Contas à Vista

Eficácia do orçamento de guerra depende de capacidade de gerenciamento do Executivo

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de maio de 2020, 8h00

Spacca
Na mesma semana em que foi comemorado o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa (3/5) e os 20 anos da publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (5/5), outro tema de Direito Financeiro se impõe à análise nesta coluna quinzenal, que é o da promulgação da EC 106, que aprovou o chamado Orçamento de Guerra.

Até pelo nome que foi adotado, lembra os ensinamentos do economista John Maynard Keynes para a ultrapassagem dos escombros da 1ª Guerra Mundial (As consequências econômicas da paz, de 1919) até as perspectivas de uma nova guerra mundial (Como pagar pela guerra, de 1940), passando por sua obra máxima (Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936). Enfrentamos atualmente uma nova Guerra Mundial, desta vez contra um vírus inesperado, de proporções assustadoras, que nos obriga a revisitar as ideias de Keynes, que pregam a intervenção do Estado para combater um problema que afeta a todos, de uma forma ou de outra. Tudo indica que nos livros de história esta pandemia será registrada como o evento que inaugurou o século XXI, tal como a queda do Muro de Berlim encerrou o breve século XX, nas palavras de Eric Hobsbawm, concorrendo com a queda das Torres Gêmeas, em Nova Iorque, em 2001.

O Orçamento de Guerra, promulgado pelo Congresso Nacional como a Emenda Constitucional 106, é a resposta brasileira aos esforços de guerra contra a Covid-19, que está assolando muitas vidas e a saúde dos brasileiros (mais de 11 mil mortos e 160 mil contaminados até aqui, segundo as estatísticas oficiais subdimensionadas) e devastará nossa economia (previsão de queda do PIB superior a 7%, segundo as mais recentes projeções).

O mecanismo criado busca isolar os gastos com o combate à Covid-19 dos demais gastos previstos no orçamento anual. Trata-se de uma técnica de planejamento e gestão orçamentária para permitir que se afaste temporariamente a responsabilidade fiscal e a busca de certo equilíbrio, apontando para a necessária prioridade de gastos para a preservação da vida e da saúde da população brasileira e a manutenção das empresas. Isso certamente acarretará maiores dispêndios públicos com saúde e preservação dos empregos e das empresas, ao mesmo tempo em que gerará maior endividamento público, pois as receitas correntes cairão de forma drástica.

Quais as principais determinações da EC 106?

Estabelece para a União um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações que vigorará durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional decorrente de pandemia (art. 1º), com efeitos retroativos a 20/03/20 (art. 10), que se encerrará quando o Congresso Nacional declarar encerrado o estado de calamidade pública (art. 11), hoje datado para 31/12/2020, segundo o Decreto Legislativo 02/20.

É atribuída a possibilidade de o Poder Executivo Federal adotar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras, com flexibilização de forma temporal e objetivada da LRF e de exigências constitucionais (art. 2º), tal como foram afastadas as limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e à concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita (art. 3º). Está sendo permitida a contratação de empresas em débito com a previdência social (art. 3º, parágrafo único).

A regra de ouro financeira está sendo relativizada, ou seja, a União poderá se endividar para fazer frente a despesas correntes, e não apenas para despesas de capital (art. 4º, caput).

O pagamento dos juros e encargos da dívida pública foram expressamente ressalvados, como de hábito, podendo ser realizados (art. 6º).

Durante esse período pandêmico foi autorizado ao Banco Central a compra e venda de: (a) títulos de emissão do Tesouro Nacional, bem como de (b) ativos de empresas privadas que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro (art. 7º). Destaca-se que nestas operações deve ser dada preferência à aquisição de títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas — o que, embora meritório, parece algo de difícil operacionalização pois, qual pequena ou média empresa possui classificação de risco?

Para estas operações de crédito o Banco Central do Brasil editará regulamentação sobre exigências de contrapartidas, vedando que as empresas: (a) paguem juros sobre o capital próprio e dividendos acima do mínimo obrigatório estabelecido em lei ou no estatuto social vigente na data de entrada em vigor da EC; e (b) aumentem a remuneração, fixa ou variável, de diretores, membros do conselho de administração e dos administradores das empresas privadas envolvidas na operação, incluindo bônus, participação nos lucros e quaisquer parcelas de remuneração diferidas e outros incentivos remuneratórios associados ao desempenho (art. 8º). Trata-se de uma boa iniciativa, de muito difícil acompanhamento e controle, porém bastante adequada para a operação proposta.

A preocupação com a transparência de todas essas operações está bastante evidenciada na EC 106, como se vê: (a) o Ministério da Economia publicará, a cada trinta dias, relatório com os valores e o custo das operações de crédito realizadas (art. 4º, parágrafo único); (b) as autorizações de despesas relacionadas ao enfrentamento do covid-19 devem constar de programações orçamentárias específicas (art. 5º, I); e (c) o Banco Central do Brasil fará publicar diariamente as operações realizadas, de forma individualizada, com todas as respectivas informações, inclusive as condições financeiras e econômicas das operações, como taxas de juros pactuadas, valores envolvidos e prazos (art. 7º, §2º).

Havendo irregularidade ou descumprimento dos limites estabelecidos na EC, o Congresso Nacional poderá sustar o ato (art. 9º), o que aponta para o efetivo poder de controle do Legislativo Federal, que se espera seja fortemente exercido.

Também se verifica a preocupação com a prestação de contas apartada e continuada do orçamento geral, como se identifica nos seguintes itens: (a) as autorizações para as despesas serão avaliadas separadamente na prestação de contas bimensal que a Presidência da República deve encaminhar ao Congresso (art. 5º, II); e (b) o Presidente do Banco Central do Brasil prestará contas ao Congresso Nacional, a cada 30 (trinta) dias, do conjunto das operações de crédito realizadas (art. 7º, §3º).

Enfim, considerando um primeiro olhar sobre a EC 106, a impressão geral é que se trata de um bom produto legislativo, com pesos e contrapesos bastante adequados, mantido o poder de controle no Congresso, que se espera venha a ser exercido com atenção e responsabilidade. Na verdade, trata-se de uma moldura, cuja tela deve ser preenchida pelo Executivo, pois afasta de suas obrigações a busca pelo equilíbrio fiscal, retirando diversos limites financeiros estabelecidos pela Constituição e pela LRF, por período certo e para objetivos específicos. Nenhum presidente teve tanta folga para usar o orçamento nos últimos vinte anos.

Neste passo, espera-se que o Poder Executivo federal tenha capacidade para enfrentar a pandemia, criando um já tardio gabinete de crise, capaz de gerenciar com presteza e habilidade as medidas nacionais a serem adotadas, o que envolve as necessárias transferências governamentais para Estados e Municípios. Seguramente existem técnicos no governo federal bastante habilitados para esta tarefa — espera-se que eles sejam colocados à frente dessas funções e que tenham a possibilidade de exercer suas competências sem ingerências nefastas ao escopo pretendido.

Permanece a lição de Keynes, de que a intervenção do Estado nos momentos de crise seja determinante para retornarmos a trilhar os caminhos da boa governança de modo ágil e responsável. Não é uma fase para a adoção de um receituário liberal, pois a mão invisível do mercado foi atacada pela Covid-19 e precisa de uma boa dose de keynesianismo para ser recuperada.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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