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;
(…)
V o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas".

Ambos nos remetem a dois traços salientes e notórios que marcam a estratégia de alguns dos poderes constituídos, notadamente o Poder Executivo federal, no tocante à pandemia da Covid-19: a falta de dados confiáveis, inclusive dos contaminados pelo vírus, e a subalternidade da vida à economia, ou, parafraseando a infeliz declaração de um empresário, a prevalência dos CNPJs sobre os CPFs.

Com base nesses dispositivos, a incompletude de informações afastaria o erro grosseiro, isentando, portanto, o agente público de responsabilidade. A "incerteza" das medidas mais adequadas ao enfrentamento da pandemia e das suas consequências, inclusive econômicas, também conduziria à irresponsabilidade do agente público.

Quer nos parecer que esses dispositivos, conjugados, reforçam os argumentos daqueles que, segundo a revista médica britânica The Lancet, representam a maior ameaça à luta contra o coronavírus no Brasil, isto é, aqueles que insistem em negar as opiniões científicas colocando parte dos órgãos públicos numa cegueira institucional nunca antes conhecida, em um momento tão grave.

Além disso, a Medida Provisória nº 966/2020, sob o aspecto formal, carrega uma evidente inconstitucionalidade. Como admitir, em um Estado de Direito, que um agente público amesquinhe a sua própria responsabilidade? Em outras palavras, a medida provisória se apresenta como veículo inadequado à disciplina da responsabilidade dos agentes públicos, em especial quando a Constituição Federal, como dito, no artigo 37, § 6º, tratou do assunto por completo.

Por todas essas razões, parece-nos que a medida provisória reclama um rigoroso exame de constitucionalidade, seja pelo Supremo Tribunal Federal, seja pelas casas legislativas.

 


[1] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, 2ª Edição, 3ª tiragem, p. 65.

[2] DALLARI, Dalmo. Constituição e Constituinte, 1982, p.30.

[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 34ª. Edição, Malheiros, p.1093.

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