Opinião

Sobre o conhecimento de ADI prejudicada como ADPF

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8 de maio de 2020, 10h18

Há controvérsia, no âmbito doutrinário, acerca da (im)possibilidade de se prosseguir com o julgamento de ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto haja sido revogado, alterado ou se exaurido [1]. O principal argumento a favor da prejudicialidade é o de que a função do controle abstrato de normas seria a de resguardar a ordem constitucional e, por isso, a análise de efeitos concretos da norma estaria restrita às vias difusas [2]. Em contraste, a justificativa precípua contrária ao reconhecimento da perda do objeto é no sentido de que a lei revogada/modificada continua sendo parâmetro de controle de atos praticados durante a sua vigência. Assim, o controle abstrato se prestaria a eliminar as "consequências inconstitucionais" [3] da norma que deixou de existir.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema também não tem se mostrado consistente ao longo dos anos [4]. Entre o início dos anos 1960 e a segunda metade da década seguinte, prevaleceu o entendimento segundo o qual "revogada a lei arguida de inconstitucionalidade, julga-se prejudicada a representação" [5]. Em 1978, o STF passou a admitir que, quando a lei impugnada fosse revogada no curso da ação, "não se julga prejudicada a representação de inconstitucionalidade" [6]. Durante a década de 1980, ademais, alguns julgados afastaram a prejudicialidade da ação direta "em virtude dos efeitos concretos que resultaram dos dispositivos impugnados, enquanto vigentes" [7].

A partir de 1990, verifica-se certa predominância do entendimento no sentido de que a alteração/revogação/exaurimento da norma impugnada impediria o prosseguimento da ação direta, em face da perda de objeto [8]. Nada obstante, a jurisprudência do STF tem excepcionado algumas hipóteses. Relativamente à prejudicialidade de normas que tenham sido integralmente revogadas ou tenham sua eficácia exaurido, extraem-se duas exceções.

A primeira diz respeito a casos em que se identifica fraude à jurisdição do Supremo Tribunal Federal; i.e., quando houver indícios de que a autoridade legislativa revogou a lei apenas para se evitar a declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc. Afinal, como se sabe, a declaração de inconstitucionalidade produz, em regra, efeitos retroativos, fulminando todos os atos praticados com base na lei invalidada. A revogação, porém, teria alcance apenas pró-futuro. Nessa linha, seguiu, e.g., o julgamento da ADI 3.306, em que foi reconhecida a tentativa de manobra em razão de o ato normativo que buscou revogar a norma impugnada ter sido proposto após o ajuizamento da ação direta [9]; da ADI 951-ED, no qual o STF decidiu que a autoridade legislativa não poderia comunicar a revogação da norma após julgamento desfavorável do mérito da ação direta [10], entre outros.

Destaque-se, a propósito, que a exceção referente à tentativa de manipulação da jurisdição também é aceita nos Estados Unidos da América, onde a regra geral é a da prejudicialidade (mootness doctrine). Em City of Mesquitte v. Aladdin’s Castle [11], a Suprema Corte estadunidense deliberou acerca de lei municipal que criara restrições para a abertura de centros de lazer no âmbito do município de Mesquitte, Texas. Logo que a lei teve a constitucionalidade judicialmente desafiada, o legislativo local alterou a redação da norma, na tentativa de evitar decisão judicial desfavorável. Mesmo com a derrogação do texto, a Suprema Corte resolveu a discussão de fundo, assentando que havia indícios de que o município reeditaria a norma caso não houvesse a declaração de inconstitucionalidade [12].

A segunda exceção, por sua vez, consiste na hipótese em que evita reconhecer a prejudicialidade de ações diretas que tenham por objeto leis de eficácia temporária, quando: I) houve impugnação em tempo adequado; II) a ação foi incluída em pauta; e III) seu julgamento foi iniciado antes do exaurimento da eficácia [13].

Quanto a normas que apenas tenham sofrido modificações ao texto, o STF admitiu uma exceção: afastar a prejudicialidade em casos nos quais a alteração da lei impugnada não se mostre substancial, mas apenas simbólica. É dizer: quando, a despeito da modificação, as razões de inconstitucionalidade subsistem, o requerente da ADI poderia aditar o pedido inicial, viabilizando-se o prosseguimento do julgamento da ação direta [14].

Como se vê, tem prevalecido, no âmbito do STF, o entendimento de que, em regra, não se deve dar prosseguimento a ações diretas de inconstitucionalidade que tenham por objeto leis revogadas/alteradas/exauridas. Ainda que seja assim, é preciso reconhecer que não há óbice para que ações diretas "supervenientemente prejudicadas" sejam conhecidas como arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). De fato, é certo que "o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a fungibilidade entre ação direta de inconstitucionalidade e arguição de descumprimento de preceito fundamental" [15], até mesmo porque “existe relação de subsidiariedade entre essas ações" [16].

Destaque-se, ainda, que, na forma do parágrafo primeiro do artigo 4º da Lei 9.868/99, mostra-se cabível a arguição sempre que houver lesão a preceito fundamental, por parte do poder público, "sem que haja outro meio eficaz para saná-la" [17] (princípio da subsidiariedade). É dizer: sempre que não for admissível o manejo de outra ação do controle concentrado (ADI, ADC), deve ser possível o ajuizamento de ADPF, já que o controle subjetivo, em tese, não é capaz de proteger o preceito fundamental com a mesma amplitude e eficácia [18] das vias diretas. Por isso mesmo, a jurisprudência do STF tem afirmado que "a existência de recursos extraordinários não devem excluir, a priori, a utilização de ADPF em virtude da feição objetiva dessa ação" [19].

Dessa forma, caso o STF venha a assentar a impossibilidade de seguimento de ação direta por perda superveniente de objeto, a hipótese não seria de arquivamento do feito. Em vez disso, como demonstrado, é possível que a ADI seja conhecida como ADPF, viabilizando-se o julgamento da inconstitucionalidade dos efeitos da norma impugnada durante a sua vigência.

 


[1] Sobre o tema, v. Jorge Galvão e Sophia Guimarães, A subjetivação do controle abstrato e a perda de objeto em ADI, Revista Consultor Jurídico, jul./2019.

[2] Nesse sentido, v. Zeno Veloso, Controle Jurisdicional de Constitucionalidade, 1999, p. 67, apud, Jorge Galvão e Sophia Guimarães, A subjetivação do controle abstrato e a perda de objeto em ADI, Revista Consultor Jurídico, jul./2019.

[3] Sobre o tema, v. Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional: o controle de constitucionalidade de normas no Brasil e na Alemanha, 6a Ed., 2014, p. 173 e ss.

[4] V., sobre o tema, Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro, 7a Ed., 2016, p. 210. A propósito, Ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento da ADI 951 ED/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 21.06.2017, traçou preciso relato histórico dessa variação jurisprudencial. Cf., ademais, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, 14ª Ed., 2019, p. 1.130 e ss.

[5] STF, RP 974, Rel. Min. Cordeiro Guerra, DJ 30.09.1977.

[6] STF, RP 971, Rel. Min. Djaci Falcão, DJ 07.11.1978.

[7] STF, ADI-MC 543, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 04.10.1991. No mesmo sentido, e.g., STF, RP 1.068, Rel. Min. Cunha Peixoto, DJ 13.11.1981; STF, RP 1.224, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ 10.05.1985.

[8] A despeito da predominância dessa posição, trata-se de questão ainda em aberto, a ser definida por esse Eg. Supremo Tribunal Federal. De fato, uma proposta de ampla revisão da jurisprudência prevalecente está posta na ADI 1.244, em que o eminente relator, Ministro Gilmar Mendes, já votou no sentido de afastar a ocorrência de perda de objeto (ADI 1.244, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento pendente). O julgamento, porém, ainda não chegou a termo, em razão de pedido de vista. Na ADI 3.106, o plenário desse Eg. STF chegou a afastar a prejudicialidade da ação, exatamente para decidir acerca dos “efeitos da lei inconstitucional no período em que vigorou” (ADI 3.106, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 30.05.2019). V., nesse sentido, ADI 709, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 20.05.1994.

[9] STF, ADI 3.306, Re. Min. Gilmar Mendes, DJe 08.03.2019.

[10] STF, ADI 951 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 03.07.2017.

[11] City of Mesquitte v. Aladdin’s Castle, 455 U.S. 283 (1982).

[12] V., a propósito, Erwin Chemerinsky, Constitutional Law: Principles and policies, 5a Ed., 2018, p. 660.

[13] STF, ADI 951 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 03.07.2017.

[14] Nesse sentido, citem-se, a título ilustrativo, ADI 2.418: o objeto consistia em dispositivos do Código de Processo Civil de 1973. A redação dada aos dispositivos havia sido singelamente alterada com a promulgação do Código de 2015. No entanto, essa Eg. Corte acolheu o pedido de aditamento da inicial, sob o fundamento de que a nova redação não teria comprometido “o que era essencial” na legislação anterior (ADI 2.418, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 05.12.2016) e ADI 763: não há perda de objeto quando o suposto vício de inconstitucionalidade permanece no ordenamento jurídico (ADI 763, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 04.12.2015).

[15] STF, ADPF 72, Relª. Minª. Ellen Gracie, DJ 02.12.2005.

[16] STF, ADPF 72, Relª. Minª. Ellen Gracie, DJ 02.12.2005.

[17] Lei n. 9.868/99: “Art. 4. […] § 1o. Não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade” (destaque acrescentado).

[18] ADPF 33/PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 07.12.2005.

[19] ADPF 33/PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 07.12.2005.

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