Opinião

O que a pandemia pode ensinar para Itália e Brasil sobre federalismo?

Autores

  • Hugo Abas Frazão

    é juiz federal no TRF da 1ª Região mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorando em Teoria dei Diritti Fondamentali Giustizia Costituzionale Comparazione Giuridica na Universidade de Pisa.

  • Valerio de Oliveira Mazzuoli

    é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa doutor summa cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em Mato Grosso São Paulo e Distrito Federal.

12 de maio de 2020, 6h01

As medidas tomadas contra a Covid-19 estão causando um enorme impacto sobre a forma de Estado, tanto no Brasil quanto na Itália. No entanto, isso não significa necessariamente um problema. De fato, após meses de contágio do novo coronavírus, os dois países podem testar seus modelos de "descentralização territorial" e aprender a transformar as dificuldades em oportunidades. Isso também implica o aprimoramento da ideia de "competências compartilhadas" (administrativas ou legislativas) entre os entes que compõem a divisão político-administrativa do Estado. Uma reflexão atenta sobre o papel do federalismo, à luz da atual crise, é tópico ainda pouco discutido em ambos os países, merecendo ser colocado no centro de nossa atenção.

Atualmente, no Brasil, embora o artigo 1º da CF de 1988 defina o Estado como uma federação simétrica "formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal", observa-se um crescente movimento de centralização do poder na esfera federal. Com efeito, tudo o que se busque fazer no país acaba dependendo do orçamento da União e/ou de legislação editada pelo Congresso Nacional. Isso confirma a visão de que, aos entes menores, é cada vez mais difícil decidir as políticas públicas que lhes concerne.

Trata-se de um cenário de desequilíbrio federativo, que se encontra ainda mais exposto neste momento, com o governo federal tentando assumir a gestão exclusiva de combate à Covid-19, valendo destacar a guerra de braço que trava com estados e municípios para definir quem pode impor medidas de quarentena mais rigorosas. Além disso, cite-se a luta política da União para aprovar uma PEC (10/2020) denominada "orçamento de guerra", que visa a praticamente esvaziar a atuação dos outros entes no tocante ao enfrentamento da crise.

Por outro lado, tradicionalmente, a Itália adota o modelo de Estado denominado "regionalismo" ao atribuir às suas Regiões a condição de "entes autônomos com estatutos próprios, poderes e funções segundo os princípios fixados na Constituição" (artigo 114 da Constituição italiana de 1947). Ocorre que, mais recentemente, o país europeu aprovou uma reforma constitucional (nº 03/2001) que altera parcialmente esse modelo, permitindo a diferenciação de autonomia entre regiões; isto é, o artigo 116, § 3º, da Constituição, introduzido pela citada reforma, passou a facultar formas e condições particulares de autonomia a uma ou mais regiões, mediante a aprovação de lei nacional específica, em relação a determinadas competências controladas, a priori, pelo governo central (como tutela da saúde, proteção civil, etc.).

Não obstante o propósito principal dessa reforma tenha sido o de tornar a Itália mais produtiva e gerencial, convém destacar que, até hoje, apenas as regiões Lombardia, Veneto e Emilia-Romagna se beneficiam dessa denominada "autonomia regional diferenciada" [1]. Todas as três são situadas ao norte e classificadas entre as mais ricas e industrializadas do país. Em contrapartida, outras regiões, especialmente as situadas ao sul e consideradas menos desenvolvidas, alegam que, na prática, a reforma tem acentuado a desigualdade dentro do território italiano, além de criar dificuldades para a colaboração inter-regional, resultados que vão de encontro ao sentido de "unità nazionale" previsto pelo artigo 87 c/c artigo 120, § 2º, da Constituição italiana.

Diante desses contextos, entende-se que as "questões federativas" relativas a uma organização político-administrativa eficiente, tanto no aspecto da descentralização do poder quanto no aspecto da solidariedade política, devem ser repensadas à medida que crescem as dificuldades de Brasil e Itália com a atual pandemia.

No que diz respeito à situação na Itália, mesmo antes de o presidente do Conselho de Ministros aprovar o lockdown do país, alguns governadores de regiões já haviam fechado seus territórios, muitas vezes a pedido e em colaboração com os prefeitos. Portanto, um vasto debate jurídico foi aberto, porque, de acordo com o artigo 77 da Constituição italiana, somente o Estado central tem competência para emitir medidas extraordinárias que interfiram na liberdade dos cidadãos, e não autoridades regionais ou locais, in verbis:

"O governo não pode, sem delegação das câmaras (cf. artigo 76), emitir decretos que tenham o valor do direito comum.

Quando, em casos extraordinários de necessidade e urgência, o governo adota, sob sua responsabilidade, medidas provisórias com força de lei, deve apresentá-las no mesmo dia para conversão às Câmaras que, mesmo dissolvidas, são especificamente convocadas e reúnem-se dentro cinco dias (cf. artigos 61 c. 2, 62 c. 2).

Os decretos perdem a eficácia desde o início, se não forem convertidos em lei no prazo de sessenta dias após sua publicação. No entanto, as câmaras podem regular as relações legais que surgem com base em decretos não convertidos."

No entanto, devido à espera prolongada, governadores e prefeitos se recusaram a aguardar a iniciativa do primeiro-ministro, alegando que, em caso de emergência, a demora poderia ter causado a morte de inúmeros cidadãos.

No Brasil, a situação parecia bastante semelhante, uma vez que muitos governadores e prefeitos adotaram medidas de austeridade para combater a pandemia, com a diferença de que, no modelo federal brasileiro, a todos os entes federativos são asseguradas competências em relação às questões de saúde. Nesse sentido, a Constituição brasileira afirma que a competência comum de "cuidar da saúde e assistência pública (…)" (artigo 23, II) pertence a União, estados-membros, Distrito Federal e municípios. Além disso, estabelece que cabe à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar simultaneamente sobre "(…) proteção e defesa da saúde" (artigo 24, XII), enquanto os municípios podem integrar essa legislação de acordo com o interesse local (artigo 30, I).

No contexto brasileiro, há, portanto, fundamento jurídico-constitucional para que governadores e prefeitos adotem medidas de contenção da Covid-19 em desacordo com o que tem proposto o governo federal. Nesse sentido, o STF reconheceu, em 22 de abril, que o estado-membro do Maranhão pode comprar respiradores hospitalares diretamente da China, e que é incabível o confisco ou requisição administrativa desses aparelhos por parte do presidente da República em qualquer hipótese, exceto em caso de decretação de estado de sítio ou de defesa, sob pena de afronta ao princípio federativo (ACO n. 3385).

Na Itália, ao contrário, praticamente toda a gestão da situação de pandemia é de competência do governo central em virtude do artigo 117, § 2º, q, da Constituição. Esse dispositivo constitucional confia matérias "profiláticas internacionais" à incumbência exclusiva do Estado central. No entanto, a disputa que envolvia autonomia regional e local na luta contra a Covid-19 na Itália foi parcialmente resolvida com a edição do Decreto-Lei nº 19 de 25 de março, pelo presidente do Conselho de Ministros. O artigo 3º, § 1º, dessa norma assegura que "as regiões (…) podem introduzir outras medidas ulteriores restritivas, como as do artigo 1º, § 2º, exclusivamente no âmbito das atividades de sua competência e sem afetar as atividades produtivas e as de relevância estratégica para a economia nacional".

No entanto, no que se refere aos municípios italianos, o mencionado decreto-lei não autorizou os prefeitos a adotarem novas medidas restritivas para lidar com a emergência, mesmo em caso de possível agravamento da situação local. Isto é, o artigo 3º, § 2º, da citada norma proíbe qualquer município de impor ordens em desacordo com as medidas emanadas pelo Estado central. Essa regra de limitação de poder, que incide sobre os entes municipais, já foi aplicada em importante decisão do Conselho de Estado italiano, que anulou uma ordem do prefeito de Messina sobre a pandemia. O ato municipal determinava uma série de restrições à entrada na Sicília através do estreito de Messina, nesse caso tentando enfrentar a emergência de saúde em desacordo com o governo central.

É útil citar a seguinte passagem da decisão do Conselho de Estado italiano, verbis:

"Portanto, a seção destacou que, na presença de emergências de natureza nacional, respeitando as autonomias constitucionalmente protegidas, deve haver uma gestão unitária da crise para evitar que intervenções regionais ou locais possam frustrar a estratégia complexa de gestão da emergência, especialmente nos casos em que não se trata apenas de fornecer ajuda ou realizar intervenções, mas também de limitar as liberdades constitucionais" [2].

No entanto, no que concerne às relações entre o Estado central e suas regiões, embora não seja formalmente uma federação, a Itália está, de facto, se aproximando do conceito de um "federalismo cooperativo" para a proteção da saúde pública. Na realidade, esse modelo de federalismo sustenta que os vários níveis de governo devem agir de maneira harmoniosa e equilibrada para combater efetivamente todas as necessidades de saúde, independentemente de onde venham a ocorrer. Diante dessa situação, o presidente do Conselho de Ministros e os presidentes dos Conselhos Regionais estão tentando alcançar o mesmo objetivo, ou seja, o apoio mútuo e a redução das diferenças políticas para atender conjuntamente às necessidades causadas pela pandemia, embora haja algumas diferenças entre regiões com relação à organização interna de seus serviços de saúde.

Sobre esse aspecto, há um problema muito semelhante no Brasil. A lei federal brasileira que trata de ações contra o vírus é a Lei nº 13.979/2020, a qual, no artigo 3º, § 7º, destaca que medidas de isolamento social e quarentena só podem ser impostas pelo ministro da Saúde ou por alguém por ele autorizado nas hipóteses que estabelece. Também, prescreve o artigo 3º, § 9º introduzido pela Medida Provisória nº 926/2020 que somente o presidente da República poderá decidir sobre o funcionamento das atividades essenciais. Contudo, na prática, essas regras não impediram os governadores e prefeitos brasileiros de estabelecerem medidas restritivas, o que está, de fato, causando um enorme conflito federativo em nosso país.

É importante observar que a lei federal brasileira conceitua "isolamento" como "separação de pessoas doentes ou contaminadas (…) de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus" (artigo 2º, I). Tal conceito é, como se nota, absolutamente restrito e dificulta o contingenciamento da Covid-19 no território brasileiro, pois exclui todas as demais pessoas não infectadas da redação legal. No entanto, tal não tem impedido que governadores e prefeitos estabeleçam regras mais rígidas de isolamento e que os próprios cidadãos brasileiros estejam conscientes da sua necessidade, tornando praticamente sem efeito a disposição da Lei nº 13.979/2020.

A propósito, destaque-se que a Constituição brasileira define o Brasil como um Estado federal simétrico de três níveis (União, estados-membros/Distrito Federal e municípios) com autonomia própria para proteger a saúde dos cidadãos, de acordo com os artigos 23, 24 e 30 da mesma Lei Maior. Porém, na contramão dessa estrutura simétrica, a legislação federal brasileira está inegavelmente centralizando o poder nas mãos do presidente da República e diminuindo a importância de outros entes federados para lidar com a crise.

Mais do que isso, pode-se dizer que, diversamente da Itália, o Brasil ainda não conta com uma legislação nacional contra a Covid-19, o que é a maior causa da atual "confusão federativa" em relação ao tema. Com efeito, em nossa visão, a Lei nº 13.979/2020 (nem após seu texto original ter sido alterado por Medida Provisória) não se presta a estabelecer regras de cooperação entre todos os entes federativos, nem cria uma gestão verdadeiramente unitária e uniforme de combate ao vírus. Na verdade, seu propósito é tão somente disciplinar o interesse federal stricto sensu, desconsiderando a importância dos demais entes como partes da coordenação estratégica. Desse modo, o viés empregado pela citada legislação prejudica o desempenho da política pública sanitária em território nacional. Assim, tem-se uma lei federal que não é, propriamente, nacional pois não atinge todo o País no enfrentamento do tema.

Nesse contexto, vale acentuar que o STF tem tomado decisões importantes para a preservação do equilíbrio federativo no Brasil. A primeira que destacamos é a que em sede de medida liminar datada de 15 de abril   assegurou que a interpretação da legislação federal sobre a crise sanitária no Brasil não pode subtrair a competência para proteger a saúde pública incumbida a outros entes federativos. Para a corte, agir de maneira diferente enfraqueceria o princípio federativo que disciplina o Estado brasileiro (ADI nº 6341).

Em outra decisão, de 9 de abril, o mesmo STF, respondendo a uma solicitação do Conselho Federal da OAB (ADPF nº 672), estabeleceu, no final, que "não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos (…)" [3].

Sem dúvida, a autonomia relativa à "descentralização territorial" não pode justificar qualquer abuso de poder por parte de prefeitos e governadores, como aquele cometido pelo prefeito do município italiano de Messina. No entanto, assim como esses governantes não podem abusar do poder que lhes é conferido, os governos centrais de ambos os países não podem subestimar a importância dos entes territoriais menores, os quais, muitas vezes, conseguem perceber a chegada de uma crise ou o seu agravamento antes de órgãos de abrangência nacional.

Será que esta crise ensinará aos dois países a importância de ter, efetivamente, uma forma descentralizada e colaborativa de Estado, sobretudo para enfrentar necessidades de natureza socioeconômica? Essa é uma pergunta que somente o tempo irá responder.

 


[1] VIOLINI, Lorenza. L’autonomia delle Regioni italiane dopo i referendum e le richieste di maggiori poteri ex artigo 116, comma 3, Cost. Rivista Associazione Italiana dei Costituzionalisti, nº 4/2018, 14 Novembre 2018.

[2]. Cons. St., sez. I, 7 Aprile 2020, n. 735 – Pres. Torsello, Est. Carpentieri.

[3]. STF, ADPF n. 672, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Medida Cautelar, 8 Aprile 2020.

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    é juiz federal no TRF da 1ª Região, mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorando em Teoria dei Diritti Fondamentali, Giustizia Costituzionale, Comparazione Giuridica na Universidade de Pisa.

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    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), membro consultivo da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) e doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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