Opinião

A reparação dos danos morais sofridos em tempos de coronavírus

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12 de maio de 2020, 9h01

O estado de emergência em saúde pública (Lei Nacional nº 13.979/2020, Decreto Legislativo nº 6/2020 e Medida Provisória nº 940/2020) vigente no Brasil até 31 de dezembro de 2020, decorrente da pandemia mundial causada pelo coronavírus, exsurge aos aplicadores do Direito para uma necessária reflexão acerca do arbitramento do quantum compensatório a eventuais danos morais (ou abuso do direito) sofridos durante o estado excepcional de calamidade pública.

Como é cediço, as condutas ilícitas praticadas em períodos de calamidade pública sofrem maior reprovação quando sancionadas pelas diversas normas brasileiras.

No Direito Penal, por exemplo, a pena sempre é agravada quando o fato típico é praticado "em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido" (CPB, artigo 61, II, letra "j").

De igual forma, o agravamento da pena conforme o  § 2º do artigo 266 do mesmo diploma, que trata do crime de interrupção ou perturbação de serviço telefônico, quando praticado em vigência de estado de calamidade pública.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.089/90) igualmente, acerca dos crimes contra as relações de consumo prevê em seu artigo 76, inciso I, que: "São circunstâncias agravantes dos crimes tipificados neste Código: I serem cometidos em época de grave crise econômica ou por ocasião de calamidade".

No que se refere às relações jurídicas cíveis e de consumo travadas durante o estado excepcional, temos que o ordenamento brasileiro tem por premissa as cláusulas gerais da probidade e da boa-fé no que se refere às primeiras (CCB, artigos 113 e 422), assim como nas relações de consumo o respeito a dignidade da pessoa humana, saúde, segurança e a necessária observância dos princípios gerais do Direito, analogia, costumes e equidade (CDC, artigos 4º e 7º) em manifesta permissão ao diálogo de fontes.

Nesse pervagar, faz-se necessário que o aplicador do Direito, quando da difícil tarefa de arbitrar o quantum compensatório ou reparatório ao dano moral ou abuso do direito (CCB, artigo 187) sofrido pela vítima, leve em consideração a excepcionalidade do momento da ocorrência do fato jurídico, se ocorrido antes, durante ou após a vigência do estado de calamidade pública.

Sem ingressar aqui em discussões mais aprofundadas acerca do conceito de justiça e de sua aplicação aos casos concretos, lembramos en passant das reflexões do filósofo belga Chäim Perelman, para o qual sendo pouco provável a extração definitiva e universal do que vem a ser "justiça", deve como melhor escolha o julgador buscar o "que há de comum entre as diversas concepções de justiça, mesclando-as" [1].

Reconhecendo que os standards culturais de cada aplicador da norma seguramente refletem sobre a sua respectiva concepção de justiça, para adequadamente afastá-los, mitigando as influências que possam ter na aplicação justa do Direito, deve se extrair do ordenamento jurídico a proposição lógica a autorizar a melhor interpretação e aplicação.

Nesse diapasão, duas proposições podem vir a ser levadas em consideração quando das reflexões do intérprete para a aplicação da norma: a primeira consiste no agravamento do valor reparatório fixado, observando a condição da vítima no estado de calamidade. A segunda, ao nosso sentir equivocada na técnica, levando em consideração o aspecto econômico, consistente em eventuais dificuldades financeiras do agente causador do dano (geralmente pessoas jurídicas, sociedades empresárias), reconhecendo-se a sua necessidade de sobrevivência (entendendo-se a empresa como um fenômeno poliédrico, que interesse ao governo, fornecedores, sócios, trabalhadores, clientes) em um contexto de crise [2].

Dentro desse contexto, importa aqui relembrar a construção doutrinária e jurisprudencial brasileira na seara da responsabilidade civil, que em sua tradição levou ao reconhecimento das funções punitiva e dissuasória à indenização. Sendo a primeira voltada ao passado, tendo sob referência as circunstâncias do dano e o comportamento do seu agente causador. Já a segunda, mirando o futuro, objetivando coibir a repetição de comportamentos sequentes do ofensor (com raízes histórico-dogmáticas no punitive damages do sistema commom law[3].

Sob essas premissas, importa atentarmos para o fato de que o arbitramento da indenização se refere ao fato ilícito ocorrido [4], sendo singelo que esse arbitramento, ainda que ocorrendo em vigência do estado de calamidade pública, deverá levar em consideração a data do evento danoso (se antes, durante ou depois a pandemia).

Exatamente por isso, há de se reconhecer que a prática de ilícito civil (dano moral ou abuso do direito), durante a vigência de estado de calamidade pública, como inclusive previsto na legislação penal, evidencia maior carga de culpabilidade do agente, devendo o julgador na dosimetria do dano moral [5], ao sopesar a extensão do dano (artigo 944, CCB), levar esse aspecto em consideração.  

Por fim, não olvidemos que, por ser a solidariedade no Estado de Direito brasileiro um "princípio de natureza normogenética, situando-se assim na base ou se constituindo na 'ratio' fundamentante das regras jurídicas, que o dispensa de consagração expressa em preceitos particulares ou infraconstitucionais", os aplicadores devem sempre levar em consideração o mesmo quando da qualificação das normas sobre as condutas das pessoas, sejam elas naturais ou jurídicas [6].

Maiormente, principalmente, singularmente, em tempos de pandemia.

 


[1] CRUZ, André Luiz Vinhas da. A noção de justiça formal em Chaïm Perelman: igualdade e categorias essenciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 870, 20 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7607. Acesso em: 30 abr. 2020.

[2] Não se desconhece aqui contudo, a aplicação do Parágrafo Único do artigo 944 do Código Civil Brasileiro, que excepciona a regra geral do caput, mas que além de ser excepcionalmente aplicado, cinge-se somente a regrar a ocorrência rara da desproporção “gravidade” da culpa e o dano (Ex.: culpa grave — dano irrisório). Ao nosso sentir tal aplicação está gizada ao efeito punitivo da indenização, afastado do efeito dissuasório como veremos adiante.

[3] MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015. Pág. 389.

[4] Acerca do ilícito civil em tempos de pandemia, temos por valiosa a contribuição de Carlos E. Elias de Oliveira, em artigo publicado no Conjur em 10 de abril de 2020, sob o título "Coronavírus, responsabilidade civil e honorários sucumbenciais", em especial ao tratar da questão da "dúvida jurídica razoável como excludente da responsabilidade civil".

[5] Acerca da dosimetria do dano moral, o Ministro Alexandre Agra Belmonte traz importante contribuição doutrinária: BELMONTE, Alexandre Agra. Dosimetria do dano moral. Revista TST, Brasília, vol.79, nº 2, abr/jun/2013.

[6] CARDOSO DA SILVA, Geilton Costa. O Princípio Constitucional da Fraternidade Socioambiental. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho, Márcia Carla Pereira Ribeiro (Org). Sociedades e Direito. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2013. pág. 156. 

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