Garantias de Consumo

Superendividamento dos consumidores: Vacina é o PL 3.515 de 2015

Autores

  • Claudia Lima Marques

    é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS doutora pela Universidade de Heidelberg mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha) advogada relatora-geral da Comissão de Juristas e ex-presidente do Brasilcon.

  • Roberto Castellanos Pfeiffer

    é professor da USP procurador do Estado de São Paulo e ex-Presidente do Brasilcon — Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasília)

14 de maio de 2020, 18h08

A pandemia de Covid 19, além de acarretar o colapso nos sistemas de saúde de diversos países, tem trazido diversos efeitos colaterais derivados da crise econômica a ela associada. No Brasil, infelizmente, a situação não é distinta e já mergulhamos em recessão econômica, com o consequente incremento do já alto índice de desemprego[1].

O cenário tende, inexoravelmente, a deteriorar ou — em um número cada vez mais intenso de casos — inviabilizar a capacidade dos consumidores quitarem as suas dívidas em razão da perda de renda ocasionará por um evento absolutamente imprevisível. E se o consumo das famílias é responsável por 65% do PIB da economia brasileira[2] (algo em torno de 4,5 trilhões de reais!),[3] é preciso agir rápido para assegurar um mercado de consumo saudável no pós-pandemia causada pela Covid-19.[4]

A realidade é ainda mais dramática ao se verificar que o endividamento das famílias brasileiras já vinha experimentando uma efetiva ascensão e alcançou o recorde histórico ao atingir o percentual de 66,6% em abril de 2020, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), elaborada pela Confederação Nacional do Comércio. O nível de inadimplemento por seu turno alcançou o patamar de 25,9%, o mesmo de março do corrente ano, mas superior ao de abril de 2019, que foi de 23,3%.[5]  Antes da Pandemia causada pela Covid-19, o Idec estimava que destes, cerca de 30 milhões de pessoas seriam superendividados.[6]

Ademais há tendência de aumento do nível de endividamento, pois uma das medidas tomadas foi justamente o aumento da liquidez dos bancos para que fosse possível aumentar empréstimos e conceder suspensões temporárias de pagamentos de determinados contratos de mútuos[7]. Segundo o Instituto ‘Locomotiva’, 91 milhões de brasileiros deixaram de pagar pelo menos uma conta em abril de 2020.[8]

Os “acidentes de vida” mais comuns que motivam o superendividamento são doenças, redução de renda e desemprego[9]. A atual crise combina as duas causas e assim há a potencialização do risco de que haja um substancial aumento do superendividamento, principalmente tendo em vista que a crise econômica tende a ser mais duradoura do que a crise sanitária[10].

Portanto, o país tem que estar preparado para lidar com o aumento do superendividamento. E infelizmente não está, ao contrário do que ocorre com os Estados Unidos[11] e a Europa[12] – justamente as duas regiões mais afetadas pelo Coronavírus.

A necessidade de lidar com os efeitos do superendividamento não reverte exclusivamente em benefício do consumidor. Muito pelo contrário, os credores também são beneficiados se a lei for bem concebida. Sem a lei — e o consequente plano de pagamento dos débitos — há o sério risco de diversos credores (os com menores garantias) ou até mesmo a totalidade deles (tendo em vista que muitas vezes são credores sem garantia) nada receberem.

Ademais, restrições acessórias possuem um efeito devastador para a retomada da viabilidade econômica do consumidor. Pensemos na principal delas, a inscrição em cadastros de proteção ao crédito. A negativação importa em dificuldades efetivas para conseguir um emprego (já que normalmente as empresas consultam os cadastros antes da contratação e nada indica, muito pelo contrário, que deixarão de dar preferência a contratação de pessoas não negativadas.

A medida em que o consumidor não consegue o emprego, aumenta exponencialmente a dificuldade não apenas de quitação da dívida (o que se tornará absolutamente improvável), como de consumo até mesmo do mínimo existencial.

Assim o superendividamento afeta não apenas o consumidor e sua família, com fortes privações do mínimo existencial e abalos morais e psicológicos, mas também aos credores e a economia como um todo, pois o aumento do patamar de consumo é essencial para a retomada da economia, o que é impossível para o superendividado.

Há ainda o aspecto preventivo absolutamente essencial para os tempos atuais. O aumento de liquidez induz agressividade das instituições financeiras na oferta de novos empréstimos e novos produtos e, assim, a ampliação da educação para o consumo e de regras de vedação de publicidade e oferta enganosa são essenciais para evitar acesso insustentável ao crédito, que por ser concedido a quem não necessitaria ou não teria condições de adquirir novo crédito, acaba redundando em superendividamento[13].

Ainda que haja algumas normas esparsas, acórdãos de tribunais superiores[14] e iniciativas de programas de tratamento de superendividamento[15]  há intensa necessidade de uma norma sistematizadora, sendo a atualização do Código de Defesa do Consumidor, por intermédio do Projeto de Lei  nº 3515/2015 o veículo ideal para tal desiderato.

Podemos dividir em três âmbitos a proteção efetivada no âmbito do Projeto de Lei nº 3515/2015: normas de natureza preventiva, repressiva e de tratamento. Assim são vacina (prevenção) e tratamento/remédio (repressiva e de cura) do superendividamento do consumidor pessoa física, excluídos das possibilidades da falência e recuperação extrajudicial. As normas do PL 3515,2015 forma inspiradas no modelo francês de conciliação em bloco do consumidor com todos seus credores e a elaboração de um plano de pagamento, não havendo no caso brasileiro, perdão de dívidas, mas sim um plano compulsório para os que não conciliarem.[16]

No âmbito preventivo destacamos as normas do PL 3515,2015 que ampliam a educação para o consumo consciente e que aprofundam a exemplificação a informação a ser prestada pelas instituições para a concessão de crédito responsável, sempre pautados pela preservação do mínimo existencial. [17]

Destacamos, inclusive a expressa previsão da obediência ao princípio da boa-fé no conceito de superendividamento, que, seguindo exemplos de direito comparado[18] e adaptando-os à realidade nacional, é definido da seguinte forma pelo Projeto de Lei nº 3515/2015: “a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação (art. 54-A,  § 1º)”. [19]


 

 

 

 

 

 

 

 

 

No âmbito repressivo, são tipificadas novas modalidades de práticas abusivas e de oferta e publicidade enganosa, a fim de sancionar condutas em desacordo com o crédito responsável, que explorem a vulnerabilidade do consumidor e possam conduzi-lo ao superendividamento.[20]

 

No período atual, a vulnerabilidade do consumidor fica ainda mais exacerbada, pois parcela substancial da população brasileira, em especial a de baixa renda, está premida pela redução de renda advinda da suspensão temporária do contrato de trabalho, pela demissão e pela impossibilidade de desempenhar atividades informais. Assim, a suscetibilidade a aceitar ofertas de crédito é ainda mais aflorada, sendo essencial que estas sejam feitas de forma absolutamente responsável, com informação clara e veraz, análise ponderada da capacidade do consumidor acessar o crédito e da modalidade mais adequada ao seu perfil e ausência de oferta, publicidade ou prática abusiva.[21] A aprovação do Projeto de Lei n º 3515/2015 seria extremamente importante para objetivar as condutas que devem ser evitadas e privilegiar, assim, os fornecedores de boa-fé.

Por fim, apresentamos o principal remédio que o Projeto de Lei n º 3515/2015 oferece para o tratamento do superendividamento: o processo de repactuação de dívidas, no qual é realizada audiência conciliatória, presidida por juiz de direito ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores, em que o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos (art. 104). No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida, tendo eficácia de título executivo e força de coisa julgada (art. 104, § 3º).[22]

Assim, seria viabilizada a recuperação econômica do consumidor, através de mecanismo consensual em que o conjunto dos credores aprova um plano de pagamento de dívidas, que, se bem planejado e executado, beneficia a todos os envolvidos. Os credores ganham ao terem possibilitado recuperar a integralidade ou parcela substancial de dívida cujo pagamento, sem a existência do plano dificilmente seria efetivado. O consumidor, por ter possibilitada a sua recuperação econômica com a preservação dos rendimentos necessários a fazer frente ao seu mínimo existencial.[23] E a sociedade brasileira, já que o consumidor poderá — com absoluta responsabilidade e sem comprometer o plano de pagamento — ter acesso, ao menos, aos produtos e serviços essenciais, exercendo assim a cidadania e movimentando a economia. [24]

O Projeto de Lei n º 3515/2015 possui o mérito de ter sido amplamente debatido, seja no âmbito da sociedade civil, na época da redação do anteprojeto que lhe deu origem, seja no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, cujas comissões especiais encarregadas da apreciação de seu texto realizaram inúmeras audiências públicas e apresentaram pareceres dos respectivos relatores que aperfeiçoaram o seu texto, sem deixar de resguardar o seu conteúdo central.[25]

Portanto, em uma época singular, em que a sociedade necessita de medidas que permitam a reconstrução da economia brasileira, a aprovação do Projeto de Lei n º 3515/2015 surge como o remédio adequado para prevenir e tratar um problema crônico que os efeitos colaterais da Covid-19 podem agravar profundamente: o superendividamento dos consumidores .

 


[1] A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua divulgada hoje pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).em 30.04.2020 revela que a taxa de desocupação atingiu 12,2% no primeiro trimestre de 2020, mais alta do que a do último trimestre de 2019, que foi de 11,0%.  

[2] A despesa das famílias é o atual motor da economia brasileira, veja BRASIL, Cristina Índio do. Consumo das famílias é grande motor da economia, diz IBGE- Setor tem peso de 65% na composição do PIB,  04.03.2020, in https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/consumo-das-familias-e-grande-motor-da-economia-diz-ibge (Acesso 09.05.2020).

[3] Dados disponibilizados pelo Instituto Capitalismo Humanista (São Paulo), pelo Prof. Dr. Manuel Enriquez Garcia da USP, pelo que agradecemos, em especial aos seus Presidentes Prof. Dr. Ricardo Sayeg e Prof. Dr. Wagner Balera, PUC-SP.

[4] O Banco Muncial já reomendou que a saída da crise financeira passa pelo aprovar de uma lei de ‘falência’ ou insolvência dos consumidores pessoas físicas, veja LIMA, Clarissa Costa de; MARQUES, Claudia Lima. Nota sobre as conclusões do Banco Mundial em matéria de superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 89, p. 453-457, setembro 2013, p. 453 e seg.

[5] Confederação Nacional do Comércio. Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), abril de 2020. Disponível em:  http://www.cnc.org.br/editorias/economia/pesquisas/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-abril-de.

[9] Na pesquisa realizada pelo Observatório do Crédito e Superendividamento da UFRGS, em 5 anos de projeto-piloto de conciliação em bloco no TJRS,  eram estas as ‘causa’ das dívidas dos consumidores: redução de renda (26,5%), desemprego (24,3%), doença (18,0%). Veja MARQUES, Claudia Lima. Conciliação em matéria de superendividamento dos consumidores: principais resultados de um estudo empírico de 5 anos em Porto Alegre (PORTUGAL). Estudos de Direito do Consumidor, v. 11, p. 13-43, 2016, e primeiras pesquisas, in MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006.


 

[10] Scaff, . A segunda fase da crise econômica, financeira e tributária do Coronavírus. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-14/contas-vista-fase-crise-economica-financeira-tributaria-covid-19.

[11]  RAMSAY, Iain. Comparative Consumer Bankruptcy. University of Illinois Law Review, p. 241, 2007.

[12] Reifner, Udo; Niemi-Kiesiläinen, Johanna; Huls, Nik; Springeneer, Helga. Overindebtedness in European Consumer Law: Principles from 15 European States. Norderstedt: Books on Demand, 2010.

[13] Por exemplo, nota-se a disseminação de oferta enganosa de cartões de créditos consignados, em moldes, que não fornecem a adequada informação e levam os consumidores a erro. Ver, a propósito, a Nota Técnica n.º 28/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ.

[14] Dentre outros julgados que mencionam o superendividamento destacamos: Resp 1783731 – Rel. Ministra Nancy Andrighi – j. em 23/04/2019; Resp 1586910 – Rel. Ministro Luís Felipe Salomão – j. em 29/08/2017; Resp 1584501– Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – j. em 06/10/2016; REsp 1186965 – Rel. Min. Massami Uyeda – j. em 07/12/2010 – 3ª T. AgRg no REsp 1206956 – Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – j. em  18/10/2017; AgRg no AREsp 314901 – Rel. Ministra Maria Isabel Galotti – 4° T – 18/06/2015.

[15] Os programas de tratamento do superendividamento mais conhecidos são os desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pela Defensoria do Rio de Janeiro e pelo Procon-SP em conjunto com o Tribunal de Justiça de São Paulo. Veja os resultados destes projetos na obra, MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela; LIMA, Clarissa Costa de. Direitos do consumidor endividado II: Vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Ed. RT, 2016, p. 10 e seg.

[16] MARQUES, Claudia Lima. Apresentação. In: LIMA, Clarissa Costa de. O Tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 7 e seg.

[17] Veja sobre mínimo existencial, a obra de  BERTONCELLO, Karen D. Superendividamento do Consumidor – Mínimo Existencial – Casos Concretos. São Paulo: Ed. RT, 2015. 

[18] Veja a obra pioneira de MARTINS DA COSTA, Geraldo de Faria. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Ed. RT, 2002 e a tese de LIMA, Clarissa Costa de. O Tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Ed. RT, 2014.

[19] Veja MARQUES, Claudia Lima. Algumas perguntas e respostas sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor 75, p. 9-42, 2010, p. 10 e seg.

[20] Veja CARVALHO, Diógenes; FLÁVIO, Amanda. Vulnerabilidade comportamental do consumidor: porque é preciso proteger a pessoa superendividada. Revista de Direito do Consumidor, v. 104, 2016, p. 181 e seg.

[21] Veja PFEIFFER, Roberto. Práticas abusivas, cobranças de dívidas e cadastros de consumo. In: LOPEZ, Teresa Ancona; AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Contratos de consumo e atividade econômica. São Paulo: Saraiva/FGV, 2009. p. 171 e seg.

[22] Veja estes instrumentos desde a primeira versão do então projeto 283,2012, in MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Anteprojetos de lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Con­sumidor, v. 82, abril-junho, 2012, p. 331 e seg.

[23] Veja MARQUES, Claudia Lima. Algumas perguntas e respostas sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor 75, p. 9-42, 2010, p. 10 e seg.

[25] Veja também o projeto piloto no TJRS, MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Káren. Dados da pesquisa empírica sobre o perfil dos consumidores superendividados da Comarca de Porto Alegre nos anos de 2007 a 2012 e notícia sobre o Observatório do Crédito e Superendividamento Ufrgs-MJ. Revista de Direito do Consumidor, vol. 99, p. 411-437, 2015 , p. 411 e seg.

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    é professora titular de Direito Internacional Privado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). É presidente do Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores e da International Law Association (Londres). Ex-presidente do Brasilcon e da Asadip (Paraguai).

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    é professor da USP, procurador do Estado de São Paulo e ex-Presidente do Brasilcon — Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasília)

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