Opinião

As estratégias da União Europeia para combater a pandemia da Covid-19

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8 de maio de 2020, 16h41

A pandemia da Covid-19 colocou um desafio sem precedentes para grande parte dos países. A paralisação econômica e afetou as cadeias globais de produção, distribuição e circulação. Os impactos estão sendo sentidos tanto pelo lado da oferta quando pelo lado da demanda, a partir do adiamento de despesas de consumo e investimento, causado pelo quadro de elevada incerteza, que vem se refletindo em um aumento da aversão ao risco por parte dos agentes econômicos. Mesmo sem vislumbrar a data final da crise de saúde pública e na iminência de uma crise econômica que promete ser tão ou mais devastadora do que a de 2008 ou a de 1929 —, já se sabe, de antemão, que a tempestade é violenta e necessitará que se cresça à altura do desafio. Nesse sentido, é fundamental pensar em políticas para mitigar o impacto dos danos.

É nesse espírito que se vem fazer breves considerações acerca de alguns dos aspectos econômicos e financeiros trazidos pela Resolução de 17 de abril, aprovada pela União Europeia [1], que visa a estabelecer uma ação coordenada para combater a pandemia e suas consequência. Por certo, a realidade brasileira é bastante diversa da europeia, entretanto, não se pode desprezar o que outros países estão fazendo para enfrentar a crise. Já que nem a ciência jurídica e nem a ciência econômica estão sujeitas a testes laboratoriais, a história e a comparação de sistemas são duas ferramentas que não podem ser ignoradas. Considerando que a presente crise não encontra precedente histórico, mais importância ainda ganha a comparação com modelos estrangeiros, e seu uso como ponto de partida para o debate e para pensar alternativas aderentes à realidade nacional. 

A resolução veio dar resposta à constatação fática de que, inicialmente, as respostas à Covid-19 ocorreram primordialmente à nível doméstico. Dessa forma, procurou-se estabelecer linhas gerais para cooperação e coordenação entre os Estados-membros diante da crise de saúde pública e crise financeira. A resolução está lastreada no princípio da solidariedade entre países membros (artigo 3, TUE), visando a promover a coesão econômica e social e o bem-estar dos povos. Em termos econômicos e financeiros, é possível perceber na resolução quatro grandes grupos de preocupações: I) a cooperação para a saída da crise; II) a manutenção do trabalho e renda; III) as formas de financiamento da retomada; e II) os setores estratégicos para a economia pós-coronavírus.

A um, a cooperação para a saída da crise. A resolução destacou a necessidade de esforços unidos para garantir que nenhum país seja deixado sozinho para combater o vírus e as suas consequências, dentro do espírito de solidariedade subjacente à UE. Nessa linha, um aspecto especialmente destacado é a necessidade de desenvolver políticas que garantam o abastecimento contínuo de alimentos. Esse ponto toca fundamentalmente o setor primário da economia e a indústria alimentar, havendo preocupação de se assegurar a continua produção e circulação, sem obstáculos dentro do mercado único, a fim de evitar que se some uma crise alimentar à crise econômica e de saúde pública. O mercado único é considerado uma fonte de prosperidade e de bem-estar coletivos, constituindo um elemento indispensável para a resposta ao surto da Covid-19. Vale ressaltar que, ainda em termos de cooperação econômica, o Banco Europeu já havia anunciado, em 12 de abril, uma série de medidas. Uma crise internacional exige respostas internacionais. Nesse intuito, a resolução é enfática em apontar a cooperação como alicerce para a superação do desafio posto. 

A dois, manutenção do trabalho e da renda. A resolução manifestou solidariedade em relação àqueles que perderam o emprego e que tiveram as vidas profissionais afetadas pela pandemia. Nessa linha, defende que a Comissão Europeia e que os Estados-membros tomem medidas para manter o maior número possível de postos de trabalho, assegurando que a recuperação seja lastrada na convergência socioeconômica ascendente, no diálogo social e na melhoria dos direitos sociais e das condições de trabalho. Ainda, considera que os Estados-membros devem adotar medidas para assegurar que os trabalhadores sejam protegidos contra a perda de rendimentos. Para salvaguardar o emprego, sugeriu-se a adoção de iniciativas como a redução do tempo de trabalho e compensação de rendimentos. Ademais, incentiva que as autoridades europeias prudenciais e de supervisão explorem opções para reduzir os encargos das pequenas e médias empresas, apelando para a criação de uma estratégia horizontal europeia para a recuperação dessas empresas, lastrada na redução da burocracia e dos custos de acesso ao financiamento. Por fim, manifesta a convicção de que o dever de diligência das empresas, em matéria de direitos humanos e de ambiente, é condição necessária para prevenir e atenuar crises futuras e assegurar cadeias de valor sustentáveis. Em tempos de turbulência econômica e social, é mister assegurar o patamar de direitos conquistados e criar uma rede de proteção social como forma de mitigar o impacto vindouro.

A três, em termos de financiamento da recuperação, a resolução demonstrou um conjunto de preocupações com o papel a ser desempenhado pela União Europeia, pelos Estados-membros e pelos bancos. Em primeiro lugar, apoio à proatividade dos Estados. Há insistência para que as instituições da UE e para que os Estados-membros assegurem a concessão de apoio financeiro para combater os efeitos econômicos da Covid-19. Aponta-se a necessidade de se condicionar esse financiamento à utilização em benefício dos trabalhadores, devendo as empresas beneficiadas se absterem de pagar bônus à administração, praticar atos de evasão fiscal, pagar dividendos ou disponibilizar resgate de ações enquanto receberem esse apoio. Em segundo, reconhece a necessidade de flexibilidade orçamentária. A resolução insiste na adoção de um quadro financeiro plurianual (QFP) ambicioso, que preveja um orçamento reforçado e em consonância com os objetivos da UE, assegurando margem de manobra orçamental suficiente para garantir melhor previsibilidade e maior capacidade de ação, assegurando uma exposição reduzia aos riscos nacionais. Ainda, a resolução reconhece a necessidade de mobilizar fundos adicionais de forma rápida e não burocrática para ajudar os Estados-membros na luta contra a Covid-19 e suas consequências. Em terceiro, apoia a medidas de investimento e de liquidez. A resolução insta a Comissão Europeia a propor um pacote de medidas de recuperação e reconstrução em grande escala para investir na economia no pós-crise. Aponta que o investimento necessário deve ser financiado pelo incremento do QFP e pelos fundos e instrumentos financeiros existentes na UE. Ademais, aponta que esse pacote não deve implicar na mutualização da dívida existente, devendo ser orientado para investimentos futuros. Em quarto, propõe a criação de um Fundo de Solidariedade da UE para a Covid-19. Esse fundo teria por objetivo o apoio aos esforços financeiros empreendidos pelos setores da saúde dos Estados-membros, bem como os investimentos no setor dos cuidados de saúde no pós-crise. Em quinto, insiste no papel ativo do setor bancário. A resolução aponta para a necessidade de o setor bancário permitir às empresas e aos cidadãos com problemas financeiros associados à Covid-19 reduzir ou suspender temporariamente o pagamento de dívidas ou de hipotecas, dando flexibilidade no tratamento de créditos não produtivos. Ainda, sugere a suspensão temporária de pagamento de dividendos e redução das taxas de juros aplicáveis às contas a descoberto. Em especial, aponta para a necessidade das pequenas e médias empresas se beneficiarem da liquidez financeira necessária. Por certo que a construção de uma rede de proteção social pressupõe custos, portanto, é necessário pensar em meios de financiar a retomada da economia. O cenário que se desenha, de quarentenas intermitentes, impede que se pense em uma retomada linear. Urge equacionar a atuação dos Estados em termos econômicos, especialmente diante da perspectiva de enfraquecimento do setor privado e da estagnação atualmente vivenciada.

A quatro, a necessidade de se pensar uma "nova economia" para a retomada. Nesse aspecto, em primeiro, a resolução aponta para a necessidade de se desenvolver uma nova estratégia industrial. A indústria deve ser mais competitiva e resiliente face aos choques globais. Nesse ponto, apoia a reintegração das cadeiras de abastecimento no interior da UE e o aumento da fabricação interna de produtos essenciais (medicamentos, princípios farmacêuticos, equipamentos e materiais médicos, dentre outros). Em segundo, incentiva a área da saúde. A resolução considera que pesquisadores, empresas inovadoras e a indústria europeia devem receber apoio financeiro para que encontrem uma cura para a Covid-19, instando os Estados-membros a aumentarem o apoio a programas de investigação, desenvolvimento e inovação destinados a compreensão da doença, aceleração do diagnósticos e testes e desenvolvimento de uma vacina. Nessa linha, sugere aproveitar a oportunidade e se propor um plano de ação para a autonomia da saúde em domínios estratégicos como os princípios ativos farmacêuticos , reduzindo a dependência em relação a outros países. Em terceiro, aponta para a indústria verde e da tecnologia como pilares da retomada. A resolução aponta que o pacote de recuperação deve ter no seu cerne o Pacto Ecológico Europeu e a transformação digital como impulsionadores iniciais à economia, melhorando a resiliência e criando emprego contribuindo simultaneamente para a transição ecológica e para a promoção do desenvolvimento econômico e social sustentável. Destaca-se que as respostas devem estar alinhadas com o objetivo da UE de neutralidade climática. Melhor do que pensar em um "retorno à normalidade" é pensar em uma "nova normalidade" e, na retomada da economia, novos setores podem ser incentivados.

Assim, depreende-se da resolução que a cooperação e a solidariedade serão fundamentais para o reerguimento da economia no período pós-pandemia. Deve-se apostar nas relações multilaterais como ferramenta de retomada. Por hora, deve-se assegurar o emprego e a renda, inclusive como forma de mitigar o impacto social advindo da pandemia. Em termos de financiamento, deve-se adotar estratégias multiníveis, envolvendo a UE e os Estados-membros, dando-se destaque ao papel a ser desempenhado pelos bancos. Por fim, deve-se repensar a estratégia industrial, dando importância à área da saúde, de tecnologia e da indústria verde como pilares fundamentais da economia, promovendo uma retomada econômica e social que seja sustentável.

Essa breve análise da resolução de 17 de abril visou a demonstrar, em linhas gerais, algumas das estratégias pensadas na União Europeia para combater a pandemia e suas consequência. É certo que a realidade enfrentada é distinta da brasileira, mas, diante do ineditismo da crise, deve-se valorizar o que é pensado alhures como forma de fomentar e de inspirar o desenvolvimento de estratégias para superação dos desafios vindouros. Certamente, a cegueira deliberada em relação ao estrangeiro não é o melhor caminho para o enfrentamento de uma crise de tal magnitude. Acima de tudo, deve-se crescer à altura das desafiadoras circunstâncias.

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