Olhar econômico

Vale-pedágio antecipado é proteção aos caminhoneiros autônomos

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

14 de maio de 2020, 8h00

Spacca
Ajuizada, em outubro de 2018, pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), a ADI 6.031 foi julgada, em sessão virtual, pelo STF em março de 2020 e volta, nesta semana, à pauta da Corte Suprema. Ela analisará Embargos de Declaração, visando aclarar a decisão que julgou constitucional o art. 8º da Lei 10.209/20018; entendendo ter sido ela criada para proteger o caminhoneiro autônomo (parte vulnerável da relação); não tendo, contudo, afastado a extensão indevida da norma aos contratos com transportadoras profissionais (empresas em que está ausente o requisito de vulnerabilidade). Embora, normalmente, julgamentos de Embargos de Declaração não suscitem grande interesse, devido a seu pouco alcance, não é o caso do presente.

A Lei Federal 10.209, de 23 de março de 2001, transferiu ao contratante — i.e. ao embarcador ou a ele equiparado [1] — a responsabilidade pelo pagamento antecipado do pedágio do transportador autônomo, a ser feito separadamente (em documento próprio) e de forma discriminada do valor do frete. Ficou assim instituído o denominado “Vale-Pedágio obrigatório” sobre o transporte rodoviário de carga.

Perquirindo-se os motivos da edição da lei, chega-se a um objetivo principal e outro secundário. O principal é dar vazão às reivindicações dos transportadores autônomos — pessoas físicas, proprietárias ou coproprietárias de um só veículo, sem vínculo empregatício [2] — parte mais vulnerável da relação de transporte [3], que culpavam a prática de embutir o custo do pedágio no valor do frete pela redução de sua remuneração final. O secundário era fomentar a receita nas vias pedagiadas, eliminando-se as “‘fugas’ desnecessárias e antieconômicas usualmente praticadas pelos caminhoneiros, que redundavam, de um lado, em evasão de receitas; e, de outro, contribuía para deteriorar as estradas das municipalidades situadas ao longo das chamadas ‘rotas de fuga’” [4] não preparadas para tal espécie de tráfego.

O enforcement da norma ancorou-se em pesado sancionamento: o descumprimento da obrigação de antecipação do valor do pedágio importando no pagamento de indenização ao transportador “em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete” (e não do pedágio!) — art. 8º —, o que deságua não raro em indenizações altíssimas (na verdade, multas); dezenas de vezes maior do que o valor que deixou de ser antecipado.

Respeitando os méritos da legislação em comento quanto aos seus propósitos, sobretudo na proteção dos autônomos, muitos foram os reclamos e as decisões do Judiciário atribuindo caráter confiscatório a essa sanção. Sua reconhecida exorbitância resultou quer em sua cassação, quer em sua redução pelo Juiz. Nesse sentido:

“A fixação da cláusula penal não pode estar indistintamente ao alvedrio dos contratantes, já que o ordenamento jurídico prevê normas imperativas e cogentes, que possuem a finalidade de resguardar a parte mais fraca do contrato, como é o caso do artigo 412 do CC/2002.

Embora não haja a possibilidade de determinar a exclusão da multa, pois isso descaracterizaria a pretensão impositiva do legislador, é cabível a aplicação do acercamento delineado pelo art. 413 do Código Civil, no qual está contemplada a redução equitativa do montante, se excessivo, pelo juiz, levando-se em consideração a natureza e a finalidade do negócio jurídico.” (REsp 1520327/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/05/2016, DJe 27/05/2016).

Infelizmente, houve também posicionamentos pela validade de tais multas, chancelando, portanto, a aplicação desproporcional do valor dobrado do frete como parâmetro de indenização. Ainda mais draconianas foram decisões aplicando a multa a toda e qualquer contratação, inclusive em se tratando de embarcadores e grandes transportadores (pessoas jurídicas com ampla frota e atividade profissional), sem qualquer envolvimento do “caminhoneiro autônomo” protegido pela norma.

Face a isso, a CNI ajuizou a ADI 6.031, acima noticiada, questionando a constitucionalidade do art. 8.º da Lei 10.209/2001, que resultou no reconhecimento de sua constitucionalidade, nos termos do voto da relatora ministra Carmen Lúcia, vencido o ministro Gilmar Mendes [5]. Ressalte-se, entretanto, que a ministra relatora enfatizou, em seu julgamento a mens legis, ou seja a necessidade de proteger o caminhoneiro autônomo, parte vulnerável na relação:

“O objetivo da criação da norma em análise seria atender a reivindicações dos caminhoneiros autônomos, consistente na desoneração do transportador ao pagamento do pedágio, considerado que o custo do pedágio era de responsabilidade do transportador no momento da efetiva utilização das rodovias e recuperado quando da remuneração dos serviços executados porque integrava o frete realisticamente planilhado.

(…)

A opção política legislativa dirige-se a evitar comportamentos de transgressão à lei (penalidade administrativa) e de proteção ao transportador (penalidade indenizatória), parte vulnerável da relação estabelecida.”, por maioria,

Embora tenha destacado que a finalidade da multa é a proteção do caminhoneiro autônomo, parte vulnerável da relação — repita-se a mens legis —, a ministra deixou de aplicar o corolário lógico e necessário de que a norma não é aplicável aos contratos com transportadoras profissionais, em que está ausente o requisito da vulnerabilidade. Assim o fazendo: (i) interferiu, indevidamente, na relação entre partes empresárias, violando a livre iniciativa e a livre concorrência (CF, art. 1.º, IV e 170), por lhes ter imposto uniformização de aspectos contratuais (pagamento do pedágio e escolha de rotas), que constituem importantes diferenciais competitivos; e (ii) ter, indiretamente, estimulando a indústria da indenização; possibilitando a grandes transportadoras buscar enriquecimento por meio do Judiciário, alegando descumprimento de lei , cujo objetivo nunca foi esse.

Em última análise, Direito é lógica, equilíbrio e prudência; sendo vedado à hermenêutica de uma lei extrapolar sua finalidade. O próximo julgamento dos Embargos de Declaração dá ao Pretório Excelso a oportunidade de fazer valer no dispositivo do voto majoritário e, consequentemente no acórdão, algo que havia e ficou esquecido em sua respectiva fundamentação. Tal sob pena, de não o fazendo, perpetrar grande injustiça, ensejar oportunismos, além de elevar o já elevado custo Brasil. Isso é inadmissível, mormente em tempos de economia já conturbada pela pandemia.


[1] “Art. 1º Fica instituído o Vale-Pedágio obrigatório, para utilização efetiva em despesas de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário, nas rodovias brasileiras. § 1º O pagamento de pedágio, por veículos de carga, passa a ser de responsabilidade do embarcador. § 2º Para efeito do disposto no § 1º, considera-se embarcador o proprietário originário da carga, contratante do serviço de transporte rodoviário de carga. § 3º Equipara-se, ainda, ao embarcador: I – o contratante do serviço de transporte rodoviário de carga que não seja o proprietário originário da carga; II – a empresa transportadora que subcontratar serviço de transporte de carga prestado por transportador autônomo.

[2] Nos termos do art. 1º, da Lei nº. 7.290, de 19 de dezembro de 1984, “considera-se Transportador Rodoviário Autônomo de Bens a pessoa física, proprietário ou co-proprietário de um só veículo, sem vínculo empregatício, devidamente cadastrado em órgão disciplinar competente, que, com seu veículo, contrate serviço de transporte a frete, de carga ou de passageiro, em caráter eventual ou continuado, com empresa de transporte rodoviário de bens, ou diretamente com os usuários desse serviço.

[3] Nesse sentido, a Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 2.025-5, de 28 de Agosto de 2000 dispõe que “o vale-pedágio obrigatório será sempre antecipado ao transportador no valor necessário para a livre circulação entre sua origem e destino, viabilizando destarte à eliminação de ‘fugas’ desnecessárias e antieconômicas usualmente praticadas pelos caminhoneiros as quais representavam evasão de receitas para uns e encargos extremamente onerosos de manutenção de vias rodoviárias e acelerada deterioração destas para outros, notadamente, as municipalidades situadas ao longo das chamadas “rotas de fuga”.

[4] A Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 2.025-5, de 28 de Agosto de 2000 ainda esclarece que o objetivo da norma é transferir “o ônus do pagamento da tarifa de pedágio dessa categoria [transportadores] para o proprietário originário da carga, com forte repercussão sobre a negociação dos fretes pelos caminhoneiros.”

[5] Decisão: O Tribunal, por maioria, converteu o julgamento da medida cautelar em julgamento definitivo de mérito, conheceu da ação direta e, no mérito, julgou improcedente o pedido, para declarar constitucional o art. 8º da Lei n. 10.209/2001, nos termos do voto da Relatora, vencido o Ministro Gilmar Mendes. Não participou deste julgamento, por motivo de licença médica, o Ministro Celso de Mello. Plenário, Sessão Virtual de 20.3.2020 a 26.3.2020.

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    é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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