MP no debate

Laicidade do Estado, liberdade religiosa e a crise do coronavírus

Autor

  • Roberto Livianu

    é procurador de Justiça em São Paulo doutor em Direito pela USP presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.

11 de maio de 2020, 8h00

A Constituição de 1891 fez do Brasil uma República Federativa laica, marcando a divisão entre Estado e Igreja além de estabelecer a alternância no poder por eleições e a organização do Estado na forma federativa.

É bem verdade que novas regras muitas vezes levam tempos para se tornarem realidade concreta, valendo lembrar que os dois primeiros Presidentes não foram eleitos — os Marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto — e quando começamos a ter eleições apenas votavam os homens ricos (voto censitário).

A ligação secular entre Estado e Igreja não seria desfeita de um momento para o outro e, 129 anos após, em pleno 2020, em muitos prédios públicos, inclusive da Justiça, há ainda muitos crucifixos, inclusive no STF e STJ — símbolos específicos de uma opção religiosa, que fazem parte do conjunto de escolhas da vida privada de cada indivíduo.

Quanto à Federação, somos 27 unidades e 5570 municípios, mas, mesmo assim, é sabido que sofremos da doença crônica do centralismo. O poder é ainda muito centralizado na figura da União, por maior que seja a autonomia jurídica e política de estados e municípios.

A pandemia do novo coronavírus, maior drama vivido pela humanidade desde a segunda grande guerra, veio testar esta autonomia da federação brasileira à medida em que o chefe do Poder Executivo Federal publicamente vem defendendo desde sempre posição contrária ao isolamento social, mesmo diante das evidências científicas que o recomendam e das orientações da Organização Mundial da Saúde.

Diante desta postura, Governadores e Prefeitos de todo o país, discordando compreensivelmente do posicionamento do Presidente, estabeleceram o conflito e a questão foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, que, em 15 de abril, reafirmou a concorrência das competências nesta matéria. Ou seja, declarou que a União pode legislar sobre o tema, mas entendeu que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes.

Tem-se tomado conhecimento de que os números da pandemia são diferentes nos distintos estados brasileiros (como era previsível), assim como dentro de suas regiões. Isto pode determinar distintas políticas de saúde pública de acordo com tais diferentes realidades, à luz da decisão da Suprema Corte.

Lamentavelmente, em oito capitais do país — Manaus, Recife, Rio de Janeiro, Fortaleza, Boa Vista, São Luís, Belém e São Paulo —, os sistemas de saúde estão beirando o colapso, tendo em vista a demanda de doentes e os números insuficientes de leitos com respiradores oferecidos, o que levou o Ministério Público do Rio a recomendar estudos sobre a decretação de lockdown, já estabelecido em várias cidades do país. Em Pernambuco e no Amazonas, houve pedidos do MP neste sentido, indeferidos pela Justiça.

Em Manaus, onde seria plenamente cogitável o lockdown (é de 90% o índice de ocupação de leitos de UTI em Manaus e 80% no Estado), a Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, no momento mais agudo da pandemia (10.099 casos de infectados com 806 óbitos, com 7,98% de letalidade — dados de 7/5), em pleno caos, com o isolamento como a única medida segura minimizadora da disseminação do vírus aprovou a reabertura de todas as igrejas em todo o estado.

A autonomia das unidades da federação e o princípio da separação entre os poderes não desobrigam o Poder Legislativo do Estado do Amazonas da observância da razoabilidade, já que o exercício do poder nunca pode ser absoluto e se afigura desarrazoado autorizar por lei a abertura de todo e qualquer templo religioso no Estado do Amazonas em virtude da suposta essencialidade, vez que tal situação dará certamente ensejo a aglomerações, por mais restritivas que sejam as regras de uso das igrejas.

A fé é importante e todos têm o direito de escolher tê-la ou de não a ter, mas o Brasil não tem religião oficial, pouco importando quantos têm e qual é e quantos não a têm em virtude de nosso caráter laico. De um lado, vemos o direito à fé e o exercício da autonomia federativa, mas de outro, o dever do Estado de cuidar da saúde pública e de salvar vidas.

O bom senso elementar evidencia que igrejas, por mais que a fé possa servir como “alimento para a alma” dos fiéis, não podem ser incluídas no rol restrito de atividades essenciais, como os hospitais e supermercados, cujo funcionamento é imprescindível para garantir saúde e abastecimento, em virtude do que se espera a prevalência do bem comum e da preservação da saúde pública, com o veto ao projeto, pelo Governador do Estado, para a supremacia do interesse público.

Autores

  • é procurador de Justiça em São Paulo, doutor em Direito pela USP, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático e comentarista do Jornal da Cultura.

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