Opinião

Por uma ressignificação cidadã da liberdade de imprensa

Autor

  • Lucas Fernandes

    é mestrando em Direito na USP/FDRP e especialista em Direito Constitucional pela ABDConst. Advogado especializado em Direito Público em Ribeirão Preto.

13 de maio de 2020, 18h01

No último dia 3 de maio foi celebrado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Num contexto global de disseminação de fake news, do ressurgimento de demandas de estruturas estatais de controle especificamente no Brasil, por manifestações pelo retorno do AI-5, temerável instrumento de censura e repressão política no auge do período ditatorial , e de relativização do controle da mídia e dos instrumentos de comunicação, a proteção da boa notícia e de uma imprensa séria e independente mostra-se urgente, reafirmando um compromisso do Constituinte em 1988.

Mais que isso, a liberdade de imprensa, profundamente agregada ao direito fundamental da liberdade de expressão — as quais devem ser entendidas não apenas no plano político-social, mas também sob a perspectiva de institutos jurídicos, dotados de força normativa, conforme a concepção de Konrad Hesse [1]—, ligam-se intimamente à noção do constitucionalismo contemporâneo [2] e à de Estado Democrático de Direito, portanto.

Proteger as liberdades de fala e da operacionalização da comunicação não se relaciona, necessariamente, a uma demanda política, justificada por uma ideologia de "cá" ou de "lá". Por certo, dentro de um modelo democrático, a respectiva tutela deriva da necessidade de resguardar a ordem jurídica e o regime político, outrora projetados como substanciais do modelo do Estado brasileiro, a par do mero formalismo do "fazer político".

A possibilidade de expressar-se, entendida para além da faculdade de um indivíduo "dizer quase tudo que quiser" — em verdade, compreendida como um aspecto externo da liberdade de opinião, representada pela possibilidade de manifestar-se e, inclusive, de manter-se em silêncio, resguardando segredo, como expõe José Afonso da Silva [3] —, caracteriza um direito conquistado frente à imposição de uma estrutura estatal, por si só, possuidora de mecanismos ora legítimos de repressão e domínio.

A par da tradicional e difundida concepção de defesa da manifestação do pensamento e de uma produção, criação e difusão autônoma da informação não rara vezes superficialmente retórico-discursiva , emerge a necessidade de entendê-la como uma exigência do homem, enquanto zoon politikon, diante de uma arquitetura desenvolvida que, então institucionalizada, adotou o silêncio do indivíduo como forma de manutenção estrutural do poder.

É com a necessidade do cidadão de instrumentalizar sua participação no poder político que as liberdades de pensamento e imprensa passam a ser reivindicadas, num movimento coincidente com próprio desenvolvimento do Estado moderno.

A exemplo disso, em 1644, no auge da Guerra Civil Inglesa, Jonh Milton publicou o livro "Areopagitica" [4]. A obre insere-se num momento delicado da sociedade inglesa, em que o parlamento, como meio de controle social, proibiu a autopublicação de livros e a produção sem supervisão do material literário pelo incipiente Estado, a fim de monopolizar o debate público e estabelecer as diretrizes das discussões. A obra de Milton, autopublicada e distribuída pelo autor como folhetos, àquela época já desafiava o poder de controle, seja pela forma como idealizada e distribuída, como pela defesa da liberdade de imprensa perante o "governo" britânico.

A defesa da liberdade de expressão acompanha o amadurecimento da noção do Rule of Law. Na medida em que o modelo ideal de Estado seria representado pela convivência das pessoas conjugando uma mesma ordem jurídica, no qual o poder mandante "deve governar mediante leis declaradas" [5], a possibilidade de produção e circulação livre de notícias e a ausência de controle material sobre o que seria criado apresentam-se imperativo para, de um lado, tornar transparente o exercício político permitindo a fiscalização pelo cidadão; e, de outro, viabilizar a participação do indivíduo, a partir do acesso à informações que o munam de recursos e subsídios suficientes para, crítica e legitimamente, exercer o poder político do qual o povo é titular.

De mais a mais, a liberdade de informação jornalística opõe-se à detenção do monopólio informativo estatal, justificando-se, exatamente, pelo repúdio a um formato sistemático de controle do Estado e pela imperiosa necessidade de que o cidadão tenha garantido seu direito de acesso à informação objetiva, sem alteração da verdade ou com esvaziamento do sentido original [6]

No filme "Esquadrão 6" [7] — no nome original "Underground 6", dirigido por Michael Bay e distribuído pela Netflix —, um bilionário reúne um clã de pessoas anônimas para, sinteticamente, lutar contra o modus operandi da sociedade atual. Na atual missão do grupo, sob a qual se desenvolve o roteiro, o objetivo é derrubar um governo ditatorial de um país fictício, chamado Turgistão. Como estratégia desse plano, no meio de uma estilística sofisticada, o primeiro passo do esquadrão é controlar "três palavras: TV do Estado", nos dizeres do protagonista, interpretado por Ryan Reynolds.

Dessa metáfora do cinema, ilustra-se que o rompimento com o domínio informativo do Estado enfraquece os governos despóticos e regimes estatais autoritários, de modo a recobrar o equilíbrio institucional e, mediatamente, promover o amadurecimento e participação democráticos. A liberdade de imprensa avigora o Estado Democrático, possibilitando a expansão da atuação cidadã, por proporcionar a ampliação das possibilidades de controle e de atuação do poder.

 A liberdade humana, para além de sua positivação no texto constitucional, realiza-se na expansão das liberdades individuais substantivas, cujas atenção e importância passam a ser dirigidas aos fins de desenvolvimento do próprio indivíduo, como defende Amartya Sen [8].

Nessa concepção, segundo Flávio Pansierei [9], a dimensão política da liberdade instrumentaliza-se na possibilidade do cidadão de exercer o voto elegendo seus representantes, fiscalizar e acompanhar o exercício de poder, manifestar sua ideologia, criar partidos políticos, estabelecer críticas aos governos e, efetivamente, participar dos processos políticos. Em síntese: o exercício da cidadania faz parte do desenvolvimento do indivíduo.

Por isso, para além da proteção da liberdade de pensamento, consciência, crença e posição filosófica (CRFB, artigo 5º, incisos IV, VI e VIII), da possibilidade de veiculação midiática de conteúdo sem a censura estatal e insubmissa à autorização (CRFB/88, artigo 220, caput e §§ 2º e 6º), da garantia da liberdade de informação jornalística (CRFB/88, artigo 220, §1º), entre outras proteções constitucionais, a liberdade de imprensa torna-se imprescindível para que o indivíduo exercite sua cidadania, a partir do acesso a informações sérias, independentes e comprometidas com a verdade, capazes de possibilitar o controle e o exercício do poder político.       

Não que a compreensão normativa da liberdade de imprensa não seja importante; ao contrário, mostra-se essencial para a delimitação de seus contornos.

Entretanto, o telos do exercício protetivo da liberdade de expressão deve passar pela superação da mera instrumentalização política de uma previsão constitucional. Emerge a necessidade de uma projeção para a fundamentalidade de um direito historicamente construído, que é base imprescindível para a participação popular nas esferas de poder não adstrita somente à previsão de que todo poder emana do povo (CRFB/88, artigo 1º, parágrafo único) , com vistas ao exercício pleno da cidadania, pelo desenvolvimento do indivíduo e para a liberdade humana. Freedom Press is Democracy. 

 


[1] HESSE, Konrad. Força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004; 

[2] O que se pretende expressar aqui por "constitucionalismo contemporâneo", em sua acepção jurídica, a par da discussão terminológica, parte da definição de Matheus Vidal Gomes Monteiro (Neoconstitucionalismo(s) e constitucionalismo contemporâneo. ConJur, 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jun-08/diario-classe-neoconstitucionalismos-constitucionalismo-contemporaneo>), para o qual consiste: "no campo jurídico: a nova posição do direito público, com a incorporação dos direitos de terceira dimensão; o Estado Democrático de Direito como plus normativo-qualitativo, e os conteúdos compromissórios e dirigentes das constituições".

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 246;

[4] MILTON, Jonh. Aeropagítica: discurso sobre a Liberdade de Expressão. Coimbra: Almedina, 2009;

[5] LOCKE, Jonh. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os pensadores), p.94;

[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p.249;  

[7] ESQUADRÃO 6. Direção de Michael Bay. Estados Unidos da América: Netflix, 2019. 1 DVD (127 min.).

[8] SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[9] PANSIERI, Flávio. Liberdade como Desenvolvimento em Amartya Sen. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, 2016, vol. 8, n. 15, Jul. – Dez. p. 453-479.

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