Opinião

Metanegociação coletiva de trabalho é a chave em tempos de Covid-19

Autor

  • Antonio Carlos Aguiar

    é sócio do Peixoto & Cury Advogados mestre e doutor em Direito do Trabalho titular das Cadeiras 48 e 28 das Academias Brasileira e Paulista de Direito do Trabalho e desenvolvedor de jornadas no ecossistema trabalhista.

14 de maio de 2020, 19h04

"(…) O tempo é assimétrico para nós. Podemos ver o passado, mas não o podemos influenciar. Podemos influenciar o futuro, mas não podemos vê-lo. Tanto a invisibilidade quanto a maleabilidade potencial do futuro nos impulsionam a aprender nele, a ficar alertas para as ameaças ou oportunidades que ele pode conter. Essa brancura da página do futuro nos dá poder (se o futuro não está determinado, podemos fazer qualquer coisa" [1].

Comecemos relembrando a receita principal. A espécie (objeto desencadeador), da qual se desdobra a subespécie (além de) objeto deste estudo, a metanegociação, é a Negociação Coletiva de Trabalho, modelo jurídico-constitucional que tem por fim a pacificação de conflitos por meio de uma solução autocompositiva.

Na negociação, "duas ou mais partes em conflito procuram encontrar uma plataforma de acordo que evite a confrontação direta. Procurar um acordo significa, no entanto, e antes de mais, tomar decisões conjuntas a partir de um leque de decisões alternativas parciais" [2]. Segundo a autora, a adoção desta perspectiva para o estudo da negociação de conflitos significa: "a) que cada parte negocial é um órgão de decisão; b) que os comportamentos são analisados enquanto escolhas decisionais apoiadas em julgamentos e avaliações sobre a própria situação negocial; c) que cada uma das partes toma em consideração a informação disponível sobre essa situação, analisa o comportamento da outra parte, prediz o que irá acontecer em seguida e avalia as suas potenciais consequências; d) que existem padrões cognitivos 'criados' pela própria situação e contextos negocionais".

A negociação se perfaz por meio de um encontro [3], de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas disponíveis à resolução e composição de interesses, de maneira particularizada a cada situação, que alteram ou venham alterar condições de trabalho e de vida em permutas que acontecem e interagem neste universo de maneira diuturna, conforme as necessidades e momento de cada agente social envolvido [4].

Ela, negociação, tem sempre como foco e objetivo um lugar certo para chegar (ainda que por caminhos íngremes e tortuosos, presentes em casos difíceis).

Nas negociações se desnudam e aparecem oportunidades. E os interessados (membros desta ecologia sindical) aproveitam o vento oportuno (ab portus) antigamente os romanos tinham o hábito de dar nome aos ventos, e o vento que levava o navio na direção dos portos (em porto seguro) se chamava ab portus e buscam soluções integrativas.

Pode-se traduzi-la como uma verdade da vida. Todo mundo negocia algo a cada dia. Queiramos ou não sempre estamos exercendo o papel de negociador.

Quem é nosso parceiro mais frequente de negociações? Nós mesmos. As possibi­lidades são infinitas dentro de um tempo que é finito. Não há dúvidas: a negociação administra e conforma conflitos; essa é sua natureza (principal).

Os atuais tempos de incertezas exigem mais do que uma concertação social baseada na pacificação de conflitos. Exigem inserção, adaptação e integração.  

Estamos no meio de uma grande transição. O que fazer neste "interregno"?

"Este século é muito diferente do século XX (…). No 'interregno' não somos uma coisa nem outra. No estado de interregno, as formas como aprendemos a lidar com os desafios da realidade não funcionam mais. As instituições de ação coletiva, nosso sistema político, nosso sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as relações com as outras pessoas, todas essas formas de aprendidas de sobrevivência no mudo não funcionam direito mais. Mas as novas formas, que substituíram as antigas ainda estão engatinhando. Não temos ainda uma visão de longo prazo e nossas ações consistem principalmente em reagir às crises mais recentes, mas as crises também estão mudando. Elas também são líquidas, vêm e vão (…)" [5].

Por isso mesmo, o produto a ser concebido pelo processo de negociação não pode se limitar a resolução de conflitos pré-existentes. É-lhe exigido um papel que vá (em muito) além deste cunho "apenas" pacificador. Deve criar e trabalhar um viés preditivo e ao mesmo tempo altivo/ativo do (e sobre o) rumo ao "desconhecido" (na verdade, ao novo), para então exercer e apresentar variantes cognitivas e adaptativas. Um belo e grande desafio.

As tintas disponíveis ao preenchimento deste papel em branco estão disponíveis para os atores e escritores sociais que enxergam, vislumbram e, principalmente, sentem essa necessidade/novidade social. Eles têm à disposição o caderno negocial para escrever esses novos rumos programáticos, devendo, a partir de então, abrir nele um espaço, em local adequado, para esse desenho diferenciado que não se limita, repita-se, a solução de um conflito. Vai além (!). Daí a inclusão do termo "meta" nesta disposição ramificada de subespécie do principal, como indicação do que transcende, vai além de outra coisa (metafísica), exigindo-se assim que sejam metanegociadas coisas absolutamente novas, improvisando-se soluções, por intermédio de um olhar das relações de trabalho, além do viés tradicional, algo como Walter Garcia Junior fazia com João Gilberto, ou seja, por intermédio de uma "contradição sem conflito.

 que se busca aqui, portanto, ao dar à negociação coletiva de trabalho um incremento, acrescentando-lhe um "a além de", com a criação (para uma análise complexa) de uma subespécie, é dar-lhe efetividade adaptativo-evolutiva (uma espécie de darwinismo negocial) para melhor compreensão do seu real papel de atuação social, de acordo com o ritmo exponencial das mudanças do mundo (inclusive do trabalho), podemos dizer: uma "sinédoque sindical", do grego synedoché = compreensão dos dias atuais de movimento (muita movimentação, mesmo) sindical.

Parivartan sindical: ser humano é ser com os outros
Estamos vivendo um momento (tão diferente e transformador) que exigem soluções inovadoras e diversas daquilo que sempre fizemos. Não é possível obter resultados diferentes por meio da mesma fórmula; dos mesmos ingredientes. Prem Baba chama isso de parivartan, que em sânscrito significa transformação. Para ele, "as diversas crises atuais estão a serviço do despertar da consciência coletiva. 'Incêndios são importantes para as florestas'. Eles contribuem com o surgimento de espécies novas e mais fortes. Estamos sendo levados a reconhecer nossos erros em relação às escolhas que fizemos até agora. Estamos no auge de uma transformação planetária, na qual teremos a chance de transmutar: medo em confiança, sofrimento em alegria, egoísmo em altruísmo, evoluir o paradigma materialista para espiritual
compreendendo que este último nada tem a ver com atitudes e conceitos dogmáticos, verdades emprestadas ou qualquer tipo de separação e exclusão por crença" [6].

Sem dúvida alguma, vivemos tempos tortuosos e diferenciados. Já era muito difícil definir quem é jovem, criança ou adulto; homem e mulher; o que é gente e o que é máquina (transhumanismo [7]); o que é certo e errado; direita e esquerda; clonado ou não; novo e velho; transgênico ou não; geneticamente modificado ou não…

Hoje, então, não se sabe nem sequer quem são vulneráveis ou não ao vírus invisível. Quanto tempo deve-se (ou não) se manter o isolamento social. Como se adaptar às novas tendências e formas de trabalho, convívio social e, principalmente, lidar com a alteridade: o olhar e atenção para com os outros e, em outra medida, somos nós mesmos. E até pouco tempo pouco (ou quase nada) não enxergávamos.

Lembremo-nos, aliás, que "o projeto Genoma (trabalho realizado por diversos países para desvendar o código genético de organismos vivos) revelou que mais de 99% dos genes de um ser humano são idênticos aos de cachorro, gatos, pássaros, fungos e árvores. É isso, são todos nossos parentes, nossa família (!)" [8].

Até ontem (num piscar d’olhos do tempo) tínhamos certezas. Tínhamos a tecnologia traçando novos modelos mentais e funcionais da humanidade. Por exemplo, o historiador Yuval Noah Harari, no seu livro Homo Deus, contemplava como os homens se tornariam deuses, e qual seria o destino final da inteligência e da consciência, afirmando que: "Com os rápidos avanços em biotecnologia, nós podemos chegar ao ponto em que, pela primeira vez na história, desigualdade econômica se torce desigualdade biológica. Criaremos um elite de super-humanos, mais inteligentes, saudáveis e longevos. E uma massa de inúteis" [9].

Nada será como antes amanhã
Todas essas certezas simplesmente foram, senão aniquiladas, pelo menos severamente abaladas por esse turbilhão de alterações sociais que nos sufocam (efetivamente) neste instante de quarentena e adoção rígidas medidas de higiene, descontaminação e prevenção, com a finalidade de salvar vidas.

Neste enfrentamento da maior crise de saúde em mais de cem anos brotou o "inesperado": tornaram visíveis problemas que simplesmente parecem que não existiam ontem. Parece que, de uma hora para outra, descobriu-se que pessoas são gente e por incrível que possa parecer estão (todas) sujeitas à pandemia indiscriminadamente, independentemente do seu grau de formação ou poder econômico. E, por isso, teve-se de dar luz e foco ao outro (alteridade vindo à tona) na medida em que todos "estão no mesmo barco". Todos devem seguir o mesmo caminho. Todos, por exemplo, deveriam ficar em casa. Mas, todos, não são bem todos (iguais). Por incrível que, também mais esse aspecto possa parecer, há pessoas que não podem ficar em casa, seja porque ganham o seu sustento (pão) diariamente e sem nenhuma garantia de que o conseguirão, impactando numa verdade inabalável de que não lhes é possibilitado um mínimo de poupança para sobrevivência diária diante do inesperado; porque não têm para onde ir e se têm, residem em cubículos que abrigam um número incrível de pessoas (que nada contribui a um isolamento social) e, por vezes (em grande parte) não lhes são disponibilizadas condições sanitárias mínimas de higiene. Portanto, podem "atrapalhar" as melhores e mais bem-intencionadas políticas de gestão para mitigação do contágio de e entre todos.

Não bastassem essas, agora visíveis, dificuldades de impossibilidade de isolamento social e higienização adequada de quem sequer tem condições de saneamento básico, há ainda outro ponto essencial que diz respeito aos empregos.

Neste ponto, as empresas também estão passando por graves dificuldades e, em algumas situações, próximas de estado falimentar. Na sua esmagadora maioria não funcionam, não arrecadam e não têm condições de cumprir com suas obrigações básicas, incluindo-se, aqui, o pagamento de salários. Pior: não sabem quanto tempo essa situação gravíssima vai durar.

Os sindicatos, de outro lado, executam um papel de auxílio e de acordo com medidas emergenciais adotadas pelo governo, deixando de lado, neste mar de tempestades, atuações de natureza de igual importância, relacionadas ao dia a dia reivindicatório (melhores salários, condições de trabalho, etc.). A reivindicação maior neste instante é a preservação da dignidade da pessoa humana do trabalhador, sua sobrevivência, seu emprego.

Todavia, esse papel de bombeiro de crise, escudado quase que exclusivamente em medidas de urgência governamentais, primeiro não se alinha com o tradicional modelo de a negociação coletiva, que é formatado na conformação e resolução de conflitos coletivos de trabalho, e, segundo, não se pode o tempo todo ficar esperando que o Estado venha dizer o "como" e o "quando" agir. Respostas novas precisam ser alcançadas. E o momento exige mais "mãos dadas do que punhos cerrados'. Como fazer, eis o desafio.

O chamado modelo "metanegocial" se apresenta como uma chave adequada de decifração dessa incógnita, dentro da quadra sistêmica de crise e incerteza atuais. Novos resultados são exigidos. Não há como se prender a algemas interpretativas por meio de um conjunto de instruções dogmático-normativas e/ou jurisprudenciais havidas até então.

Mais do que boa vontade, o momento exige criatividade e muita coragem, uma vez que a responsabilidade social é muito grande, não tendo espaço para vieses conservadores de conhecimento acadêmico formatados em uma época totalmente diferente do instante ora vivido, que exige medidas extraordinárias e inovadoras, uma vez que "nada será como antes amanhã" [10].                                                 

 


[1] BRAND, Stewart, The Clock of the Long Now. Nova York: Basic Boocks, 2000, pg. 192.

[2] Monteiro, M. B. (1993). Conflito e Cooperação nas Relações Intergrupais. In: J.Vala e M. B. Monteiro (Orgs.) Psicologia Social, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 347.

[3] AGUIAR, Antonio  Carlos, O negociado sobre o legislado, Revista do ADVOGADO, AASP, n. 137, março de 2018, p. 8.

[4] AGUIAR, Antonio Carlos, Negociação Coletiva de trabalho. Saraiva. São Paulo, 2ª edição, 2018, pág. 15.

[5] Transcrição publicada pela ConJur, 1º jan. 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-01/zygmaunt-bauman-neste-seculo-estamos-num-estado-interregno. Ob. cit., p. 26.

[6] CARVALHAL, André. VIVA O FIM: Almanaque de um novo mundo. São Paulo: Paralela. 2018, p. 46.

[7] "A filosofia transumanista é baseada na erradicação de qualquer forma de sofrimento causado por doenças, pelo envelhecimento ou mesmo pela morte (então para eles parece que vai ser bom). O propósito é alcançar as potencialidades máximas de desenvolvimento humano. Assim, seremos capazes de nos transformar em diferentes seres com habilidades enormemente expandidas a partir da condição natural, de modo a virar pós-humano, deixando em segundo plano a evolução biológica (um beijo, Darwin)”, in Ob. cit., p. 81.

[8] Idem. Ob. cit., p. 70.

[9] HARARI, Yval Noah, HOMO Deus.

[10] NASCIMENTO, Milton. Música: "Nada será como antes".

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