Direito Civil Atual

Audiência de instrução virtual em tempos de epidemia

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12 de maio de 2020, 8h00

A virtualização do processo no Brasil impediu o colapso do Poder Judiciário em tempos de pandemia. Os atos seguiram sendo praticados e os prazos já foram retomados. O problema está concentrado nos processos físicos remanescentes — uma parte bem menor.

ConJur
Nos processos virtuais, as audiências de conciliação também já estão sendo realizadas no ambiente virtual. Os tribunais estão identificando um único gargalo para a integral virtualização do processo: as audiências de instrução. Atos administrativos do Poder Judiciário têm reputado incontornáveis os óbices à realização de audiências de instrução não presenciais.

O texto é para sustentar que não há óbice algum. As audiências de instrução podem e devem ser realizadas em ambiente virtual, nas plataformas disponíveis — especialmente a do Conselho Nacional de Justiça. Não realizar audiências de instrução paralisará milhões de processo desnecessariamente até fim do isolamento social, sem que ninguém possa apostar no prazo. É enorme o espaço do desconhecido na pandemia.

É claro que as audiências de instrução têm no ambiente físico um espaço mais apropriado, especialmente porque o CPC estabelece uma série de previsões que dependem do controle exercido pelo Juiz. Um controle que alguns estão reputando impossível no ambiente virtual.

O principal óbice cogitado diz respeito à incomunicabilidade das testemunhas (art. 456, CPC). Há também a vedação ao acompanhamento do depoimento pessoal por quem ainda não depôs (art. 386, § 2º) e a proibição do depoimento “pré-arranjado” e apoiado em escritos previamente preparados (art. 387 do CPC).Sem que haja o controle do espaço físico, é inegável a maior facilidade do acesso antecipado de uma testemunha ao depoimento de outra. Ou, ainda, a utilização de teleprompter ou afim durante o depoimento pessoal.

Nada disso é incontornável. Antes é importante compreender o que o CPC efetivamente pretende tutelar com tais controles na audiência de instrução.

A vedação ao acesso antecipado ao depoimento da parte ou testemunha pretende evitar que um depoimento “contamine” o da parte que ainda não depôs[1]. Proibir que o depoimento pessoal se paute em escritos tem finalidade similar: pretende garantir a autenticidade do relato, que é mais bem aferida a partir de uma oralidade espontânea.

A Resolução nº 314/2020 do CNJ chancela a possibilidade de realização de audiências de instrução por videoconferência, ressalvando eventuais “dificuldades de intimação de partes e testemunhas, realizando-se esses atos somente quando for possível a participação” (art. 6º,§ 3º). O CPC prevê (mesmo sem pandemia) que atos da audiência de instrução (depoimentos e oitivas) possam ser realizados por videoconferência (arts. 385, § 3º e 453, § 1º). A preocupação do CNJ está com eventual falha da infraestrutura para a realização virtual da audiência, mas não há nada sobre as repercussões da falta de controle do Juiz sobre o espaço virtual.

O Tribunal de Justiça do Paraná replicou, nos mesmos termos,previsão acerca da realização de audiências por videoconferência[2]. Questionada especificamente a acerca do fator incomunicabilidade das testemunhas, a Presidência do TJ-PR definiu que, não existindo consenso entre as partes, eventual risco de violação à incomunicabilidade não permitiria a realização do ato[3]. Claramente a realização da audiência de instrução ficou condicionada a um negócio processual (art. 190, CPC).

Na prática, a orientação deixa nas mãos dos advogados e partes a opção pela realização ou não da audiência de instrução enquanto perdurarem as políticas de isolamento social e não for possível realizar o ato presencialmente. Afinal, risco de eventual violação à incomunicabilidade sempre existirá diante da realização virtual do ato. Idêntica conclusão para o acesso antecipado ao depoimento pessoal e utilização de escritos previamente preparados.

O problema é que, mais frequente do que se admite, uma das partes não tem interesse em acelerar o processo, tornando improvável o negócio processual para a realização do ato. O princípio da cooperação, previsto no art. 6º do CPC, não evita essa espécie de inércia tática, amparada em Resolução do Poder Judiciário. Adiar indefinidamente uma audiência de instrução sob a pretensa justificativa de garantir a incomunicabilidade das testemunhas é um subterfúgio extremamente eficiente para impedir o prosseguimento do processo. O Poder Judiciário não deve deixar aberta essa janela para protelar.

Antes de tudo é necessário questionar: qual papel as garantias de autenticidade do teor do depoimento (no que se inclui a incomunicabilidade das testemunhas, vedação ao acesso antecipado aos depoimentos e proibição de depoimento baseado em escritos) ocupam no processo civil contemporâneo? É razoável atrasar indefinidamente os processos a fim de privilegiar essas garantias? A resposta é negativa.

Na prática forense, enquanto uma testemunha ou parte é inquirida pelo Juiz, as demais permanecem em local externo próximo à sala de audiência, aguardando chamada.Nunca houve irrestrita preocupação — seja dos advogados, seja dos Juízes ou servidores — em garantir uma absoluta incomunicabilidade entre as partes que irão depor.

Para reiterar, a doutrina reconhece que o principal a se impedir não é propriamente a comunicação, mas apenas evitar que testemunhas e partes acompanhem os depoimentos precedentes. E isso é possível evitar no ambiente virtual. Difícil seria apenas impedir a comunicação por smartphones, mas em audiências físicas a dificuldade é similar. Os smartphones nunca são recolhidos.Disfarçadamente, em tese, pode haver comunicação com quem aguarda na parte externa da sala de audiência.[4] E o CPC já prevê as videoconferências – que também prejudicam o controle.

Em geral, havendo mais de duas pessoas para depor,enquanto aguardam sua inquirição, as testemunhas e partes permanecem no mesmo espaço físico. Nunca há um servidor no papel de fiscal de incomunicabilidade.

É claro, esta seria uma prática reprovável e sancionável do ponto de vista processual e ético-profissional. Ocorre que as normas que pretendem garantir a autenticidade do depoimento sempre foram interpretadas como parâmetro de boa-fé processual, e não regra de incidência absoluta. E aqui fica claro que não há um óbice instransponível.

Contraria frontalmente a boa-fé processual, não há dúvida, que uma testemunha ou parte advogado assedie outra antes da sua inquirição. No entanto, isso nunca se materializou em uma preocupação exacerbada na garantia da absoluta ausência de qualquer tipo de comunicação entre depoentes ou acesso ao teor dos depoimentos.

Tanto é assim que o próprio CPC estabelece hipóteses em que é inegável a possibilidade de acesso antecipado aos depoimentos. A audiência de instrução pode ser interrompida e retomada em data posterior (art. 365); a prova testemunhal pode ser objeto de produção antecipada (art. 381 e art. 453, I); e a testemunha pode ser ouvida por carta precatória ou rogatória (art. 453, II). Em todos esses casos não há dúvidas de que, havendo interesse, os demais depoentes terão acesso ao teor do depoimento prestado antes de suas respectivas inquirições. Ainda assim, não há presunção de prejuízo ao processo.

Mesmo no processo penal — cuja base principiológica torna a formalidade processual ainda mais relevante do que no processo civil[5] – há diversos precedentes do STJ indicando que a violação à incomunicabilidade entre testemunhas não é, por si só, razão suficiente para que se decrete a nulidade do ato processual[6]. O prejuízo não é presumido, mas deve ser comprovado.

Há uma razão clara para o tratamento flexível que se confere ao eventual acesso antecipado ao teor dos depoimentos e à quebra da incomunicabilidade: a prova produzida será valorada pelo Juiz ao decidir. Há um amplo escrutínio do Juiz sobre o teor do depoimento pessoal ou da testemunha. É possível perceber se eventual violação à incomunicabilidade prejudicou a produção da prova.E como reconheceu o juiz federal Erik Navarro Wolkart, há toda uma (lícita) preparação prévia das testemunhas pelos advogados. O que chega para o Juiz já é uma fração do que poderia chegar[7]. A genuinidade absolta da testemunha é ficcional.

Não se pode buscar autenticidade de depoimentos e oitivas a qualquer custo porque, no processo civil contemporâneo, não mais se sustenta uma visão objetiva da verdade.

O processo civil é pautado por outros valores e interesses de relevância — como a tutela jurisdicional adequada e tempestiva e a efetividade do processo —, de modo que não pretende e “sequer tem condições de oferecer a verdade absoluta em seu trabalho de aferição dos fatos[8]. Uma busca eterna e incansável da mais perfeita e objetiva reconstrução dos fatos impede a atuação célere a Justiça.

É necessário que se trabalhe com uma noção de verdade factível e operacionalizável, tradicionalmente traduzida no processo por meio da verossimilhança e da argumentação[9].

A jurisdição se destina a garantir a pacificação social por meio de uma tutela jurisdicional adequada, célere e tempestiva. Não se pode dar à garantia da autenticidade dos depoimentos e oitivas a relevância cogitada. Ainda mais quando essa primazia se coloca em contraposição aos fins da jurisdição — especialmente quando impede o avanço do processo. Em um contexto de pandemia, com um isolamento social sem data para acabar, tratar a autenticidade absoluta como dogma intransponível é incogitável.

As audiências de instrução virtuais devem ser realizadas. A genérica alegação de risco eventual não pode justificar o adiamento indefinido. A tal risco doutrina e jurisprudência jamais deram relevante importância.

Mesmo porque se presume a boa-fé de todos os atores do processo. Advogados e partes devem atuar de forma proba, respeitando as vedações legais mesmo diante da facilitação à desonestidade proporcionada pelos meios eletrônicos(mesmo antes da pandemia). É este, por excelência, o lugar que ocupam as normas de integridade do depoimento: parâmetros de boa-fé processual.

Autorizadas as audiências de instrução virtuais, o Juiz passa a ter um papel mais relevante de direção do processo. Deve, primeiro, alertar a todos os envolvidos que condutas ímprobas não serão toleradas, cabíveis as respectivas sanções processuais e ético-profissionais. No mais, a valoração da prova deve levar em consideração as impressões do Juiz acerca da autenticidade do depoimento prestado. É e sempre foi assim.

Com isso, privilegia-se a celeridade e eficiência do processo. Com a audiência de instrução virtual, haverá um processo integralmente adaptado ao período de restrições da pandemia e também – por que não? — ao “novo normal”.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] ABELHA, Marcelo. Comentário ao art. 456. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.) et al. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1157; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 546.

[2] Decreto Judiciário nº 227/2020-DM

[3] Decisão nº 5126343 – P-GP-RORGA.

[4]TRT-16 00179305820165160015 0017930-58.2016.5.16.0015, Relator: JOSE EVANDRO DE SOUZA, Data de Publicação: 08/05/2019.

[5] Tendo em vista que o processo penal constitui instrumento de controle ao arbítrio do Estado diante de possíveis restrições à liberdade do acusado. Por todos: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Processo civil e processo penal: mão e contramão? In: Temas de direito processual, vol. 7, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 201-215.

[6] HC 166.719/SP,  Rel.  Ministro  GILSON  DIPP,  QUINTA TURMA, julgado em 12/04/2011, DJe 11/05/2011.

[7] WOLKART, Erik Navarro. Direito, processo e tecnologia (Webinar – Escola Superior da Advocacia Nacional). Disponível em: <https://www.instagram.com/tv/B_z3PymDCu5/?igshid=erqemr467132>. Acesso em: 07 de maio de 2020.

[8]MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Op. cit.

[9]MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Op. cit.

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