Opinião

Cade precisa urgentemente fazer análise antitruste no caso da THC2

Autores

  • Angelo Prata de Carvalho

    é advogado professor voluntário na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília doutorando e mestre em Direito na Universidade de Brasília. Representa agentes econômicos contrários à cobrança da THC2.

  • Ana Frazão

    é advogada professora associada de Direito Civil Comercial e Econômico na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília doutora em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo mestre em Direito pela Universidade de Brasília ex-conselheira do CADE e ex-diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Representa agentes econômicos contrários à cobrança da THC2.

13 de maio de 2020, 20h03

Mercados regulados são regidos por verdadeiro entrecruzamento de distintos regimes jurídicos, entre os quais o regulatório, o concorrencial e o privado, em relação aos quais se deve buscar a necessária harmonização. Entretanto, isso não vem ocorrendo no setor portuário, essencial e estratégico para inúmeras cadeias de produção e consumo, no qual a dissonância entre as três esferas apontadas vem causando inúmeros problemas.

Caso sintomático é a chamada THC2 (Terminal Handling Charge-2) ou SSE (Serviço de Entrega de Contêineres), que consiste no preço cobrado por operadores portuários — ou seja, empresas com píer de atracação — das instalações portuárias alfandegadas (IPAs), nas quais é feita a armazenagem de cargas.

Como é evidente, o operador portuário, por receber a carga, tem a obrigação de proceder à descarga dos contêineres, movimentando-os em terra até a entrega no portão do terminal para que, então, possam ser transportados para espaços de armazenagem localizados fora das dependências do operador portuário. O transporte e a movimentação de mercadorias da embarcação até os portões do terminal são geralmente conhecidos como "capatazia", serviço remunerado pela THC, preço que abarca os serviços básicos do operador portuário na movimentação em terra das mercadorias.

É preciso mencionar que o armador é responsável pela entrega da carga ao destinatário final, no porto de destino por este escolhido. Para viabilizar a entrega da carga ao importador, o armador contrata um dos operadores portuários atuantes naquele porto de destino para realizar a atracação, estiva e movimentação horizontal das cargas em terra, do navio até o portão do terminal. Por conseguinte, a entrega dos bens no portão do terminal e a consequente liberação de contêineres são obrigações do operador portuário que decorrem de sua relação contratual com o armador.

Descarregada a mercadoria, esta poderá, a critério do importador, ser armazenada em recintos alfandegados do próprio operador portuário ou de IPAs, que, portanto, são concorrentes dos operadores portuários. Dessa maneira, caso o importador opte pelo armazenamento em uma IPA, a obrigação do armador terminará no momento em que o recinto receber a carga.

O imbróglio relacionado à THC2 decorre do fato de que os operadores portuários alegam existir serviços adicionais relativos à liberação de contêineres que deveriam ser cobrados diretamente das IPAs. Embora não haja efetivamente qualquer serviço diferente da já mencionada entrega da mercadoria, os operadores portuários criaram artificialmente um serviço que, na prática, não existe tão somente para aumentar os custos das IPAs, o que ocorre por meio da cobrança da chamada THC2 ou SSE.

A THC2, por conseguinte, é uma segunda cobrança por supostos serviços "adicionais" de movimentação lateral de cargas até os portões do terminal portuário, sempre que estas sejam direcionadas às IPAs, ou seja, ao agente econômico encarregado de recolher as cargas no portão e então armazená-las. As IPAs, cabe notar, não podem escolher o operador portuário de que retirarão os contêineres, pois se trata de escolha do armador. Assim, cabe às IPAs simplesmente recolher contêineres de seus clientes após serem desembarcados. Dessa maneira, não há nem serviço adicional nem qualquer relação contratual entre operadores portuários e IPAs, razão pela qual, mesmo sob o prisma exclusivamente contratual, já se pode concluir pelo descabimento da cobrança da THC2.

Ocorre que, longe de se restringir a mero problema de Direito privado, o impasse tem claros contornos concorrenciais, pois, mediante a cobrança de THC2, os operadores portuários passam a interferir diretamente nos custos das IPAs e, por conseguinte, nos preços de armazenagem praticados por tais agentes. Tal capacidade de interferência é perigosa, pois o operador portuário concorre com as IPAs no mercado de armazenagem, motivo pelo qual, ao ter a prerrogativa de interferir artificialmente sobre os custos de suas concorrentes, tem todos os incentivos para dificultar ou mesmo eliminar a concorrência no referido mercado.

Não é sem razão que o Cade consolidou jurisprudência no sentido de que a THC2 tem alto potencial anticompetitivo, por constituir meio pelo qual o operador portuário se vale de sua posição monopolista para impor custos artificiais e injustificados aos seus concorrentes. Tal posicionamento do Cade foi sintetizado pelo conselheiro Paulo Burnier da Silveira na afirmação de que "a cobrança da taxa THC2 representa um verdadeiro aumento artificial de custo de rival" [1].

Não obstante, a ANTAQ sempre assumiu posição confusa e errática quanto ao tema. Basta lembrar que, ao analisar a Resolução nº 2.389/2012, que servira de pretexto para a cobrança abusiva da THC2, o Tribunal de Contas da União constatou a existência de graves falhas procedimentais da ANTAQ ao editar o referido ato normativo, chegando a multar os diretores que aprovaram a norma sem nenhum cuidado e a despeito dos alertas da área técnica da agência [2]. O próprio ministro Walton de Alencar Rodrigues asseverou que a THC2 nada mais seria do que uma "jaboticaba", cobrança existente apenas no Brasil, cuja finalidade seria apenas a de criar novos custos na área portuária. Mais do que isso, o ministro é muito claro ao afirmar que a autorização da cobrança da THC2 pela ANTAQ seria reflexo de "um órgão que foi simplesmente capturado pelos interesses que ela deveria regular".

O TCU, dessa maneira, registrou a inadequação do posicionamento da ANTAQ quanto à THC2, que mantinha regulamentação eivada de vícios procedimentais e que resultava do processo de captura.

Surpreendentemente, as discussões sobre a THC2, que pareciam já sedimentadas, voltaram a surgir quando, em 2019, a ANTAQ elaborou sua Resolução Normativa nº. 34/2019, que passou a tratar expressamente da THC2 (ou SSE Serviço de Segregação e Entrega de contêineres) e a afirmar que tal cobrança não compõe a cesta de serviços paga pelo armador ao operador portuário (ou seja, a THC). Por meio da aludida resolução, a ANTAQ deixou a cargo dos operadores portuários a definição dos preços máximos a serem cobrados a título de THC2 e fixou para si a competência de revê-los na hipótese de restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal.

Diante disso, diversas manifestações e matérias jornalísticas, muitas das quais interessadas, surgiram para sustentar que a ANTAQ teria resolvido o problema de uma vez por todas, ao reconhecer a existência e a viabilidade de cobrança de THC2. No entanto, a norma da ANTAQ vai de encontro ao entendimento pacífico de que a cobrança é abusiva não pela ausência de previsão regulamentar, mas sobretudo por não haver razão ou serviço adicional que a justifique e pelas diversas peculiaridades que revelam seu caráter anticompetitivo.

De maneira igualmente surpreendente, veio a Superintendência-Geral do Cade aderir a tal entendimento no âmbito da Nota Técnica 7/2020/CGAA3/SGA1/SG/Cade, em que, não obstante reconheça a jurisprudência do Cade sobre o caráter anticompetitivo da THC2, entendeu que a Resolução ANTAQ nº. 34/2019 "colocou fim à discussão sobre os serviços cobertos pela box rate".  Em outras palavras, parece que a SG admitiu que a ANTAQ tem o poder de legitimar conduta anticompetitiva por simples ato de vontade, sem qualquer justificativa idônea.

Vale ressaltar que a Resolução Normativa nº. 34/2019 vem sendo reiteradamente questionada, tanto na seara administrativa quanto perante o Judiciário, em virtude dos graves vícios procedimentais em sua tramitação. Entre os inúmeros vícios, encontra-se a inexistência de verdadeira análise de impacto regulatório, ao arrepio do artigo 5º da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) e do artigo 21 da LINDB. Na verdade, o que a ANTAQ fez foi tentar aproveitar como análise de impacto regulatório atos que jamais poderiam ser considerados como tal.

Na verdade, o exame da resolução da ANTAQ mostra que se trata de puro e simples ato de poder, sem qualquer fundamento jurídico ou econômico que o justificasse e sem qualquer endereçamento dos já conhecidos problemas concorrenciais.

No caso concreto, o ônus argumentativo da agência reguladora seria ainda maior, na medida em que tanto o Cade quanto o TCU já atestaram os prejuízos à eficiência da operação portuária decorrentes da cobrança de THC2, sobretudo por se basear em serviço inexistente e por atribuir ao operador portuário a capacidade de alterar artificialmente os custos de seus concorrentes e, assim, potencialmente eliminá-los do mercado de armazenagem alfandegada.

Dessa maneira, já seria absolutamente questionável que uma questão com esse grau de importância fosse resolvida com base no decisionismo formalista da agência reguladora. Mais preocupante ainda é admitir que uma questão assim seja resolvida por decisionismo que nem mesmo obedeceu às regras formais essenciais para a sua validade.

Por essas razões, não pode o Cade ceder tão facilmente à resolução que padece de diversos vícios formais incontornáveis e ainda é manifesta e intencionalmente atentatória às normas concorrenciais.

Ao contrário do que muitos vêm procurando defender, não há nada de novo para justificar a legitimidade da THC2. Subsistem todos os riscos concorrenciais que deram ensejo à construção da bem fundamentada jurisprudência do Cade, os quais foram solenemente ignorados pela nova regulação. Subsistem, por igual, as preocupações do TCU ao apontar que se trata de serviço inexistente, que só existe no Brasil em virtude de um movimento empreendido por determinados agentes do setor e que resultou na captura da ANTAQ.

Conclui-se, portanto, que, por mais que o Cade tenha que levar em consideração, como regra, a posição do regulador nos mercados regulados, é inequívoco que não pode retroceder diante de regulações que são manifestamente inválidas, seja sob o aspecto formal, seja sob o aspecto substancial.

Na verdade, a atual resolução da ANTAQ, ao chancelar, de forma injustificada e desmotivada, a persistência de práticas anticompetitivas, é nítido exemplo de abuso de poder regulatório, pois cria reserva de mercado em favor dos operadores portuários, em detrimento das IPAs, em total violação ao artigo 4º, I, da Lei de Liberdade Econômica. Diante da ilegalidade da resolução, ela jamais poderia ser invocada para afastar a competência do Cade para o exame da questão e muito menos para justificar a modificação da sua jurisprudência.

Dessa maneira, diante dos vícios formais e do abuso de poder regulatório por parte da ANTAQ, não há qualquer razão legítima que impeça ou tolha o exercício, por parte do Cade, da sua importante competência de assegurar a concorrência no setor portuário. Pelo contrário, a atuação do Cade é cada vez mais necessária e urgente.

 


[1] Cade, PA 08700.005418/2017-84, Rel. Cons. Paulo Burnier da Silveira, julg. 08/5/2019. No mesmo sentido: Cade, RV 08700.005723/2018-57, Rel. Cons. Cristiane Alkmin Schmidt, Voto-vista Cons. Paulo Burnier da Silveira, julg. 16/10/2018; Cade, PA 08012.001518/2006-37, Rel. Cons. Paulo Burnier da Silveira, julg. 08.08.2018; Cade, PA 08012,003824/2002-84, Rel. Cons. Gilvandro Vasconcelos Coelho de Araújo, julg. 04/2/2016; Cade, PA 08012.007443/1999-17, Rel. Cons. Luiz Carlos Prado, Voto-vista Cons. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 27/4/2005.

[2] TCU, Acórdão 1704/2018, Plenário, Rel. Min. Ana Arraes, julg. 25/7/2018.

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