Por uma ressignificação cidadã da liberdade de imprensa
13 de maio de 2020, 18h01
No último dia 3 de maio foi celebrado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Num contexto global de disseminação de fake news, do ressurgimento de demandas de estruturas estatais de controle — especificamente no Brasil, por manifestações pelo retorno do AI-5, temerável instrumento de censura e repressão política no auge do período ditatorial —, e de relativização do controle da mídia e dos instrumentos de comunicação, a proteção da boa notícia e de uma imprensa séria e independente mostra-se urgente, reafirmando um compromisso do Constituinte em 1988.
Proteger as liberdades de fala e da operacionalização da comunicação não se relaciona, necessariamente, a uma demanda política, justificada por uma ideologia de "cá" ou de "lá". Por certo, dentro de um modelo democrático, a respectiva tutela deriva da necessidade de resguardar a ordem jurídica e o regime político, outrora projetados como substanciais do modelo do Estado brasileiro, a par do mero formalismo do "fazer político".
A possibilidade de expressar-se, entendida para além da faculdade de um indivíduo "dizer quase tudo que quiser" — em verdade, compreendida como um aspecto externo da liberdade de opinião, representada pela possibilidade de manifestar-se e, inclusive, de manter-se em silêncio, resguardando segredo, como expõe José Afonso da Silva [3] —, caracteriza um direito conquistado frente à imposição de uma estrutura estatal, por si só, possuidora de mecanismos ora legítimos de repressão e domínio.
A par da tradicional e difundida concepção de defesa da manifestação do pensamento e de uma produção, criação e difusão autônoma da informação — não rara vezes superficialmente retórico-discursiva —, emerge a necessidade de entendê-la como uma exigência do homem, enquanto zoon politikon, diante de uma arquitetura desenvolvida que, então institucionalizada, adotou o silêncio do indivíduo como forma de manutenção estrutural do poder.
É com a necessidade do cidadão de instrumentalizar sua participação no poder político que as liberdades de pensamento e imprensa passam a ser reivindicadas, num movimento coincidente com próprio desenvolvimento do Estado moderno.
A exemplo disso, em 1644, no auge da Guerra Civil Inglesa, Jonh Milton publicou o livro "Areopagitica" [4]. A obre insere-se num momento delicado da sociedade inglesa, em que o parlamento, como meio de controle social, proibiu a autopublicação de livros e a produção sem supervisão do material literário pelo incipiente Estado, a fim de monopolizar o debate público e estabelecer as diretrizes das discussões. A obra de Milton, autopublicada e distribuída pelo autor como folhetos, àquela época já desafiava o poder de controle, seja pela forma como idealizada e distribuída, como pela defesa da liberdade de imprensa perante o "governo" britânico.
A defesa da liberdade de expressão acompanha o amadurecimento da noção do Rule of Law. Na medida em que o modelo ideal de Estado seria representado pela convivência das pessoas conjugando uma mesma ordem jurídica, no qual o poder mandante "deve governar mediante leis declaradas" [5], a possibilidade de produção e circulação livre de notícias e a ausência de controle material sobre o que seria criado apresentam-se imperativo para, de um lado, tornar transparente o exercício político permitindo a fiscalização pelo cidadão; e, de outro, viabilizar a participação do indivíduo, a partir do acesso à informações que o munam de recursos e subsídios suficientes para, crítica e legitimamente, exercer o poder político do qual o povo é titular.
De mais a mais, a liberdade de informação jornalística opõe-se à detenção do monopólio informativo estatal, justificando-se, exatamente, pelo repúdio a um formato sistemático de controle do Estado e pela imperiosa necessidade de que o cidadão tenha garantido seu direito de acesso à informação objetiva, sem alteração da verdade ou com esvaziamento do sentido original [6].
No filme "Esquadrão 6" [7] — no nome original "Underground 6", dirigido por Michael Bay e distribuído pela Netflix —, um bilionário reúne um clã de pessoas anônimas para, sinteticamente, lutar contra o modus operandi da sociedade atual. Na atual missão do grupo, sob a qual se desenvolve o roteiro, o objetivo é derrubar um governo ditatorial de um país fictício, chamado Turgistão. Como estratégia desse plano, no meio de uma estilística sofisticada, o primeiro passo do esquadrão é controlar "três palavras: TV do Estado", nos dizeres do protagonista, interpretado por Ryan Reynolds.
Dessa metáfora do cinema, ilustra-se que o rompimento com o domínio informativo do Estado enfraquece os governos despóticos e regimes estatais autoritários, de modo a recobrar o equilíbrio institucional e, mediatamente, promover o amadurecimento e participação democráticos. A liberdade de imprensa avigora o Estado Democrático, possibilitando a expansão da atuação cidadã, por proporcionar a ampliação das possibilidades de controle e de atuação do poder.
A liberdade humana, para além de sua positivação no texto constitucional, realiza-se na expansão das liberdades individuais substantivas, cujas atenção e importância passam a ser dirigidas aos fins de desenvolvimento do próprio indivíduo, como defende Amartya Sen [8].
Nessa concepção, segundo Flávio Pansierei [9], a dimensão política da liberdade instrumentaliza-se na possibilidade do cidadão de exercer o voto elegendo seus representantes, fiscalizar e acompanhar o exercício de poder, manifestar sua ideologia, criar partidos políticos, estabelecer críticas aos governos e, efetivamente, participar dos processos políticos. Em síntese: o exercício da cidadania faz parte do desenvolvimento do indivíduo.
Por isso, para além da proteção da liberdade de pensamento, consciência, crença e posição filosófica (CRFB, artigo 5º, incisos IV, VI e VIII), da possibilidade de veiculação midiática de conteúdo sem a censura estatal e insubmissa à autorização (CRFB/88, artigo 220, caput e §§ 2º e 6º), da garantia da liberdade de informação jornalística (CRFB/88, artigo 220, §1º), entre outras proteções constitucionais, a liberdade de imprensa torna-se imprescindível para que o indivíduo exercite sua cidadania, a partir do acesso a informações sérias, independentes e comprometidas com a verdade, capazes de possibilitar o controle e o exercício do poder político.
Não que a compreensão normativa da liberdade de imprensa não seja importante; ao contrário, mostra-se essencial para a delimitação de seus contornos.
Entretanto, o telos do exercício protetivo da liberdade de expressão deve passar pela superação da mera instrumentalização política de uma previsão constitucional. Emerge a necessidade de uma projeção para a fundamentalidade de um direito historicamente construído, que é base imprescindível para a participação popular nas esferas de poder — não adstrita somente à previsão de que todo poder emana do povo (CRFB/88, artigo 1º, parágrafo único) —, com vistas ao exercício pleno da cidadania, pelo desenvolvimento do indivíduo e para a liberdade humana. Freedom Press is Democracy.
[1] HESSE, Konrad. Força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004;
[2] O que se pretende expressar aqui por "constitucionalismo contemporâneo", em sua acepção jurídica, a par da discussão terminológica, parte da definição de Matheus Vidal Gomes Monteiro (Neoconstitucionalismo(s) e constitucionalismo contemporâneo. ConJur, 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jun-08/diario-classe-neoconstitucionalismos-constitucionalismo-contemporaneo>), para o qual consiste: "no campo jurídico: a nova posição do direito público, com a incorporação dos direitos de terceira dimensão; o Estado Democrático de Direito como plus normativo-qualitativo, e os conteúdos compromissórios e dirigentes das constituições".
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 246;
[4] MILTON, Jonh. Aeropagítica: discurso sobre a Liberdade de Expressão. Coimbra: Almedina, 2009;
[5] LOCKE, Jonh. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os pensadores), p.94;
[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p.249;
[7] ESQUADRÃO 6. Direção de Michael Bay. Estados Unidos da América: Netflix, 2019. 1 DVD (127 min.).
[8] SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[9] PANSIERI, Flávio. Liberdade como Desenvolvimento em Amartya Sen. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, 2016, vol. 8, n. 15, Jul. – Dez. p. 453-479.
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