Opinião

Lei 13.994/20 não pode resultar em cerceamento de defesa

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12 de maio de 2020, 18h04

A propagação do vírus da Covid-19 será, por certo, um dos acontecimentos mais marcantes deste século. Ela trouxe a necessidade de adaptação dos indivíduos frente às adversidades e uma reflexão acerca da organização de um mundo globalizado.

Nesse sentido, vários setores da sociedade acabaram reinventando-se para prosseguir, minimamente, com as sua atividades. Exemplo disso foi o próprio Poder Judiciário que, embora já contasse com os incentivos do Conselho Nacional de Justiça para impulsionar o uso dos meios eletrônicos para resolução de conflitos, teve que se adaptar para que isso se tornasse uma realidade nos processos.

Uma das medidas tomadas foi a orientação dos tribunais para que as audiências fossem realizadas por meio virtual, para assim corroborar a necessidade do distanciamento social e, concomitantemente, preservar a duração razoável do processo.

Entretanto, no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, havia um impeditivo, visto que a Lei 9099/95 não trazia a disciplina para a realização de audiências à distância pelo uso dos meios digitais.

Assim, foi promulgada, no dia 24 de abril de 2020, a Lei 13.994/20, que busca regular a ocorrência de audiências de conciliação no formato não presencial, valendo-se dos recursos digitais para realizá-la. De proposição do deputado Luiz Flávio Gomes (PSB-SP), a lei já tramitava no Congresso Nacional desde 2019, mas sua aprovação e sanção foram realizadas em um momento oportuno para auxiliar nas medidas tomadas pelo judiciário para continuação das atividades em meio a pandemia.

No cenário dos Juizados Especiais Cíveis, a conciliação é um método valorizado e de extrema importância no seu rito. A conciliação pode ser caracterizada como um método autocompositivo, no qual um terceiro intervém para auxiliar as partes a comporem e solucionarem litígio incidente entre elas. Nos juizados, segundo o artigo 22 da Lei 9.099/95, ela será conduzida pelo juiz togado, leigo ou o conciliador.

Sua notoriedade pode ser percebida pela visualização do artigo 20 da Lei 9.099/95, no qual é previsto que os efeitos da revelia incidirão sobre o réu que não comparecer à audiência, mesmo sem apresentar defesa. Segundo Felippe Rocha [1], a conciliação foi o foco inicial para instituição de um Juizado de Pequenas Causas no Brasil, na década de 80, por mais que já houvesse previsão constitucional desde 1934.

No contexto da nova lei, a possibilidade da realização da audiência de conciliação por todos os meios de transmissão de sons e imagens em tempo real foi introduzida pelo § 2º no artigo 22 da Lei 9.099/95, ainda sinalizando, no mesmo dispositivo, que o resultado desta audiência deverá ser reduzido a escrito para que, se houver composição, seja homologada pelo juiz e torne-se um título executivo. O grande problema da nova norma foi a alteração realizada no artigo 23 da lei dos juizados.

Segundo a nova redação da norma, se houver recusa do demandado de participar da audiência ou o seu simples não comparecimento, o juiz togado proferirá sentença e resolverá a demanda. No primeiro cenário, é compreensível e não deve haver discussão acerca a consequência da incidência dos efeitos da revelia (artigo 20) perante a atitude do réu de recusar-se a comparecer à audiência. A controvérsia gira em torno da disposição acerca do não comparecimento.

O legislador, nessa oportunidade, deixou o dispositivo de uma maneira aberta, o que pode ocasionar consequências processuais indevidas a certos indivíduos. Vejamos, se analisarmos pelo espectro da internet, no Brasil, segundo PNAD Contínua TIC 2018 do IBGE [2], um quinto dos brasileiros ainda não tem acesso à rede mundial de computadores, o que já seria um empecilho caso o demandado estivesse enquadrado nesta estatística.

Além disso, a mesma pesquisa demonstra que, dos brasileiros que têm acesso à internet, um quarto deles não a utiliza e 41,6% dessas pessoas fizeram isso porque não sabiam usar a ferramenta. Assim, levando em consideração que os indivíduos podem postular sem o intermédio de um procurador e que, caso haja um constituído, não se recomenda o seu encontro por conta da Covid-19, percebe-se outra situação que poderia trazer consequências processuais não isonômicas ao demandado.

Ainda, não há nenhuma previsão acerca dos problemas que podem ocorrer para o acesso à audiência, tais como incompatibilidade do sistema, instabilidade da conexão, entre outros; muito menos sobre dificuldades que o conciliador possa ter por conta das ferramentas disponíveis no ambiente virtual ou sua adaptação a ele, mas sendo esse assunto cabível em uma análise posterior.

Ocorre que, identificadas essas problemáticas, a não resolução delas poderia vir a causar prejuízo à parte que, porventura, não tenha conseguido comparecer à audiência de conciliação de maneira virtual. Esse prejuízo é conflitante, porém, com alguns preceitos constitucionais, tais como o contraditório e o próprio direito à prestação jurisdicional.

Ademais, caso configurem-se tais prejuízos e persistam, a ideia de um processo célere e eficaz cairia, pois poderia ser alegado um cerceamento de defesa da parte, ensejando, inclusive, a nulidade da sentença produzida após o trâmite processual, o que de fato acarretaria em uma nova movimentação da máquina pública e uma consequente aplicação de recursos financeiros para tal.

Entende-se que em situações excepcionais é necessário tomarmos medidas extraordinárias. Entretanto, essas medidas não podem extrapolar uma garantia processual e constitucional de qualquer cidadão que busca a prestação jurisdicional para a resolução de uma demanda.

Destarte, é possível uma atualização legislativa nesse sentido, configurando ao demandado a oportunidade de justificar a sua ausência nas audiências por meios não presenciais, deixando seu deferimento a encargo do juiz. Assim não haveria, em grande parcela dos casos, prejuízo aos integrantes do processo por conta de nulidades futuras, bem como corrobora com a duração razoável do processo.

De igual maneira, para orientação daqueles indivíduos que não tenham a expertise no manuseio das plataformas eletrônicas, deve-se levantar a hipótese de um comunicado, feito pelos tribunais, apresentando uma explicação básica acerca da adoção dessa nova ferramenta processual, como também o método de utilização dos meios não presenciais passíveis de adoção pelos juizados.

Isso posto, a medida legal de estabelecer videoconferências em conciliações conduzidas pelos Juizados Especiais Cíveis é de extrema valia e necessidade, sendo aplicada em um momento oportuno. Contudo, embora os juizados tenham por preceito básico criar um ambiente para a conciliação dos litigantes, por meio de um procedimento menos formal, baseado na oralidade e celeridade, não se pode descartar as garantias constitucionais e a realidade da população brasileira na adequação do rito.

Com isso, deverá haver uma constante análise nesse sentido, não deixando com que haja o cerceamento de defesa do demandado e, futuramente, uma inclusão de um dispositivo legal que, de alguma maneira, permita à parte justificar o motivo da sua ausência e, com o reconhecimento do juízo, o devido adiamento da audiência, sem que ocorram os efeitos previstos no artigo 20 da Lei 9.099/95.

 


[1] ROCHA, Felippe Borring. Manual dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais: teoria e prática. 10ª Ed.São Paulo: Atlas, 2019.p. 2

[2] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. 2018. Disponível em < https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/10d5c0576ff8d726467f1d4571dd8e62.pdf > Acesso em 29/4/2020.

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