Opinião

A integridade como estrutura paradigmática em tempos de Covid-19

Autor

  • Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega

    é coordenador acadêmico do Ibmec-Brasília corregedor-geral da Dataprev e conselheiro da Comissão de Ética Pública. Foi corregedor-geral da União/CGU e conselheiro do Coaf. É mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

11 de maio de 2020, 18h01

A inesperada pandemia do novo coronavírus apresenta-se como o desafio de uma geração. E a gravidade com que a crise se irradia por todos os continentes evidencia o seu potencial para impactar negativamente as políticas sociais e de saúde da população, além de também alcançar os mais diversos segmentos empresariais e impor severas restrições à realização de operações comerciais transnacionais. O Estado é chamado ao campo de luta, na urgência e imprevisibilidade das consequências deste cenário. E a resposta natural a essa indesejada conjuntura passa pela adoção de vigorosas medidas carimbadas pelo ineditismo, em suas mais variadas vertentes de atuação e em todos os níveis da Federação.

Além do incremento do número de novas demandas que chegam aos tribunais e requerem uma prestação jurisdicional célere e eficiente, a produção normativa, em âmbito legal e infralegal, igualmente se intensifica e cria ambiente jurídico adequado para que a função executiva do Estado possa adotar medidas de contenção da pandemia. Tudo somado, inaugura-se um novo conjunto de regras que trazem mudanças em arquiteturas regulatórias, mitigam exigências em procedimentos licitatórios e permitem uma atuação estatal mais ampla e incisiva do poder público diante de determinados direitos individuais.

E é assim que a incorporação de leis, decretos, resoluções e outros atos normativos ao nosso já extenso arcabouço jurídico, em âmbito nacional, estadual, distrital e municipal, passa a representar um impostergável e imenso desafio para gestores públicos e operadores do direito. Com efeito, a falta de tempo hábil para reflexão do alcance dessas novas regras e princípios, bem como a impossibilidade da preparação de estruturas internas e fluxos de trabalho para atender a este inédito conjunto normativo, desponta como um ponto fulcral, merecedor de toda atenção neste período de crise.

Contudo, é imperioso que se registre, com a ênfase necessária, que o princípio da legalidade se mantém e se reafirma como pedra angular do sistema democrático vigente e tem como um de seus fundamentais objetivos delinear limites à atuação da administração pública, de modo a coibir abusos e desmandos praticados por autoridades, nas mais variadas esferas de poder. E, em nome da legalidade, fica mantida e intocada a exigência da mais estrita e criteriosa vedação a qualquer tipo de atropelo oportunístico no campo normativo e regulamentar.

Ou seja, não obstante a manifesta urgência de iniciativas voltadas ao enfrentamento e atenuação dos efeitos da pandemia, é certo que a observância da arquitetura normativa vigente é mantida como requisito basilar, que emana do nosso Estado Democrático de Direito, harmonizado com a garantia constitucional dos direitos individuais. 

A Lei nº 13.979/20 e, em sua esteira, a sequência de medidas provisórias e decretos editados desde o início da pandemia, assim como todo o conjunto de regras emanadas de outros entes federativos, constitui justamente essa indispensável condição para que a administração pública possa implementar as medidas excepcionais exigidas neste momento.

Em consequência, cabe destacar, por exemplo, e de modo pontual, que além da redução das exigências para a celebração de contratos públicos, este novo e inédito conjunto de regras também dispõe sobre requisições administrativas de bens e serviços, limitações, de dia e horário, para o exercício de atividades econômicas, procedimentos para doações, restrição para a circulação de pessoas, obrigatoriedade da utilização de equipamentos de proteção (por exemplo, máscaras) em estabelecimentos comerciais dentre outros temas. É natural que tal panorama resulte em maior interação entre os setores público e privado ainda que, em algumas hipóteses, o primeiro atue somente como ente fiscalizador do cumprimento de certas obrigações.

Nesse contexto normativo, é evidente e previsível que o Estado venha a ter maior presença no cotidiano dos cidadãos, e que o exercício de suas funções também se manifeste com mais rigor e visibilidade na prática de atividades empresariais e em todo o ambiente de negócios. E a mobilização de elevados valores alocados em despesas emergenciais para atender ao estado de calamidade pública, tanto quanto a eventual falta de clareza e uniformidade para a aplicação de certas normas, podem criar um cenário que favoreça o surgimento de falhas de execução ou até mesmo a deliberada prática de desvios.

Os diversos elementos que compõem este singular período de crise são revestidos das condições necessárias para que a estrutura de incentivos para o cometimento de atos de corrupção seja alterada, com a criação de possíveis estímulos, indesejados mas assim possibilitados, para que agentes mal intencionados envolvam-se neste tipo de ilícito e obtenham ganhos indevidos em prejuízo de toda a coletividade.

A oportunidade gerada pela flexibilização de regras, a pressão para que o patamar de negócios e a lucratividade das empresas se mantenham em tempos de recessão e a racionalização da fraude, de modo a tornar o comportamento ilícito algo socialmente aceito e justificável, são alguns dos elementos que, presentes em determinadas conjunturas históricas, podem resultar em uma verdadeira tempestade perfeita para a facilitação da prática de atos de corrupção.

E é neste ambiente em que a eficiente implementação das políticas públicas de saúde apresenta-se como providência inarredável para que se possa lograr algum êxito na difícil batalha contra o novo coronavírus , que a busca por ferramentas para prevenir, detectar e remediar a existência de atos ilícitos torna-se ainda mais essencial.

Relevante anotar que o cometimento de desvios e fraudes é um fenômeno de indesejada eventualidade, com aptidão para impedir que as medidas sociais almejadas pelo Estado alcancem seus reais destinatários e o êxito das políticas de contenção à pandemia. Da mesma forma, é igualmente certo que a prática de irregularidades no ambiente empresarial e a obtenção de ganhos indevidos neste período, ainda que resultem em vantagens de curto prazo, podem acabar por comprometer, de modo irreversível, a reputação da empresa e gerar um passivo de corrupção processos sancionadores, multas, necessidade de ressarcimento ao erário, etc. que levará muitos anos para ser superado. Crime e castigo no horizonte do provável.

É diante deste quadro que ganha destaque a gestão dos programas de integridade corporativa. Pois é sabido e comprovado que as boas políticas de compliance e governança têm reconhecido potencial para mitigar riscos de corrupção em cenários de incerteza e crise, em que há mudanças profundas e de largo espectro em estruturas regulatórias e uma atuação mais intensa do Estado, em paralelo de enfrentamento à pressão, no lado empresarial, para o alcance de resultados positivos.

Oportuno mencionar que o debate relacionado à relevância da implementação e constante aperfeiçoamento dos programas de compliance ganhou corpo somente em período recente. A deflagração da operação Lava Jato, a maior exposição dos efeitos adversos para as empresas envolvidas em esquemas criminosos e o advento de um conjunto de leis que, além de dar mais transparência à gestão pública, permitiu uma atuação mais robusta por parte dos diversos órgãos de controle, são alguns dos fenômenos que impulsionaram a cultura da integridade empresarial.

Assim, é forçoso reconhecer que a exigência da adoção de práticas e ferramentas voltadas à prevenção e detecção de ilícitos não é exatamente uma novidade em nosso país.  De fato, a obrigatoriedade da criação de estruturas de controle para inibir a prática de irregularidades, principalmente em ambiente regulados tais como o setor financeiro ou o de seguros , já existia em corpo de diversos diplomas legais e normas expedidas por autoridades administrativas desses segmentos. Como exemplo, podemos citar as próprias regras para o combate à lavagem de dinheiro, previstas na Lei nº 9.613/98 e ampliadas pela Lei nº 12.683/12, que alcançam uma quantidade significativa de atores privados, para os quais é compulsória a implementação de mecanismos de prevenção.

Todavia, foi somente em período recente de nossa história que a discussão tornou-se mais ampla, sendo elevada a um patamar diferenciado. No campo jurídico, como engrenagens propulsoras desse movimento, é válido fazer alusão, entre outros, a alguns diplomas legais: Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), Lei de Conflito de Interesses (Lei nº 12.813/13), Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13), Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) e, notadamente, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13). Pode-se afirmar, com elevado grau de convicção, que tal arcabouço legal permitiu o avanço das políticas de combate à corrupção e gerou inegáveis estímulos para a criação de medidas de prevenção e remediação de ilícitos.

Especificamente em relação à Lei Anticorrupção, é apropriado consignar que a inauguração de um novo modelo de responsabilização cível e administrativa para pessoas jurídicas envolvidas em ilícitos contra a Administração Pública nacional e estrangeira, com a aplicação de duras sanções em um regime de responsabilização objetiva, e a previsão da possibilidade de acordos de leniência para atos de corrupção instrumento que até então tinha seu escopo limitado a delitos concorrenciais, nos termos da Lei nº 12.529/11 despertaram o maior interesse empresarial para a adoção da cultura de integridade corporativa. Vale ressaltar, inclusive, que, não obstante a legislação anticorrupção prever que a existência e aplicação desses mecanismos têm aptidão somente para mitigar a aplicação das penas estatuídas na norma, é evidente o potencial da lei para fomentar a ética e transparência em ambientes negociais.

Frise-se, ainda, que, ao regulamentar a Lei nº 12.846/13 em âmbito federal, o Decreto nº 8.420/15 elenca os instrumentos que devem estar presentes nesses programas de compliance empresarial (artigo 42) e que deverão ser considerados pelas autoridades, para efeito de redução de uma sanção ou mesmo para acompanhamento de compromissos assumidos em acordos de leniência. A título de exemplo, é citada a política de integridade voltada para empregados e colaboradores da empresa, a análise dos riscos relacionados à prática de ilícitos, a necessidade de registros contábeis completos e precisos e a criação de canais para o recebimento de denúncias.

Na esteira da regulamentação federal do tema, alguns estados optaram por exigir que os programas de integridade, em moldes muito semelhantes àqueles delineados no Decreto Federal nº 8.420/15, sejam obrigatoriamente implementados por pessoas jurídicas que celebram contratos com a respectiva administração pública. Ou seja, apesar de a Lei nº 12.846/13 não exigir a presença dessas ferramentas de compliance no meio empresarial, sua existência é requisito para que empresas possam relacionar-se com órgãos e entidades de certos entes da federação, tais como os estados do Rio de Janeiro (Lei nº 7.753/17), do Rio Grande do Sul (Lei nº 15.228/18) e do Amazonas (Lei nº 4.730/18), além do Distrito Federal (Lei nº 6.112/18).

Esse conjunto de normas, fortalecido pelos já mencionados fenômenos circunstanciais que permitiram a evolução do enfrentamento à corrupção em nosso país (operações policiais de grande alcance, elevada percepção dos custos da corrupção, danos à imagem de empresas envolvidas em escândalos, etc.), resultou em conjuntura favorável para que a adoção de mecanismos de integridade passasse a ocupar posição de relevo na pauta das políticas empresariais.

Entretanto, a chegada da crise da Covid-19 e de todos seus negativos desdobramentos sociais e econômicos podem colocar em risco uma parte das significativas conquistas até então obtidas. As dificuldades orçamentárias para a manutenção de políticas eficientes e contínuas de integridade corporativa, bem como a eventual presença de elementos de estímulo para a prática de irregularidades, pode resultar em indesejado retrocesso no tocante à criação de ambiente negocial probo e transparente, com as já citadas consequências reputacionais e financeiras que poderão se projetar, de modo muitas vezes imprevisível, por extensos períodos.

Por outro lado, esse cenário de adversidades igualmente tem potencial para consolidar o papel dos programas de compliance empresarial como um eficiente meio de prevenção. Com efeito, é justamente em conjunturas marcadas pela crise que o real alcance dessas medidas poderá ser verificado e a percepção de seus benefícios torna-se mais visível para a empresa, seus stakeholders e pela própria coletividade. Cabe ao gestor das políticas de integridade, a adaptação dessas ferramentas e uma nova priorização dos instrumentos de prevenção, detecção e remediação de ilícitos, com fundamento em matriz de riscos que considere a pandemia e a disseminação de seus efeitos nos negócios da pessoa jurídica.

Os programas de compliance empresarial podem ser justamente a arma necessária para impedir que os elementos excepcionais decorrentes da crise possam vir a incentivar o cometimento de desvios em prejuízo a interesses sociais. Os avanços no campo ético, já claramente identificados em determinados segmentos corporativos, e o incremento da percepção social dos custos da corrupção nos últimos anos têm potencial para frear o retrocesso na busca por mais probidade e transparência na relação entre interesses públicos e privados.

Na realidade, os próximos meses vão ser vividos como verdadeiro teste para a consolidação da cultura da integridade empresarial em nosso país. Portanto, a manutenção do irrestrito e inequívoco apoio da alta administração às políticas de compliance e a continuidade do cumprimento da ética nos negócios são requisitos essenciais nesse ambiente.

Finalmente, vale lembrar que a discussão em torno das boas políticas de integridade também alcançou o setor público. Dessa forma, foram várias as ações voltadas à criação de ambiente permeado pelos princípios da impessoalidade e moralidade em órgãos e entidades da União e em outros níveis de governo. Como exemplo, podemos citar o Decreto nº 9.203/17 em âmbito federal, o Decreto nº 46.745/19 no estado do Rio de Janeiro e o Decreto nº 47.185/17 no estado de Minas Gerais. Esse sistema de integridade dialoga e harmoniza-se com as medidas de compliance empresariais já ventiladas e representa mais um instrumento com aptidão para garantir a apropriada observância de regras de conformidade na pandemia.

As reflexões consubstanciadas neste artigo buscam despertar a atenção para mais um dos efeitos adversos da crise da Covid-19, que já se coloca como grave fenômeno de comoção social no Brasil e no mundo. A possibilidade da ocorrência de ilícitos e fraudes no período de crise constitui inegável e vigoroso elemento de risco para a consolidação de progressos conquistados na cultura da ética corporativa. Caberá às próprias políticas de integridade pública e de compliance empresarial, e a todos que têm o comprometimento com a manutenção e execução dos seus respectivos instrumentos, a superação destes obstáculos, de modo a permitir que o caminho para a transparência, ética e probidade continue a ser percorrido.

Autores

  • é professor de Compliance no IBMEC, membro do Conselho Consultivo da Comissão de Responsabilidade Corporativa e Anticorrupção da Câmara de Comércio Internacional e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

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