Opinião

Há riscos no rastreamento de dados durante a pandemia

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9 de maio de 2020, 6h33

Desde o reconhecimento da pandemia internacional da Covid-19 por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS) [1], em março de 2020, a dinâmica social foi substancialmente alterada diante das novas necessidades que o momento exige. Dessa forma, o cotidiano das pessoas foi afetado por medidas governamentais de isolamento e recomendações da OMS, contemplando quarentena e suspensão de algumas atividades comerciais, sobretudo pela edição da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro, que trouxe as medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública de importância internacional, decorrente da crise ocasionada pelo novo coronavírus.

Diante dessa nova realidade e das eventuais consequências da crise sanitária, entende-se que as ações governamentais (em sentido amplo: os atos normativos, de fiscalização, incentivo e planejamento) devem ser adotados com base nos aspectos científicos e sociais.

Neste sentido, a utilização de data tracking — ou rastreamento de dados, em livre tradução — tem se destacado como uma ferramenta crucial para contenção do vírus e tomada de decisões pelo poder público. Como exemplo, o estado de São Paulo [2] tem utilizado um "sistema de monitoramento inteligente", oriundo dos celulares da população, para contabilizar os resultados do isolamento social. Mais recentemente, após discussões no Poder Executivo [3], foi publicada a Medida Provisória nº 954 [4], de 17 de abril, que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [5]. Ocorre que tal Medida Provisória teve sua eficácia suspensa em medida cautelar concedida apor meio da decisão proferida pela ministra relatora Rosa Weber na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.387 do Distrito Federal. Posteriormente, a medida cautelar foi referendada e os dispositivos da Medida Provisória  954, de 2020, foram suspensos, após o julgamento pelo Plenário  do Supremo Tribunal Federal, o qual reconheceu que o compartilhamento de dados em questão significaria violação à intimidade e sigilo de dados dos titulares.

O data tracking por meio de geolocalização dos telefones móveis foi utilizado em diversos países [6], para controle do movimento de pessoas, indicando os resultados do isolamento social, com intuito de mitigar o contágio do novo coronavírus. Não obstante o tratamento dos dados para essa finalidade seja uma realidade, ainda paira uma dúvida sobre o conflito entre a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados), o direito fundamental à privacidade (artigo 5º, X, da Constituição Federal) e o próprio interesse público.

O artigo 5º, X, da Constituição Federal prevê que a privacidade é uma garantia fundamental dos indivíduos ao estatuir in verbis: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Do mesmo modo, a LGPD visa a proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade e a autodeterminação informativa, diante do tratamento de dados de pessoas naturais realizados por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado (artigos 1º e 2º da Lei nº 13.709, de 2018).

Por outro lado, a LGPD estabelece as diretrizes para o tratamento dados de pessoais como as hipóteses para o tratamento de dados (artigo 7º), os direitos do titular, as responsabilidades dos agentes de tratamento (artigos 37 e seguintes), além das sanções cabíveis por violação às disposições. Vale ressaltar que a LGPD apenas entrará em vigor em 3 de maio de 2021, por força da Medida Provisória nº 959, de 29 de abril de 2020.

Sabe-se que a intenção da Administração Pública é a vigilância dos dados pessoais para a execução de políticas públicas previstas em leis, que inclusive é hipótese de tratamento prevista no artigo 7º, III, da LGPD. No entanto, a LGPD ainda não vigora e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (artigo 55-A da Lei nº 13.709, de 2018), ente responsável pela centralização das informações e controle, ainda não está formalmente constituída, deixando uma lacuna para uma potencial violação ao direito fundamental da privacidade pela violação da autodeterminação dos cidadãos pelo aparato estatal. Por conseguinte, há inegável disparidade informacional no encadeamento instituído entre o titular diante ao Estado, uma vez que este deteria a maior porção referencial e, portanto, mais haveria maior poder de coerção.

Diante do exposto, conclui-se que a questão central a ser enfrentada é que o tratamento de dados pela Administração Pública durante o estado de emergência em saúde pública deve ter a finalidade de preservação da coletividade e da vida (artigo 1º, § 1º, da Lei nº 13.979, de 2020, e artigo 1º, III, da Constituição Federal ). Além disso, ainda que a LGPD não esteja em vigor em sua totalidade [7], os princípios dispostos no artigo 6º da LGPD devem ser observados, quais sejam: I) finalidade; II) adequação; III) proporcionalidade; IV) necessidade; V) livre acesso; VI) qualidade dos dados; VII) transparência; VIII) segurança; IX) prevenção; e X) não discriminação.

Esses princípios são extensões do direito fundamental à proteção de dados, objeto da Proposta de Emenda à Constituição nº 17, de 2019, e convergem no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Por fim, entende-se que a LGPD é fundamental para a regulação das atividades de tratamento, que, como visto, são essenciais às medidas governamentais de contenção dos efeitos do surto da Covid-19 no Brasil, sendo que a prorrogação que ocorreu por força da Medida Provisória nº 959, de 29 de abril, poderá gerar insegurança jurídica sobre as regras e sanções aos eventuais descumprimentos.

Referências bibliográficas
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em 21 de abril de 2020.

GLOBO. G1. Após intervenção de Bolsonaro, uso de dados de celulares para monitorar isolamento é suspenso. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/13/governo-adia-uso-dados-de-celulares-para-monitorar-deslocamento-das-pessoas.ghtml. Acesso em 17 de abril de 2020.

GLOBO. G1. Taxa de isolamento social em São Paulo vai de 57% a 55% neste sábado; governo quer 70%. Disponível em < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/12/isolamento-social-em-sao-paulo-e-de-55percent-aponta-sistema-do-governo-ideal-para-prevencao-de-covid-19-e-70percent.ghtml>. Acesso em 17 de abril de 2020.

OMS — Organização Mundial da Saúde. WHO announces COVID-19 outbreak a pandemic. In: Coronavirus disease outbreak, 12 de março de 2020. Recurso eletrônico. Disponível em http://www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronavirus-covid-19/news/news/2020/3/who-announces-covid-19-outbreak-a-pandemic. Acesso em 17 de março de 2020.

REUTERS. Technology News. Rift opens over European coronavirus contact tracing apps. Disponível em https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-europe-tech/rift-opens-over-european-coronavirus-contact-tracing-apps-idUSKBN2221U0. Acesso em 21 de abril de 2020.

STF  Supremo Tribunal Federal. STF recebe ações sobre compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações durante pandemia. Disponível em http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441728. Acesso em 21 de abril de 2020.

 


[1] OMS Organização Mundial da Saúde. WHO announces COVID-19 outbreak a pandemic. In: Coronavirus disease outbreak, 12 de março de 2020. Recurso eletrônico. Disponível em http://www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronavirus-covid-19/news/news/2020/3/who-announces-covid-19-outbreak-a-pandemic. Acesso em 17 de março de 2020.

[2] GLOBO. G1. Taxa de isolamento social em São Paulo vai de 57% a 55% neste sábado; governo quer 70%. Disponível em < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/12/isolamento-social-em-sao-paulo-e-de-55percent-aponta-sistema-do-governo-ideal-para-prevencao-de-covid-19-e-70percent.ghtml>. Acesso em 17 de abril de 2020.

[3] GLOBO. G1. Após intervenção de Bolsonaro, uso de dados de celulares para monitorar isolamento é suspenso. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/13/governo-adia-uso-dados-de-celulares-para-monitorar-deslocamento-das-pessoas.ghtml. Acesso em 17 de abril de 2020.

[4] Brasil. Medida Provisória nº 954, de 17 de abril de 2020. Disponível em http://www.in.gov.br/web/dou/-/medida-provisoria-n-954-de-17-de-abril-de-2020-253004955. Acesso em 21 de abril de 2020.

[5] STF – Supremo Tribunal Federal. STF suspende compartilhamento de dados de usuários de telefônicas com IBGE. Disponível em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442902&ori=1. Acesso em 08 de maio de 2020.

[6] China, Singapura e Israel são exemplos de países que utilizam aplicativos de geolocalização. Alguns países na Eurora têm apresentado projetos isolados sobre a temática, como a Alemanha ou Reino Unido, mas há projetos de toda a União Europeia baseada em geolocalização para redução e acompanhamento do contágio. In: REUTERS. Technology News. Rift opens over European coronavirus contact tracing apps. Disponível em https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-europe-tech/rift-opens-over-european-coronavirus-contact-tracing-apps-idUSKBN2221U0. Acesso em 21 de abril de 2020.

[7] CF, Artigo 65. Esta Lei entra em vigor: I – dia 28 de dezembro de 2018, quanto aos arts. 55-A, 55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B; e II – em 03 de maio de 2021, quanto aos demais artigos (Alterada pela Medida Provisória nº 959, de 29 de abril de 2020. In: BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em 21 de abril de 2020.  

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