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Reckziegel e Barzotto: Trabalho e OIT na pandemia

13 de maio de 2020, 9h02

Por Tânia Regina Silva Reckziegel, Luciane Cardoso Barzotto

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Na pandemia, vivemos um estado de calamidade pública, mas não estado de exceção, o qual ocorre fora de qualquer normalidade [1]. Esse estado de emergência é regulado por uma série de normas, que mantêm contato com a ordem anteriormente estabelecida, e isso vale para a ordem internacional de proteção ao trabalhador, representada pela OIT. Alguns Estados europeus, após sentirem os reflexos de não conter a propagação do coronavírus, foram obrigados a bloquear grande parte de suas economias e recuaram em seu abstencionismo inicial. O Reino Unido anunciou que pagaria até 80% dos custos salariais para quantas empresas precisassem da ajuda, sem limite para o valor total dos gastos públicos.

Há o exemplo da Alemanha, no qual o governo assumiu a situação de factum principis pagando pelos empregados colocados em quarentena. Na Espanha, na Itália e em Portugal, o Estado ingressou rapidamente com medidas supletivas para compensar as perdas salariais. No Brasil assistimos a edições de sucessivas medidas provisórias: 927, 928, 936, entre outras, além da elaboração de um plano suplementar de remuneração para informais chamado de "coronavoucher". Todos concordam que o futuro do trabalho de todo o mundo globalizado será afetado nos seus aspectos econômicos, sociais e de desenvolvimento. A resposta apropriada será a urgente, coordenada em uma escala global, devendo proporcionar ajuda imediata aos mais necessitados para salvaguardar vida e a saúde, como política pública essencial.

Nesse sentido, a OIT mantém orientações gerais aos países-membros, e esse é o ponto central deste artigo. Elencamos algumas diretrizes básicas da OIT: a centralidade do olhar no ser humano que trabalha. Ou seja: a abordagem ao futuro do trabalho centrada no ser humano. Esta centralidade depende de um olhar voltado para a centralidade do trabalhador no presente, na preservação de seu emprego e renda, na proteção deste trabalhador, de sua renda mínima e de suas famílias, enquanto perdurar o período de isolamento social. Isso tudo observadas as diretrizes recentes para a manutenção, dentro do possível, do trabalho decente para que se atinja estabilidade, a paz e a resiliência. O método para a realização desses objetivos, para a OIT, como sempre é método relacional, apontado pela OIT como "diálogo social". Entendemos que esse método é a expressão de um paradigma fraternal, explícito na Constituição da OIT, implícito no seu discurso, prática, na sua história e nas normas para assegurar, mesmo em meio à crise, o trabalho decente em situações de desastre como aponta a recente Recomendação 205, de 2017.

Centralidade do ser humano que trabalha, a principal orientação
A organização pede respostas políticas rápidas e coordenadas em nível nacional e global, com forte liderança multilateral, para limitar os efeitos diretos de saúde da Covid-19 sobre os trabalhadores e suas famílias. O mundo enfrenta um choque econômico e do mercado de trabalho, que afeta não apenas a oferta (produção de bens e de serviços), mas também a demanda (consumo e investimento). As interrupções na produção, inicialmente na Ásia, espalharam-se pelas cadeias de suprimentos em todo o mundo. Entretanto, como tem se afirmado, é um falso dilema salvar vidas ou salvar a economia.

Obviamente a OIT no seu centenário, em 2019, aponta para a centralidade do ser humano no mundo do trabalho. A centralidade do ser humano para um futuro do trabalho, (e agora para o presente do trabalho diante da Covid-19), segundo a Declaração do Centenário da OIT de 2019, requer as seguintes medidas [2]: aumentar a capacidade de resiliência de empregados e empregadores, um reforço às instituições e a manutenção da dignidade do trabalhador. Na crise da pandemia pode-se verificar que o reforço das capacidades do trabalhador se dá por qualificações para a adaptação ao trabalho remoto, ou mesmo para o exercício concomitante de trabalho domiciliar; o reforço às instituições se dá pela proteção às pequenas e médias empresas, reforço do papel dos sindicatos e, por fim, o trabalho digno se dá, em uma apertada síntese, pela justa remuneração em momento de suspensão das atividades.

O significado dessa centralidade do homem que trabalha, em meio à crise pandêmica, é determinado em concreto por cada Estado, em cada setor, e, no plano micro, na execução do contrato de trabalho com novas regras e formulações. Inclui-se aqui a proteção do trabalhador informal, normalmente à margem de qualquer proteção social. Nesses termos a OIT recorda sua atuação flexível, que encoraja o atendimento das diversas necessidades específicas de cada país, sobre uma base de diálogo social. Manter a centralidade do ser humano no caso da pandemia que presenciamos exige que, nos locais de trabalho, nas empresas, nas economias nacionais às globais, seja necessário diálogo social entre governos e os que estão na linha de frente empregadores e trabalhadores. Ainda assim, outros atores são fundamentais para manter-se a estabilidade, a democracia e a resiliência.

Evidencia-se o papel dos sindicatos, os quais estão chamados a intervir positivamente para manter negociações diretamente com empregados e empresas, via acordos coletivos. O Judiciário, registra-se no caso brasileiro, também é ator importante, porquanto atento à condição de crise, chamado a dar uma resposta rápida e positiva para as mais de 158 ações já ajuizadas na primeira semana da decretação do estado de calamidade. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça, criou um observatório nacional para o enfrentamento do problema [3]. As ações judiciais pleiteando direitos se multiplicam e o Judiciário, mesmo em trabalho remoto, continua numa grande produtividade para implementar direitos e garantir direitos violados.

Trabalho decente e o 'desastre do coronavírus'
A Declaração do Centenário da OIT reafirma o compromisso com todas as expressões de direitos humanos do trabalhador e o coloca a dignidade de quem trabalha e agora está afastado do trabalho, como aspecto central a ser considerado em todas as medidas sociais, econômicas e jurídicas. Nesse contexto de crise, o que a OIT aponta é para a necessidade de um trabalho decente definido como "aquele desenvolvido em ocupação produtiva, justamente remunerada e que se exerce em condições de liberdade, equidade, seguridade e respeito à dignidade da pessoa humana" [4]. Recentemente, atualizando esse conceito, a OIT emitiu a Recomendação 205 Recomendação de emprego e trabalho decente para a paz e a resiliência, 2017 (nº 205), considerando o impacto e as consequências que os conflitos e desastres têm sobre pobreza e desenvolvimento, direitos humanos e dignidade, trabalho decente e negócios sustentáveis. Por esse documento, Recomendação 205 da OIT, a situação vivenciada por todo o mundo referente à pandemia pode ser classificada como um desastre em proporções globais. Para a OIT:

a) o termo "desastre" designa uma perturbação grave do funcionamento de uma comunidade ou sociedade em qualquer escala, devido a fenômenos perigosos que interagem com as condições de exposição, vulnerabilidade e capacidade, causando um ou mais dos seguintes fatores: perdas e impactos humanos, materiais, econômicos e ambientais [5];

b) o termo "resiliência" designa a capacidade de um sistema, comunidade ou sociedade exposta a uma ameaça de resistir, absorver, adaptar, transformar e recuperar seus efeitos de maneira oportuna e eficiente, principalmente através da preservação e restauração de suas estruturas e funções básicas através do gerenciamento de riscos.

A Recomendação 205 da OIT designa que o termo "resposta a crises" faz referência a todas as medidas relacionadas ao emprego e trabalho decente que são tomadas para responder a situações de crise causadas por conflitos e desastres. Portanto, o que a OIT enfatiza no caso do coronavírus é que: primeiro, estamos diante de um desastre de grandes proporções, segundo a terminologia da Recomendação 205; segundo, atente-se para a manutenção, dentro das possibilidades, do trabalho decente para os trabalhadores.

Entre alguns aspectos do trabalho decente, um dos mais relevantes para a manutenção da paz social e resiliência é a questão da justa remuneração ou de supletivamente de uma rede que sustente o trabalhador, a partir da seguridade social, a fim de que se garanta um mínimo existencial, mantendo-se o foco na centralidade do ser humano na esfera produtiva, como salienta da Declaração do Centenário da OIT. Neste sentido, a Recomendação 205 da OIT estabelece alguns mecanismos estratégicos a serem adotados pelos Estados-membros para a manutenção do trabalho decente, sendo que o primeiro a ser destacado é a "estabilização dos meios de subsistência e da renda, através de medidas imediatas de emprego e proteção social".

O trabalho decente em condições de crise só é possível pelo método do diálogo social, o qual possibilita a participação de entidades não governamentais, da sociedade, dos consumidores, dos sindicatos, e dá voz a trabalhadores marginalizados cujas expectativas mostram-se frequentemente esquecidas, externando quais são os limites das lutas e anseios laborais a serem privilegiados [6]. A OIT reafirma o caráter flexível de suas normas para sejam adaptadas da melhor forma nas legislações locais, visto que a supremacia do interesse público, no caso, as ações prioritárias de saúde e segurança devem ser enfocadas. Pelo que se observa das orientações da própria OIT, o trabalho decente nestes momentos da crise do coronavírus deve ser uma meta a ser perseguida, conforme aponta a Recomendação 205 da OIT, de 2017, sobre o emprego e trabalho decente para a paz e a resiliência.

Diálogo social e o paradigma fraternal no Brasil e na OIT
O momento exige uma concertação social, o que a OIT menciona como diálogo social, em que patrões, empregados e governos devem rever seus pactos para atingir um nível aceitável de solução a fim de garantir o bem maior que é a vida, a subsistência de todos. A vida deve ser garantida com a menor possibilidade de restrições econômicas e aqui estão os juízos de conveniência e oportunidade das medidas adotadas pelos governos, dos quais se exige que dialoguem com a sociedade para manutenção da paz, da dignidade dos trabalhadores e manutenção das empresas. No Brasil, o diálogo social preconizado pela OIT ainda pode ser suportado legal e teoricamente em função de um telos, uma sociedade fraterna prevista constitucionalmente. A referência da Constituição Federal à sociedade fraterna expressa uma especial forma de positivação do princípio da fraternidade na Constituição da República Federativa do Brasil, a qual refere, no preâmbulo:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil" (grifo das autoras).

Para o jurista brasileiro Carlos Augusto Alcântara Machado, há um dever de que a ordem jurídica construa uma sociedade fraterna, com base na força normativa do preâmbulo [7].Portanto, no Brasil o comando do Direito Constitucional Fraternal indica um caminho de diálogo, também pretendido pela OIT, e esse deve ser o vetor interpretativo deste momento de calamidade. Do mesmo modo, a Constituição da OIT  assinala uma tendência para o paradigma fraternal. O preâmbulo da Constituição da OIT é verdadeiro tratado fraternalista em matéria de relações de trabalho porque diz que o trabalho não é mercadoria o que reforça a centralidade do ser humano que trabalha.

Porém, articulando esses tópicos sobre direitos fundamentais no trabalho, trabalho decente e diálogo social, neste momento, a justiça social fraternal significa prioritariamente a manutenção da renda para a sobrevivência dos trabalhadores e suas famílias. Caso contrário todos os trabalhadores estarão sujeitos à escravidão da necessidade, à desigualdade trazida pela miséria e o trabalho não se dará de forma justa e em condições de seguridade. Sem renda, estaremos diante de um trabalho "não decente".

Considerações finais
Veja-se que a evolução da OIT, com sua característica tripartite e ênfase no diálogo, determina no tratamento da questão social a aproximação dos três princípios maiores do patamar civilizatório: liberdade, igualdade e fraternidade. Seguir esses princípios, mais que em outros tempos, é a diretriz da OIT para que se ataque em conjunto a pandemia da Covid-19. Como refere o diretor-geral da OIT, Guy Ryder, em 7 de abril, ao enunciar que as medidas adotadas devam ser as mais seguras e sustentáveis, estamos vivendo o maior teste para a cooperação internacional já vivido nos últimos 75 anos.

Neste momento, ações planetárias revelam que a fraternidade, esquecida desde a Revolução Francesa, necessita ocupar seu lugar como norte da ação humana em âmbito político e jurídico. Por isso são essenciais as medidas de transferência de renda aos particulares, no termos da legislação da pandemia representadas pelo BEM e pelo "coronavoucher", para superar-se com resiliência o desastre do coronavírus. Por fim, o paradigma fraternal da OIT incentiva a concertação social com o uso do diálogo social entre governos, trabalhadores e empregadores, de modo que se encontrem as melhores soluções, no âmbito da sociedade e do Estado, ainda que rápidas, para resiliência, paz social e justiça social em meio à pandemia.

 

Referências bibliogáficas

BARZOTTO, Luciane Cardoso; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de. OIT: solidariedade e fraternidade na proteção aos direitos humanos dos trabalhadores. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 39, vol. esp., p. 141-156, dez. 2018

CNJ Portaria CNJ nº 57, de 20/3/2020  Inclui no Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão o caso Coronavírus Covid-19. https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=ba21c495-77c8-48d4-85ec-ccd2f707b18c&sheet=b45a3a06-9fe1-48dc-97ca-52e929f89e69&lang=pt-BR&opt=currsel&select=clearall

MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A fraternidade como categoria jurídica. Curitiba: Appris, 2017

OIT  https://www.ilo.org

VOSKO, Leah F. Decent Work: The Shifting Role of the ILO and the Struggle for Global Social Justice. http://gsp.sagepub.com/content/2/1/2019

 


[1] No Brasil, o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, do Congresso Nacional, reconheceu o estado de calamidade pública.

[2] Declaração do centenário da OIT: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/publication/wcms_706928.pdf

[3] Portaria CNJ nº 57, de 20/3/2020 Inclui no Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão o caso Coronavírus Covid-19. https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=ba21c495-77c8-48d4-85ec-ccd2f707b18c&sheet=b45a3a06-9fe1-48dc-97ca-52e929f89e69&lang=pt-BR&opt=currsel&select=clearall. Ainda foram editados os seguintes atos pelo CNJ: Portaria 61/2020; Recomendação 63/2020; Portaria Conjunta CNJ/MS 01/2020 entre inúmeros outros, como rápida resposta judicial coordenada ao problema da Covid-19.

[4] OIT, doc. GB 280/wp/sdg/1º de março de 2001.

[5] A terminologia "desastre" utilizada pela OIT abriria espaço hermenêutico para interpretação integrativa da Lei 8036/90, a qual , no artigo 20, inciso XVI, refere a possibilidade de liberação do FGTS em caso de necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural. (grifos nossos)

[6] VOSKO, Leah F. Decent Work : The Shifting Role of the ILO and the Struggle for Global Social Justice. http://gsp.sagepub.com/content/2/1/19

[7] MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A fraternidade como categoria jurídica. Curitiba: Appris, 2017