Direito Comparado

O RJET e a teoria de imprevisão: entendendo o artigo 7º do projeto

Autores

  • Daniel Amaral Carnaúba

    é professor adjunto da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

  • Daniel Pires Novais Dias

    é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio doutor em Direito com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo na Alemanha (2015).

  • Guilherme Henrique Lima Reinig

    é professor adjunto da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e advogado sócio da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

13 de maio de 2020, 8h01

O projeto de lei que institui o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia da Covid-19 (RJET) tem sido beneficiado pelo ambiente propício ao debate científico que emergiu durante este período de confinamento. Apresentado há pouco mais de um mês pelo senador Antonio Anastasia, o RJET já foi objeto de ampla discussão na rede mundial de computadores, como testemunham os vários artigos veiculados na coluna Direito Civil Atual, publicada neste sítio, bem como os seminários promovidos na TV ConJur pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Esses aportes contribuem para a maturação do texto, que ainda se encontra em gestação no Congresso Nacional.

Nesse cenário de particular profusão acadêmica, um dos dispositivos do RJET que mais têm despertado a atenção da comunidade jurídica é o seu artigo 7º, que aborda o tema da resolução por onerosidade excessiva e da revisão judicial dos contratos. Em sua redação atual, o caput do dispositivo prevê que "não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário". As opiniões que se formaram acerca desse artigo são as mais variadas [1].

Há dois pontos essenciais para a correta compreensão desse dispositivo. Primeiramente, o artigo 7º do RJET não modifica, nem mesmo provisoriamente, regime de resolução ou revisão contratual instituído pelo Código Civil. Trata-se, em verdade, de uma diretriz hermenêutica dos dispositivos do Código e que deve vigorar durante o período da pandemia. Em outras palavras, o artigo 7º, ao "fixar o sentido de uma lei anterior" [2], é um autêntico exemplo de uma "lei interpretativa", uma categoria legal muito cara ao Direito Tributário, mas que apenas em raras ocasiões é empregada no Direito Civil.

Essa estratégia regulatória bastante comedida condiz com os princípios que nortearam a elaboração do RJET. Conforme ressalta a sua exposição de motivos, o projeto buscou "não alterar as leis vigentes" e, no que tange especificamente ao tema regulado pelo artigo 7º, declara que o Código Civil brasileiro já possui "regras adequadas para resolver ou revisar contratos por imprevisão". A manutenção do modelo previsto no Código Civil foi, portanto, uma escolha consciente da comissão elaboradora do RJET.

A segunda questão relevante sobre o artigo 7º está no fato de que a diretriz interpretativa nele prevista não representa, a bem dizer, uma inovação no Direito brasileiro. Pelo contrário: a ideia de que as vicissitudes econômicas, notadamente as alterações inflacionárias, cambiais e monetárias, não constituem fatos imprevisíveis a justificar a revisão ou a resolução dos contratos, está há muito tempo incorporada à tradição jurídica nacional, especialmente em razão do posicionamento reiterado dos tribunais superiores 3].

Essa tese remonta a antigos precedentes do STF, proferidos ainda em meados no século passado [4], e foi rapidamente integrada à jurisprudência do STJ, quando de sua criação [5]. A ideia por detrás desse entendimento é bastante intuitiva: o Brasil é um país historicamente marcado pela instabilidade econômica e pelas frequentes oscilações de inflação, de câmbio e pela sucessão da padrões monetários. Na opinião dos tribunais, essas alterações, conquanto bruscas, não constituiriam eventos imprevisíveis que permitiriam a flexibilização da força obrigatória dos contratos. E, de fato, o entendimento contrário poderia conduzir a uma excessiva fragilização dos vínculos contratuais, que seriam passíveis de revisão toda vez que se findasse um ciclo econômico.

Assim, o STJ decidiu pela inaplicabilidade das regras de revisão dos contratos civis em praticamente todas as crises econômicas enfrentadas pelo Brasil nas últimas décadas e que tiveram impacto sobre a inflação ou sobre o câmbio. É o que ocorreu, por exemplo, nos choques gerados pelas políticas econômicas adotadas pelo Estado brasileiro, como a grave escalada inflacionária de 1986 [6], em decorrência do malogro do Plano Cruzado; ou a maxidesvalorização cambial de 1999 [7], que se seguiu ao abandono do sistema das bandas cambiais que até então sustentava o Plano Real. Esse entendimento também foi aplicado a crises cambiais provocadas por fatores internos, como a de 2002 [8], ou externos, como a de 2008 [9], que levaram a uma rápida depreciação da moeda brasileira no mercado internacional.

Por que não criar uma norma ad hoc de revisão contratual? O exemplo da França
Em resumo, o artigo 7º do RJET não altera substancialmente o atual panorama da revisão dos contratos civis por imprevisão, tratando-se de uma abordagem que se vale das normas e orientações interpretativas já existentes no nosso ordenamento para lidar com eventuais desarranjos contratuais gerados pela Covid-19. Essa forma de enfrentamento tem sido adotada em outros países, que também optaram por não criar novos métodos de revisão contratual aplicáveis à presente crise. É o que ocorre, por exemplo, na França.

Com efeito, a França editou uma série de medidas emergenciais para fazer face aos problemas decorrentes da Covid-19, as quais têm como marco legal a Lei nº 2020-290, "de urgência para o enfrentamento da epidemia de Covid-19", de 23 de março 2020. Entre as intervenções promovidas na seara dos contratos, destaca-se a prorrogação geral dos prazos que suscitariam a incidência de cláusulas penais, cláusulas resolutórias e astreintes, bem como dos prazos decadenciais [10]; e a suspensão temporária das medidas de despejo e do corte do fornecimento de energia elétrica, água, e aquecimento [11]. É notável, todavia, que nenhuma dessas medidas alterou, nem mesmo em caráter temporário, as normas gerais de revisão dos contratos, previstas no artigo 1195 do Code civil.

Esse fato é até certo ponto surpreendente, tendo em vista que a França é também a pátria da histórica Lei Failliot, de 21 janeiro de 1918, que instituiu um regime excepcional e temporário que permitia a resolução de contratos cujas obrigações tivessem se tornado particularmente onerosas para uma das partes em razão dos efeitos imprevisíveis da Primeira Guerra Mundial. Por qual razão o parlamento francês de 2020 não optou por seguir o mesmo caminho para solucionar os problemas contratuais gerados pela Covid-19? A divergência pode ser explicada em função dos diferentes arcabouços legais existentes hoje e um século atrás.

À época da promulgação da Lei Failliot, a teoria da imprevisão não encontrava amparo no Code Civil e era categoricamente rechaçada pela Corte de Cassação francesa [12]. A legislação de emergência teve de suprir essa omissão, instituindo um regime ad hoc de resolução dos contratos por imprevisão. O cenário atual é completamente distinto, tendo em vista que a reforma do direito dos contratos e das obrigações, de 2016, terminou por inserir no Code Civil uma regra geral de resolução e revisão dos contratos por imprevisão. É natural que essa regra seja posta em prática durante a pandemia de Covid-19, o que torna desnecessária a criação de um regime específico para esta crise.

Os limites do artigo 7º do RJET
Outro fator importante a ser considerado quando da análise do artigo 7º do RJET diz respeito ao seu campo de aplicação, que é bastante circunscrito e abarca apenas as regras de resolução e revisão contratual previstas no Código Civil. De fato, o próprio parágrafo primeiro do dispositivo em comento estabelece que suas diretrizes interpretativas não se aplicam aos modelos de revisão contratual instituídos pelo Código de Defesa do Consumidor ou pela Lei de Locações de Imóveis Urbanos (Lei nº 8.245 de 1991). A essas duas exceções, deve-se acrescer os contratos administrativos, tendo em vista que o RJET declaradamente não tratou de matérias afeitas ao Direito Administrativo ou Tributário [13].

Essas ressalvas, mais uma vez, revelam a sintonia existente entre o dispositivo do RJET e a jurisprudência nacional. Diferentemente do entendimento adotado para a revisão de contratos regulados pelo Código Civil, o STJ tem admitido que a inflação e a variação cambial podem fundamentar a revisão judicial dos contratos de consumo [14], de locação [15] e administrativos [16]. Essa interpretação não será alterada pelo artigo 7º do RJET.

A exclusão se justifica na medida em que esses três gêneros de contratos são contemplados com regimes especiais de revisão, cada qual governado por princípios próprios. No caso específico dos contratos de consumo e de locação de imóveis, essas regras especiais de revisão não exigem que o evento que ensejou o desequilíbrio contratual seja "imprevisível", o que, por si só, já bastaria para tornar inoperante a diretriz interpretativa prevista no RJET. Com efeito, o artigo 7º do RJET declara que a inflação, a variação cambial e as alterações do padrão monetário não devem ser interpretadas como "fatos imprevisíveis" para efeitos de incidência das regras de revisão dos contratos. Ocorre que, como prevê o artigo 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, a revisão dos contratos de consumo pressupõe apenas que "fatos supervenientes" à celebração do contrato tenham tornado as obrigações assumidas pelo consumidor "excessivamente onerosas"; pouco importando se esses fatos eram ou não previsíveis. Essa diferença entre os modelos revisão civil e consumerista é plenamente compreensível: a assimetria entre fornecedores e consumidores, inerente às relações de consumo, requer um sistema mais amplo e facilitado de revisão dos contratos desequilibrados.

A função do artigo 7º do RJET
Se o artigo 7º do RJET não modifica o modelo de resolução ou revisão contratual por fatos supervenientes, e tampouco introduz uma diretriz interpretativa verdadeiramente nova, qual seria, então, a função desse dispositivo? A resposta a esta pergunta passa pela compreensão dos objetivos do RJET que, entre vários aspectos, buscou antecipar um problema prático a ser enfrentado pelos tribunais: a onda de ações judiciais pleiteando a revisão ou a resolução de contratos, que certamente se formará em razão da pandemia. A estratégia do RJET de transformar uma regra jurisprudencial em lei, ainda que de caráter temporário, pode contribuir de duas formas para a conter esse cenário de iminente proliferação de litígios.

Em primeiro lugar, o artigo 7º permitirá que o Judiciário responda de maneira uniforme aos problemas cambiários, inflacionários ou monetários eventualmente surgidos em razão da pandemia. Se é verdade que o STJ tem cumprido com esmero sua função de unificar a jurisprudência nacional, ao zelar pela coerência de seus próprios precedentes, é também verdade que, antes que os primeiros litígios relacionados à Covid-19  cheguem a esta corte superior, podem surgir interpretações contraditórias nas instâncias inferiores. O artigo 7º se antecipa a esse problema ao garantir que o entendimento historicamente adotado pelo STJ será seguido com mais rigor pelos magistrados de primeiro e segundo graus. Essa uniformidade é salutar pois assegura o tratamento isonômico dos jurisdicionados e favorece a economia processual, na medida em que evita a prolação de decisões que seriam revertidas nas instâncias superiores.

Em segundo lugar, o artigo 7º poderá contribuir para a diminuição do número de ações que versam sobre a resolução ou revisão de contratos. De um lado, porque a uniformização da jurisprudência impede o surgimento de uma "loteria judicial', que é sempre um convite ao ajuizamento de demandas. De outro, porque o critério objetivo estampado no dispositivo será uma clara sinalização para os litigantes no sentido de que não vale a pena ajuizar uma ação que tenha por fundamento a variação cambial, inflacionária ou monetária, desencorajando esse tipo de pedido.

Os autores agradecem ao Professor Otavio Luiz Rodrigues Junior a cessão do espaço de sua coluna semanal para a publicação deste texto.

 


[1] Em defesa do dispositivo, ver: LIQUIDATO, Alexandre G. N. PL propõe criação do regime emergencial e transitório das relações jurídicas. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-02/direito-civil-atualpl-propoe-criacao-regime-juridico-emergencial-parte>. Acesso em: 10 maio 2020. Em favor da supressão da previsão, ver: SCHREIBER, Anderson; MANSUR, Rafael. O projeto de lei de regime jurídico emergencial: importância da lei e dez sugestões de alteração. Disponível em: <https://andersonschreiber.jusbrasil.com.br/artigos/827105547/o-projeto-de-lei-de-regime-juridico-emergencial-e-transitorio-do-covid-19>. Acesso em: 10 maio 2020.

[2] MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, Léon; MAZEAUD, Jean; CHABAS, François. Leçons de droit civil: introduction à l’étude du droit. 12. ed. Paris: Montchrestien, 2000. t. 1. v. 1. p. 252, n. 151.

[3] Para uma análise mais aprofundada, cf. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 133-134 e p. 226-237. 

[4] STF, RE 62.933-SP, Plenária, j. 08.11.1967; RE 61.443-RJ, 1ª T., j. 15.06.1973; RE 80.575-RJ, 2ª T., j. 20.09.1983.

[5] STJ, AgRg no AI 12.795-RJ, 3ª T., j. 23.08.1991; AgRg no AI 51.186-DF, 3ª T., j. 26.09.1994; AgRg no AI 58.430-SP, 3ª T., j. 07.02.1995; Resp 87.226-DF, 3ª T., j. 21.05.1996.

[6] STJ, AgRg no AI 12.795-RJ, cit.; AgRg no AI 51.186-DF, cit.

[7] STJ, RESp 1.321.614-SP, 3ª T., j. 16.12.2014.

[8] STJ, REsp 803.481-GO, 3ª T., j. 28.06.2007; REsp 936.741-GO, 3ª T., j. 03.11.2011.

[9] STJ, AgRg no REsp 1.518.605-MT, 3ª T., j. 07.04.2016.

[10] Art. 4º da ordonnance n. 2020-306 de 25 de março de 2020, posteriormente modificado pela ordonnance n. 2020-427 de 15 de abril de 2020.

[11] Art. 1º da ordonnance n. 2020-331 de 25 de março de 2020, que prorrogou o período “trégua invernal” instituído pelo Code de l'action sociale et des familles e pelo Code des procédures civiles d'exécution.

[12] A aversão da Corte de Cassação à teoria de imprevisão remonta ao célebre julgado do Canal de Craponne (Civ., 6 março 1876, D., 1876, I, p. 195, nota A. GIBOULOT) e foi mantida durante a primeira guerra (Civ., 4 agosto 1915, S. 1916, I, p. 17, nota A. WAHL).

[13] Cf. a exposição de motivos do projeto (PL n. 1179/2020, do Senado Federal).

[14] STJ, REsp 472.594-SP, 2ª S., j. 12.02.2003.

[15] STJ, REsp 67.226-SP, 6ª T., j. 21.08.1995; REsp 5.839/SP, 4ª T., j. 18.06.1991.

[16] STJ, REsp 1.433.434-DF, 1ª T., j. 20.02.2018.

Autores

  • Brave

    é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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    é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio, doutor em Direito, com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015). Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha (2015).

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    é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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