Opinião

Atos antidemocráticos e crime de responsabilidade

Autor

  • Carlos Eduardo Ferreira dos Santos

    é mestrando em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) mestre em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha) integra o grupo “Estado Instituciones y Desarrollo” da Asociación Latinoamericana de Ciencia Política e o comitê de pesquisa “Systèmes judiciaires compares” da Association Internationale de Science Politique.

14 de maio de 2020, 6h34

A democracia é um instrumento inafastável para a realização de valores essenciais de convivência humana, sendo um valor estampado nos direitos fundamentais do homem [1]. No regime democrático, o povo conjunto de cidadãos atribuídos ao direito de tomar decisões coletivas em última instância é o titular do poder político [2]. Consoante lição de Montesquieu, "tudo estaria perdido se o mesmo homem exercesse os três poderes, o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes" [3].

De fato, nos últimos dias, o país tem assistido de forma estarrecedora a atos antidemocráticos e inconstitucionais realizados pelo chefe do Poder Executivo. Não bastassem a grave crise mundial decorrente da pandemia da Covid-19 e o descumprimento de não realização de atos que gerem aglomeração de pessoas, exsurge propalação de ideias notoriamente contrárias a valores elementares da sociedade moderna, notadamente os princípios da democracia, da independência dos poderes e da liberdade cidadã.

Isso porque, descumprindo a recomendação internacional de isolamento social para evitar a propagação da Covid-19, entre outros acontecimentos, no dia 2 de maio o presidente da República participou de manifestação pública na Explanada dos Ministérios. No evento, além de ter ocorrido violência a profissionais da imprensa, havia faixas com mensagens contra o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, fazendo-se menção às Forças Armadas [4]:

"Tenho certeza de uma coisa, nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, e pela liberdade. E o mais importante, temos Deus conosco", disse no Palácio do Planalto, enquanto acenava para manifestantes que o apoiavam e criticavam o STF e o Congresso. Ao final, o presidente disse: "Peço a Deus que não tenhamos problemas nesta semana. Chegamos ao limite, não tem mais conversa, daqui pra frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição, ela será cumprida a qualquer preço, e ela tem dupla mão".

O fato ocorrido que se contrapõe à democracia, à liberdade de imprensa e ao livre exercício dos poderes  foi de tamanho destaque que repercutiu inclusive na seara internacional, a exemplo da reportagem do jornal espanhol El País [5], que noticiou:

"Mientras, Bolsonaro ha vuelto a participar este domingo en una protesta contra el Supremo Tribunal Federal y el Congreso. “No vamos a admitir más interferencias. Se nos acabó la paciencia”, ha dicho allí ante una multitud de seguidores que incumplían las normas más básicas para evitar los contagios de coronavirus. Varios periodistas han sido agredidos".

O valor essencial da democracia não pode ser transgredido nem malferido por um pequeno grupo de pessoas que não representam, majoritariamente, o ideal de uma sociedade livre e do regime democrático. Norberto Bobbio já advertia: "A vulnerabilidade da democracia dependeria da fragmentação do poder que permite que pequenos grupos organizados desfiram golpes mortais na sociedade" [6].

Com efeito, atos públicos que "desfiram golpes mortais na sociedade" devem ser peremptoriamente rechaçados, não sendo tolerados, mormente quando praticado pelo presidente da República. Atos dessa natureza violam, de maneira explícita, a lei e a Justiça. Sobre isso, Aristóteles já alertava que o homem "quando apartado da lei e da justiça, é o pior de todos; uma vez que a injustiça armada é a mais perigosa, e ele é naturalmente equipado com braços, pode usá-los com inteligência e bondade, mas também para os piores objetivos" [7].

Afora o excesso de manifestação de pensamento contrário aos princípios encartados na Constituição Federal de 1988, atos antidemocráticos e inconstitucionais praticados pelo chefe do Poder Executivo podem ensejar a configuração de crime de responsabilidade. Consoante a doutrina [8], trata-se de "responsabilidade político-administrativa", sendo "singularizado como mecanismo processual de responsabilização dos agentes políticos no sistema de governo presidencialista". A natureza jurídica é entendida como "processo político" (Carlos Maximiliano); "processo penal" (Pontes de Miranda) ou "processo misto" (Celso Ribeiro Bastos).

Imperioso registrar que artigo 85 da Carta Magna estabelece que o presidente da República responde por crimes de responsabilidade, especialmente atos contra o livre exercício dos poderes; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a probidade da administração, entre outros. Nesse sentido, a Lei nº 1.079/50 regula a matéria, dispondo que:

"Artigo 7º  São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social;

violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do artigo 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição; (Refere-se à CF/1946)

Artigo 9º — São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

7 proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".

Disso resulta que se afigura necessário o controle de atos emanados de autoridades públicas, sobretudo quando se trata de governante máximo do país. O processo de responsabilização é uma forma de controle, dividindo-se o impeachment em duas fases. Na primeira, cabe à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração do processo (artigo 51, I, CF/88). Na segunda fase, cabe ao Senado Federal o processo e julgamento, sob a direção do presidente do Supremo Tribunal Federal (artigo 52, I c/c parágrafo único, CF/88). Em caso de condenação, a sanção consiste na perda do cargo, com inabilitação por oito anos para o exercício da função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (artigo 52, parágrafo único da CF/88).

O escopo da persecução por crime de responsabilidade é que os atos dos governantes mantenham os valores fundantes da sociedade, sendo inafastável a democracia. Sólon [9] pontificava que:

"O bom governo tudo torna bem ordenado e composto, suaviza as asperezas, põe fim à insaciedade, domestica a violência, seca ainda em seu despontar as flores da loucura, mitiga as obras da soberba, apaga as ações das divisões discordes, abranda a ira da contenda funesta, abaixo dele todas as coisas são bem reguladas e sábias".

Assim, necessária a união da sociedade, bem como a atuação dos poderes da República, para salvaguardar a democracia e o pleno Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput, CF/88), de modo a garantir o bem a todos e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I e IV, CF/88).

 


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p.114.

[2] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 32.

[3] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 168.

[4] FOLHA DE S. PAULO. Com declaração, Bolsonaro busca respaldo nas Forças Armadas para reagir ao STF. Acesso em 4/5/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/com-declaracao-bolsonaro-busca-respaldo-nas-forcas-armadas-para-reagir-ao-stf.shtml

[5] EL PAÍS. El Periódico Global. Internacional. El exministro Moro presenta pruebas sobre la injerencia de Bolsonaro en la Policía Federal. Acesso em 4/5/2020. Disponível em: https://elpais.com/internacional/2020-05-03/moro-presenta-audios-y-mensajes-a-la-policia-como-prueba-de-que-bolsonaro-intento-interferir-en-el-cuerpo.html

[6] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. A filosofia Política e as Lições dos Clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, pg. 383.

[7] ARISTÓTELES. Política. Livro I. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 147.

[8] PEÑA DE MORAES, Guilherme. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 485-487.

[9] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. A filosofia Política e as Lições dos Clássicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, pg. 205-206.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico, membro consultor da Comissão Especial de Direito Penal Econômico do Conselho Federal da OAB, integrante do grupo "Estado, Instituciones y Desarrollo", da Asociación Latinoamerica de Ciencia Política, e do comitê de pesquisa "Systèmes judiciaires compares", da Association Internationale de Science Politique, e mestrando em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha).

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