Opinião

Crise da Covid-19 exige atenção maior às pessoas mais vulneráveis

Autores

  • Luanda Pires

    é advogada palestrante e especialista em Relações Governamentais Direito Antidiscriminatório Cultura Inclusiva e Diversidade & Inclusão com atuação na defesa dos direitos humanos em geral em especial direitos das mulheres da população negra e da população LGBTI+.

  • Felipe Daier

    é advogado do Centro de Cidadania LGBTI Edson Néris Sul da Prefeitura de São Paulo e coordenador do Núcleo de Acolhimento LGBTQIA+ da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

  • Fernanda Perregil

    é advogada e sócia do DSA Advogados mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP pesquisadora do Núcleo Trabalho Além do Direito do Trabalho da USP pesquisadora da Cielo Laboral e professora do Insper.

11 de maio de 2020, 18h31

A pandemia causada pelo coronavírus colocou o mundo em isolamento social, obrigando-nos, enquanto sociedade, a repensar e reestruturar nossas relações. A diminuição do contato físico entre as pessoas e o aumento da necessidade do uso da inteligência artificial fortalecem a ideia de que os impactos da Covid-19 modificarão a forma como as pessoas interagem com o mundo ao redor.

Ao mesmo tempo em que isola as pessoas e paralisa grande parte dos setores da economia, a pandemia torna o diálogo e a tecnologia essenciais para a gestão da crise, na medida em que respostas e decisões devem ser apresentadas em tempo recorde.

Sabendo que a evolução das relações humanas, historicamente, inicia-se ou é acelerada por crises, ressurge uma inquietação já existente nas sociedades de consumo: como conservar a humanização dentro das relações?

O dicionário Aurélio define humanizar como "inspirar humanidade, tornar-se humano, tornar-se benevolente". A solidariedade também está vinculada à humanização e tem como fundamento a dignidade humana.

No cenário de pandemia global, a consciência da necessidade de cooperação e a solidariedade podem ser os divisores para a superação da crise, o que também implica dizer que o momento exige um pensamento de coletividade. Isso interfere diretamente nos conflitos surgidos dentro das relações contratuais, relações de trabalho e interpessoais, colocando-os em rota de colisão com valores sociais sedimentados e discutidos ao longo de anos.

Os contratos exercem um importante papel social, apesar de serem negócios jurídicos e fonte de obrigações, também possuem como um de seus objetivos o desenvolvimento econômico.

Legitimando a necessidade de um pensamento humanizado e coletivo, de modo a evitar desequilíbrio e onerosidade excessiva para qualquer das partes (artigos 478 e 480 do Código Civil), o CC e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) determinaram que fossem observados valores éticos também nas relações contratuais, trazendo para o rol dos seus princípios a dignidade da pessoa humana e a boa-fé objetiva.

A visão social, trazida pela legislação vigente, além de evidenciar a importância de o interesse individual estar equilibrado com o coletivo, confirma que o Direito, por regular a vida em sociedade, deve acompanhar o dinamismo dos acontecimentos e as mudanças das necessidades humanas. A mesma linha de pensamento é observada na pandemia da Covid-19, em que o interesse coletivo passa a ser mais importante que o individual na vida em sociedade e a humanização trazida para o ramo dos contratos fica ainda mais necessária.

Fato é que a crise da Covid-19 provocou desequilíbrios, prejuízos financeiros e a necessidade de as partes buscarem soluções dentro dos contratos já firmados. A dúvida que surge é se esse momento pode justificar a revisão de um contrato ou a arguição de excludente de responsabilidade, pelo descumprimento de uma obrigação (artigo 393 do CC).

Nesse contexto, o momento exige a humanização das relações contratuais com a renegociação e readequação de cláusulas, o que vem sendo chamado hardship clause, para que as partes cheguem a um consenso e possam adimplir com suas obrigações, mantendo a relação contratual durante e no pós-pandemia.

No mesmo sentido, o Estado, por meio do Judiciário, vem sendo obrigado a fornecer respostas rápidas para aquelas relações em que os acordos não foram possíveis, tornando, em algumas situações, indispensável a sua intervenção para preservar a harmonia contratual, a dignidade da pessoa humana, o equilíbrio contratual e a manutenção da ordem econômica.

O lockdown completo ou parcial das empresas, causado pela crise da Covid-19, também impactou as relações de trabalho, afetando o cotidiano de cerca de 2,7 bilhões de trabalhadores. Esse número, segundo os dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) na segunda edição do "Monitor OIT: Covid-19 e o mundo do trabalho", representa quase 81% da força de trabalho do mundo.

Agora é importante que as organizações empresariais reconheçam a necessidade emergencial de conciliação entre lucratividade e humanização, além do reflexo que as decisões institucionais terão em seus valores e posicionamento de mercado. 

De acordo com a OIT, o enfrentamento da crise depende de políticas integradas e focadas em quatro pilares: apoio às empresas, ao emprego e à renda; estímulo à economia e ao emprego; proteção de trabalhadores no local de trabalho; e uso do diálogo social entre governos, trabalhadores e empregadores.

No mundo dos negócios, não é de hoje a importância de ações humanizadas no aspecto de sustentabilidade, meio ambiente e relações de trabalho. Existe uma preocupação com a "cidadania corporativa", termo bastante utilizado na superação de desafios mercadológicos a serviço de um desenvolvimento efetivamente sustentável, revelando-se como um novo valor no mercado corporativo.

Para evitar o aumento de passivo trabalhista, seja pela falta de cumprimento de obrigações, seja por soluções equivocadas tomadas durante esse período da Covid-19, as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionadas ao tema demonstram que as alternativas de solução com base no diálogo social, valor social do trabalho e pensamento coletivo sempre serão sustentáveis a longo prazo. A ideia sempre será utilizar as medidas disponibilizadas pelo governo, mas sem se distanciar dos princípios do direito à vida, saúde e dignidade.

Apesar de afetar toda a sociedade, a proporção dos efeitos da pandemia varia de acordo com critérios econômicos, étnico-raciais, de gênero e diversidade sexual, geopolíticos e etários das vítimas.

Ante a incerteza gerada pela crise, para a garantia de direitos humanos, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas de Direitos Humanos publicou orientações a respeito de medidas a serem tomadas pelos Estados, tais como: acesso à moradia, alimentação saudável, saneamento básico e tratamentos de saúde; defesa dos direitos de idosos, defesa dos direitos das pessoas com deficiência, mulheres e pessoas LGBTI; enfrentamento a estigmatização, xenofobia e racismo. 

Mesmo com as redes de solidariedade e suporte aos grupos de pessoas mais afetados pela pandemia, existem violações a direitos humanos que já acompanham a história do Brasil — genocídio negro e indígena, atraso na igualdade de gênero, péssima distribuição de renda, entre outras — e que ficam ainda mais expostos pela pandemia.

Isso torna necessário que o setor privado e os estados busquem alternativas para manter o cumprimento de obrigações na esfera de direitos humanos, atuando de forma eficaz, com ponderação e adequação, a fim de preservar o máximo de vidas possível.

Assim, o momento tem exigido escolhas e soluções rápidas de governo, Judiciário, Legislativo e das empresas, a fim de agirem em meio à crise que nos afeta como sociedade, mas que ameaça, principalmente, os direitos humanos básicos de pessoas em contextos mais vulneráveis. Levando em conta a necessidade de humanização no cuidado, no acolhimento dos vulneráveis, é preciso dar especial atenção aos grupos com menos capacidade de reagir de maneira isolada à paralisação das atividades.

Autores

  • Brave

    é advogada, especialista em Direto Contratual, coordenadora do Núcleo de Mulheres LBT's e Gênero na Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP e membro das comissões da Mulher Advogada e da Igualdade Racial da OAB-SP.

  • Brave

    é advogado do Centro de Cidadania LGBTI Edson Néris Sul, da Prefeitura de São Paulo, e coordenador do Núcleo de Acolhimento LGBTQIA+ da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

  • Brave

    é advogada, sócia no escritório Innocenti Advogados e membro da Comissão de Direito do Trabalho e da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!