Opinião

Arbitragem e o Provimento 196/2020 da OAB: o fim de uma saga?

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14 de maio de 2020, 12h03

No Brasil, o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão é garantido constitucionalmente (artigo 5º, inciso XIII). A interferência do legislador nessa liberdade se justifica pela potencialidade de danos sociais decorrentes de seu exercício. Quando pensamos na medicina, por exemplo, a utilidade prática de normas limitadoras é facilmente verificada (sobretudo em tempos de pandemia).

Tendo por fundamento a habilitação técnica, a regulamentação de dado segmento econômico-profissional impõe restrições e, ao mesmo tempo, assegura prerrogativas aos profissionais que o integram. Os elementos diferenciais são a qualificação e o conhecimento.

Essa regulamentação das atividades profissionais é feita por diversos conselhos federais, encontrando previsão na parte final do dispositivo constitucional: "atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" (artigo 5º, inciso XIII). Pretende-se resguardar o indispensável domínio de conhecimentos técnicos e científicos para o exercício de algumas profissões. No caso da advocacia, a prerrogativa regulamentar é da OAB.

Entre suas competências, o Conselho Federal da OAB exerce funções típicas dos órgãos de classe e outras mais abrangentes. Afinal, em 2011, o STF decidiu ser a OAB entidade independente, sui generis, classificando a advocacia como serviço público de relevância social, com funções institucionais de natureza constitucional (ADI 3.026/DF, relator ministro Eros Grau).

Daí as atribuições do Conselho Federal para editar o Regulamento Geral, o Código de Ética e Disciplina e os Provimentos que regulam o exercício da advocacia. São delegações normativas que conferem competência privativa à OAB para disciplinar o exercício da profissão em âmbito nacional. Esta atuação institucional visa a resguardar a independência, as prerrogativas e a dignidade profissional da advocacia. Logo, todos os advogados devem obediência aos regulamentos da OAB: seus efeitos são erga omnes advocatorum.

Exemplo recente do exercício destas competências se deu com a edição do Provimento 196/2020, que "dispõe sobre o reconhecimento da atividade advocatícia decorrente da atuação de advogados como conciliadores ou mediadores, árbitros ou pareceristas e no testemunho (expert witness) ou no assessoramento às partes em arbitragem e dá outras providências".

Com caráter declaratório-interpretativo, o provimento: I) estatui como advocatícias as funções desempenhadas por conciliadores, mediadores e árbitros, sempre que exercidas por advogados; II) esclarece que a atuação de advogado em qualquer das funções referidas no parágrafo anterior não é estranha à advocacia e, portanto, não desnatura a prática da sociedade profissional da qual seja sócio; e III) estabelece que a remuneração percebida por conciliadores, mediadores e árbitros quando advogados ostenta natureza de honorários advocatícios, podendo ser recebida tanto pela pessoa física prestadora do serviço, quanto pela sociedade na qual esta figure como sócia.

Ao promover esse enquadramento, a OAB disciplina que os conhecimentos técnicos e científicos exigidos para o bom desempenho das funções nominadas no provimento integram o know-how e são próprios (ainda que não exclusivos) da advocacia. Tal ato constitui regulamento que disciplina o exercício da profissão. Os inscritos na OAB devem pautar sua conduta profissional com lastro nesse provimento, que lhes é vinculante: ao atuar nessas atividades, o fazem na condição de advogado.

Bem vistas as coisas, seu conteúdo é resposta à verdadeira cruzada tributária travada contra renomados advogados brasileiros, todos eles também árbitros, no intuito de incrementar a tributação dos honorários decorrentes desta função. Como nas melhores séries, a compreensão da saga exige breve retrospecto (quem pular o resumo não entenderá o episódio atual).

Na primeira temporada, em 2012 a Receita Federal pretendeu acessar dados de procedimentos arbitrais por intermédio das Câmaras de Arbitragem. Notificando a abertura de processos de fiscalização, a RFB — ignorando o dever de confidencialidade oponível às Câmaras solicitava a prestação de informações de terceiros, como nome das partes e dos árbitros, valores envolvidos nos procedimentos por si administrados, notas fiscais emitidas pelos árbitros e cópia (!) de todas as sentenças arbitrais proferidas desde 2008.

Na ocasião, preocupadas em proteger as cláusulas de confidencialidade de seus regulamentos, pelo menos três instituições (Camarb, CAM-CCBC e CBMA) impetraram mandado de segurança com vistas a reprimir o ato praticado pela RFB. Das câmaras notificadas, apenas uma franqueou o acesso. Vendo frustrada sua pretensão inicial em razão das ordens judiciais que consideraram ilegal a fiscalização e impediram a coleta forçada de informações dos procedimentos arbitrais, proibindo a imposição de qualquer punição contra as Câmaras (autos 0011011-83.2013.403.6100/JFSP; 0025812-68.2013.4.03.0000/TRF3 e 0017682-42.2013.4.02.5101/TRF2), o foco do órgão fazendário mudou.

O Fisco, então, inaugurou a segunda temporada, direcionando seus esforços a advogados que exercem a função de árbitro. Alegando que a arbitragem é atividade desenvolvida por pessoa física, a RFB deixou de homologar o recolhimento de impostos feito através da sociedade de advogados (que o árbitro integra na qualidade de sócio) e redirecionou a tributação.

Não bastasse as investidas da administração tributária federal, a terceira temporada foi marcada pelo ingresso de novo protagonista: o município de São Paulo. Ator coadjuvante até então, ingressou na trama para defender a exclusão das sociedades de advogados com atuação em arbitragem da tributação fixa do ISS (por suposta descaracterização da natureza uniprofissional). A administração tributária paulistana autuou diversas bancas que indicavam em seus respectivos websites prática em arbitragem.

Levado ao Poder Judiciário, o impasse foi neutralizado em sede recursal, restando mantido o enquadramento das sociedades advocatícias no regime de tributação específico, mesmo que um ou mais de seus integrantes estejam investidos na função de árbitro (TJ-SP, autos 2154733-26.2019.8.26.0000). Ainda que não guarde relação direta com o caso, vale mencionar que o STF já firmou entendimento a respeito do ISS aplicável à advocacia (RE 940.769).

Por fim, na mais recente temporada, o Carf definiu, por voto de qualidade, que honorários percebidos por advogados que funcionam como árbitros são rendimentos auferidos por pessoa física (Acórdão 2402-008.171, 2ª Seção de Julgamento/4ª Câmara/2ª Turma Ordinária, j. 3/3/2020). Para além da reclassificação, o Carf entendeu que o recolhimento de impostos feito através da sociedade de advogados é considerado indevido e não pode ser aproveitado para compensar eventuais débitos da pessoa física. A decisão ainda comporta recurso.

Perdida a batalha, mas não a guerra, a saga arrecadatória parece distante do fim. Mas fato é que o enredo perdeu consistência, antes denunciando o interesse na manutenção da franquia do que a criatividade dos roteiristas. Assim, sem adentrar no debate tributário, analisaremos os principais argumentos da fundamentação das decisões administrativas, à luz do Provimento 196/2020 do Conselho Federal da OAB. Em síntese, são duas teses.

O primeiro argumento pode ser assim sintetizado: para ser árbitro não é necessário ser advogado. Aqui, temos um problema de lógica: do fato de não ser necessária a qualificação de advogado para ser árbitro não implica a conclusão de que tais profissionais deixem de ser advogados mesmo na função de árbitros. Trata-se de uma falácia, um raciocínio incorreto, uma armadilha que subverte a lógica.

Muito antes do Provimento 196, o exercício da advocacia já contemplava funções variadas. Advogados, no desempenho de sua atividade profissional e empregando sua expertise jurídica, podem desenvolver múltiplas tarefas, inclusive algumas que não são privativas da advocacia.  

Para citar apenas um exemplo, a função de administrador judicial não é exclusiva de advogados. De acordo com a lei, pode também ser realizada por economistas, contadores e administradores de empresas (artigo 21 da Lei 11.101/2005). Ainda assim, quando desempenhada por profissional da advocacia, é uma das formas de exercício da atividade jurídica, pois as habilidades profissionais e o conhecimento especializado são os motivadores da nomeação pelo juízo.

O mesmo se diga de árbitros, mediadores e conciliadores, que representam a própria essência de instrumentos legitimados a assegurar a harmonização das vontades individuais e a realização da justiça mesmo fora do âmbito estatal. Sempre que as partes elegem um advogado, ele leva consigo essa condição e não poderia ser diferente: enquanto a função ocupada é temporária, a atividade exercida é permanente. Os advogados não são indicados por seus lindos olhos azuis, mas só e tão somente porque são advogados.

Pense-se num árbitro escolhido pela Administração Pública, por meio de inexigibilidade de licitação (Lei 8.666/1993, artigo 25). Ela pode escolher engenheiros ou economistas, mas a fundamentação do ato discricionário de escolha de um advogado deverá reportar-se às suas qualidades jurídicas, a revelar a "natureza singular" dos "serviços técnicos especializados", cuja função o advogado exercerá na arbitragem. Se o gestor indicar que escolhe esse advogado como árbitro por qualquer motivo que não a respectiva qualificação jurídica (expert em cálculos complexos de engenharia, por exemplo), ou se escolhe um jurista sem inscrição na OAB, o ato administrativo poderá ser questionado.

Mesmo porque o desempenho adequado da missão conferida ao árbitro exige a entrega de decisão tecnicamente escorreita. Na seleção do profissional, a expertise é, sem dúvida, critério de grande importância. Assim, quando advogados funcionam como árbitros, persistem no exercício da profissão, pois sua atividade (advocacia) é o vetor definitivo da escolha feita pelos litigantes. É a formação jurídica que orienta a escolha do advogado, que assim persiste no exercício da função arbitral (incidindo, inclusive, as proibições e deveres do Código de Ética).

No uso das atribuições que lhe são legalmente conferidas, é, em síntese, precisamente o que afirma o Conselho Federal da OAB no Provimento 196/2020: "(c)onstitui atividade advocatícia, para todos os fins, a atuação de advogados como conciliadores ou mediadores, nos termos da Lei nº 13.140/2015, ou árbitros, nos moldes preconizados pela Lei nº 9.307/1996" (artigo 1º).

Aliás, o provimento vem em linha com orientações anteriores do Conselho Federal da OAB, que já em 2013 indicava como atividade própria da advocacia o exercício da função de árbitro por qualquer advogado integrante da sociedade profissional (Proposição n.° 49.0000.2013.011843-1/COP).

Ao orientar as partes, analisar os fatos e proferir decisões, a técnica do árbitro-advogado advém de sua formação jurídica, o que se acentua nos casos das arbitragens "de direito", modalidade que vincula a validade da sentença à interpretação e aplicação de leis. Daí emerge inegável relação simbiótica entre ser advogado e estar árbitro.

O segundo argumento pode ser representado nesta sentença: a contratação (do árbitro) é de pessoa física. Essa pseudológica pretende criar distinção que não existe no mundo dos fatos. Mesmo porque a pessoa jurídica "sociedade de advogados" só pode ser composta por advogados (pessoas físicas) e exercita suas atividades por meio de advogados (pessoas físicas). Chegaria a ser um truísmo dizer que só advogados pessoas físicas podem exercer a advocacia e nem por isso as pessoas jurídicas por eles constituídas estariam impedidas de ser contratadas.

O que não constitui um privilégio dos advogados. Não raras vezes, médicos, dentistas, psicólogos, e arquitetos e diversos outros profissionais que exploram a atividade intelectual desempenham seu trabalho sob a forma pessoal, em nome de sociedade (uniprofissional ou com outros profissionais). Trata-se de ficção jurídica largamente aceita, que permite melhor organização de indivíduos que desempenham a mesma ou correlata profissão.

Mais: o contratante de qualquer desses serviços seleciona o prestador por ser pessoa física tecnicamente habilitada. A tomada de decisão é lastreada em pelo menos dois pilares (qualificação e conhecimento) que, de forma absolutamente natural e legítima, inauguram uma relação de confiança. Essa dinâmica decorre do caráter reconhecidamente personalíssimo do mister profissional.

Em outras palavras, a capacidade subjetiva de executar a prestação contratada aqui se confunde com a objetiva. O fator decisivo é a detenção de conhecimento especializado. Desconsiderados os novos feitos da robótica, para executar cirurgia cardíaca de alta complexidade se contrata o indivíduo e não a sociedade.   

A mesma lógica se aplica na contratação do advogado, especialmente quando a escolha se dá em razão de notório conhecimento e saber. Diante de critério técnico, a motivação e a função do contrato não podem ser ignoradas. É exatamente o que ocorre no desempenho das funções de árbitro, mediador e parecerista, nas quais o nexo de causalidade é evidente. O que se acentua devido ao fato de que as sociedades destinadas a serviços de advocacia só podem ter advogados como sócios. Logo, são advogados os únicos contratados por meio de negócios jurídicos com sociedades de advogados.

Ora, a possibilidade de seleção e indicação dos árbitros pelas partes é frequentemente referida como um dos grandes diferenciais da arbitragem. Repete-se à exaustão que a arbitragem vale o que vale o árbitro. E não é por um acaso. Em conflitos de alta complexidade técnico-jurídica, a faculdade de escolha de julgador com expertise técnica é prerrogativa que justifica per se a adoção dessa via de resolução de conflitos. O mesmo se diga do mediador para a mediação, do parecerista para o parecer e do testemunho legal.

Nesse contexto, o provimento dispõe que "(a) atuação de advogados como conciliadores, mediadores, árbitros ou pareceristas e no testemunho (expert witness) ou no assessoramento às partes em arbitragem não desconfigura a atividade advocatícia por eles prestada exclusivamente no âmbito das sociedades individuais de advocacia ou das sociedades de advogados das quais figuram como sócios" (§1º).

Dito isso, admitir que há impedimento para que a sociedade receba a receita oriunda da atuação de um de seus integrantes na função de árbitro (ou outra equivalente) é o mesmo que afirmar que nenhum profissional liberal escolhido em razão de suas qualificações pessoais poderá emitir fatura através da sociedade que integra. Traçado este paralelo, resta evidente o equívoco interpretativo das decisões administrativas.

Nesse sentido, o §2º do provimento espanca qualquer dúvida ao estabelecer que "(a) remuneração pela prática da atividade referida no caput tem natureza de honorários advocatícios e pode ser recebida pelos advogados como pessoas físicas ou pelas sociedades das quais sejam sócios".

Para o que disciplina, a redação do Provimento 196/2020 não poderia ter sido mais clara. Advogados só estão árbitros (mediadores, conciliadores…) enquanto e porque advogados e isso não pode ser ignorado pelas autoridades públicas, especialmente o Fisco.

Remanesce, então, uma única dúvida: seria esse o fim da saga?

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