Opinião

O que será do tribunal do júri após a pandemia da Covid-19?

Autores

  • Izabel Nuñez

    é antropóloga e advogada pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. Integra a Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB-RJ.

  • Eduardo Januário Newton

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

12 de maio de 2020, 21h02

O tribunal do júri é uma problemática obrigatória (Bourdieu, 2009) do campo do Direito e, também por isso, desperta sentimentos e posicionamentos antagônicos. Em meio a uma crise pandêmica, que se mostra muito mais letal que uma simples "gripezinha", impôs-se um importante questionamento: qual é o futuro do dito tribunal popular? Por se tratar de um tema que nos intriga, quer como pesquisadora, quer como defensor atuante no júri, escolhemos esse como o objeto de análise deste texto.

Muito embora as atividades forenses se encontrem afetadas pela correta e necessária política de isolamento — já que ainda há governantes que atribuem aos CPFs um valor infinitamente maior que qualquer CNPJ e, assim, as sessões plenárias estejam suspensas, há, ao menos, uma certeza: ainda que se possa desejar o fim do tribunal do júri, o artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição da República impede que esse intento se concretize. A partir disso, surge a impossibilidade de sua extinção, de modo que resta saber até que ponto seu formato pode ser modificado, considerando a experiência de funcionamento remoto da atividade jurisdicional promovida pela pandemia. Pensamos, de partida, em quatro cenários possíveis, sobre os quais pretendemos, ainda que sucintamente, discorrer: I) realização das sessões de júri somente com a presença física do juiz e dos jurados; II) realização dos julgamentos virtualmente, com todos os envolvidos distantes; III) realização do júri somente com partes, jurados e juiz, sem o público e sem testemunhas; e IV) suspensão dos júris até que a situação se normalize.

O procedimento pelo qual são julgados os crimes dolosos contra a vida é marcado por uma ritualística própria. Para além do que é visualmente perceptível, como o uso das vestes talares, afigura-se como o único procedimento que conta com uma dimensão pública explícita, isto é, um espaço físico que comporta uma plateia. Ademais, a presença dos jurados, que caracteriza a "participação popular na Justiça", retira dos magistrados "togados" o poder de produção da decisão e a entrega aos "cidadãos comuns". Além disso, a dinâmica do julgamento em plenário, que prevê uma nova instrução, esta, para os jurados, evidencia a dimensão ritual do júri. No plenário, as teses da acusação e da defesa podem mudar, de acordo com o andamento do julgamento, o que demonstra que a produção da prestação jurisdicional está ligada, de modo muito estreito, com o ritual público de julgamento

A necessidade do trabalho remoto imposto neste momento, em correto e necessário atendimento às recomendações das autoridades sanitárias internacionais, baseadas em evidências empíricas, isto é, científicas, levou à produção da Resolução nº 314, por parte do Conselho Nacional de Justiça, que regulou o uso da videoconferência nesse período. A resistência ao uso das videoconferências, no caso do júri, a despeito do que se possa pensar em relação a outros contextos da Justiça Criminal, não constitui uma versão pós-moderna e tupiniquim do ludismo jurídico, mas, sim, uma preocupação que ganha sentido, ao analisarmos o funcionamento do júri e a dimensão da produção da verdade judiciária nesse ritual tão específico.

Se nas audiências criminais comuns a instrução probatória de modo remoto, por videoconferência, já nos leva a suscitar uma série de violações aos direitos e garantias processuais, no caso das sessões plenárias do júri o afastamento das partes, um possível isolamento dos jurados e a produção probatória à distância afetam diretamente a produção da decisão judicial, que depende da realização do ritual. Assim, se as sessões remotas poderiam ser justificadas pelo risco de contaminação diante da aglomeração de pessoas, não se pode olvidar do fato de que o tribunal do júri, a despeito de todas as suas solenidades e pompas, aos olhos de uns desnecessárias, é marcado por um dinamismo único, quando contrastado com os demais procedimentos previstos na legislação processual penal e civil. Tal característica fica muito clara ao pensarmos na instrução em plenário e nos debates. O contato imediato da defesa com o réu nesses momentos é imprescindível, o que se mostra impossível por meio do uso da videoconferência mesmo que o acusado se encontre acompanhado de outro defensor, no presídio ou onde estiver. Uma alteração no depoimento da testemunha, caso comparado com a primeira fase, ou mesmo uma contradição produzida diante dos jurados, pode não só mudar a estratégia defensiva, mas a própria forma de inquirição, o que indica a necessidade do contato da defesa com o acusado. Destarte, o manejo da videoconferência fragiliza a garantia da sua plenitude. Com isso já descartaríamos qualquer solução que significasse o afastamento do réu, do ritual.

O livre convencimento imotivado impede saber as razões para os votos dos jurados. Esse é um dos motivos pelos quais o procedimento se torna ainda mais importante, e o valor justiça necessita ser resguardado com mais atenção. A garantia do processo, por meio da forma, é pedra angular nesse procedimento de produção da verdade judiciária e precisa ser levado a sério. O risco de um julgamento contrário à prova dos autos em razão do tédio decorrente das demoras ocasionadas pelo sistema de transmissão de vídeo e som, as alterações na feição ou mesmo de voz do acusado no seu interrogatório, que eventualmente não possam ser percebidas pelos jurados, necessitam ser evitados, o que expõe o perigo no uso de tais tecnologias. O que nos leva a descartar, igualmente, a possibilidade da realização das sessões somente na presença de jurados e juiz. Ainda não podemos esquecer o risco da quebra da incomunicabilidade dos jurados e, por via reflexa, do sigilo das votações, o que impõe o afastamento da ideia do cidadão-juiz remoto.

Em razão dessa resistência ao uso das videoconferências, uma inquietação não pode ser olvidada: o que fazer se os plenários aprazados não se realizarem? Por mais que alguns possam considerar como uma resposta ingênua, é esse o momento propício para que os agentes do Poder Judiciário e do Ministério Público compreendam o caráter excepcionalíssimo que deveria ser atribuído à prisão processual e que a proporcionalidade surgiu como forma de preservação dos direitos e garantias fundamentais, o que nem sempre é observada por manifestações ou decisões performáticas.

O que será que será do júri na pós-pandemia? Descritos os quatro cenários possíveis, nos resta afastar todos que importem na ausência do réu. Ainda, qualquer possibilidade que afete a produção probatória diante dos jurados também se torna inconstitucional. Por fim, considerando que a solução da virtualização completa do ritual, como nos filmes de ficção científica, que criam realidades aumentadas, não estão a nosso dispor, só nos resta, em atendimento aos princípios de direito e garantia dos direitos dos acusados, manter a sua suspensão, evitando decisões definitivas mais gravosas e de modo que possamos, ao voltarmos a nos encontrar, produzir novamente os rituais, buscando a produção da justiça, em contexto e em ação. Para quem quiser usar soluções remotas, restará aos inquietos desafiar com seus risos. É esse o júri constituído por gente e por sofrimentos que são vistos pelos olhos humanos, e não por telas, que será amado e odiado.

 

Referência bibliográfica

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009 [1974].

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    é antropóloga e advogada, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. Integra a Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB-RJ.

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    é defensor público do Rio de Janeiro e mestre em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela Universidade Estácio de Sá. Foi defensor público do estado de São Paulo (2007-2010).

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