Opinião

Contra a jurisprudência defensiva

Autor

  • Gustavo Fávero Vaughn

    é advogado do Cesar Asfor Rocha Advogados mestrando em Processo Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Comissão de Mediação da OAB-SP do IBDP do Ceapro e do CBAr.

8 de maio de 2020, 19h22

Piero Calamandrei, em seu clássico Elogio, ao tratar de tristezas e heroísmos da vida dos advogados, escreveu que certa vez um velho causídico lhe dizia que, em geral, os advogados trabalham sem se poupar até o último suspiro, para chegar à morte sem pensar nela.[1]

São inúmeras as questões profissionais que preocuparão nós, advogados, até o último suspiro. A jurisprudência defensiva é, sem dúvida, uma dessas questões de rotineira e incessável angústia.

A jurisprudência defensiva consiste, nos dizeres do ministro Humberto Gomes de Barros, em referência ao Superior Tribunal de Justiça, “na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos.”[2] Muitos desses entraves e pretextos são ofensivos a garantias constitucionais basilares, tais como o acesso à justiça e o devido processo legal.

Se se pudesse resumi-la em uma única sentença, poder-se-ia dizer que a jurisprudência defensiva é o arquétipo do que Botelho de Mesquita chamou de processo incivil.[3][4]

O Código de Processo Civil de 2015 exerce papel relevante no combate à jurisprudência defensiva, especialmente porque prevê, como norma fundamental, o princípio da primazia do julgamento do mérito. Isso significa dizer que o legislador deixou claro aos quatro ventos que os intérpretes devem prestigiar a resolução da crise de direito material levada à apreciação do Poder Judiciário, e não se pautarem em filigranas processuais que, sem o enfrentamento da questão posta em juízo, fulminam a pretensão dos jurisdicionados, neles deixando aquele travo de insatisfação de que falou Barbosa Moreira.[5]

Dito protagonismo da lei processual civil surtiu efeitos. É salutar reconhecer que determinadas orientações dos tribunais superiores antes consideradas defensivas hoje não mais subsistem, pelo que parece lícito concluir que o advento do CPC/2015 proporcionou, em alguma medida, o enfraquecimento da jurisprudência defensiva.

Mas o atual Código não foi suficiente para exterminá-la. Essa prática perversa, para se valer aqui das palavras de José Rogério Cruz e Tucci, remanesce entre nós.[6] Há uma específica tendência do STJ que ainda preocupa: a tormentosa controvérsia em torno da comprovação do feriado local.

Inicialmente, o STJ considerava descabida a comprovação de feriado local após a interposição de recurso.[7] Ao final de 2012 tal orientação foi superada, passando a prevalecer a judiciosa tese de que seria cabível a comprovação posterior de feriado local.[8] Ao que consta, em 2017, fazendo uma leitura rigorosa do CPC vigente, sucedeu nova guinada jurisprudencial, tendo o STJ assentado o entendimento de que seria admissível que o recorrente comprovasse posteriormente a existência de feriado local.[9]

O STJ voltou a debruçar-se sobre o tema em 2019. Em julgamento paradigmático, a Corte Especial por maioria de votos decidiu, em suma, que a interpretação sistemática levaria a crer que o CPC/2015 atribuiu à intempestividade o epíteto de vício grave, pelo que não seria possível saná-lo após o manejo do recurso.[10] A transcrição do primeiro item da ementa do referenciado aresto é suficiente para compreender a posição vencedora:

“O novo Código de Processo Civil inovou ao estabelecer, de forma expressa, no § 6º do art. 1.003 que ‘o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso’. A interpretação sistemática do CPC/2015, notadamente do § 3º do art. 1.029 e do § 2º do art. 1.036, conduz à conclusão de que o novo diploma atribuiu à intempestividade o epíteto de vício grave, não havendo se falar, portanto, em possibilidade de saná-lo por meio da incidência do disposto no parágrafo único do art. 932 do mesmo Código.”

Nada obstante a insistência na tese defensiva, em prejuízo dos que postulam a prestação jurisdicional do Estado, a Corte Especial, firme no princípio da segurança jurídica, modulou os efeitos da aludida decisão, limitando sua aplicação aos recursos apresentados após a publicação do acórdão respectivo.

Esse cenário piorou com o julgamento de questão de ordem suscitada após o trânsito em julgado do acórdão. Tendo em conta uma alegada contradição entre as notas taquigráficas e o voto elaborado pelo relator, decidiu-se, por maioria de 7 votos a 3, que a modulação de efeitos abrangeria especificamente o feriado da segunda-feira de Carnaval, não se aplicando aos demais feriados, inclusive os feriados locais, pois essa seria a tese que refletiria a convicção manifestada pelo órgão colegiado que apreciou o recurso.[11]

Com efeito, de acordo com o mais recente entendimento do STJ, a comprovação posterior de causa suspensiva ou interruptiva do prazo recursal é admissível apenas no que diz respeito ao feriado da segunda-feira de Carnaval e relativamente aos recursos interpostos até a publicação do acórdão do REsp 1.813.684-SP, acima citado.

Mesmo que o direito seja um fenômeno interpretativo-argumentativo, não se pode conceber a atribuição da severa pena de intempestividade a recurso manejado no prazo legal, mas que não tenha sido instruído com a comprovação do feriado local. De fato, o CPC/2015 determina ao recorrente a comprovação documental de feriado quando da interposição do recurso. Mas nada, absolutamente nada, condiciona a comprovação somente ao ato de interposição. E a ausência de tal advérbio — ou outro equivalente — tem relevância na exegese da regra legal.

A leitura sistemática do CPC/2015 à luz do modelo constitucional de processo, como é de rigor, naturalmente se opõe à jurisprudência defensiva, desautorizando a declaração imediata de intempestividade de recurso não acompanhado da comprovação do feriado local. O que se defende, por ser lógico e plausível, é que ao recorrente seja dada a oportunidade de, após o protocolo do recurso, se for o caso, comprovar a ocorrência de feriado local.

Espera-se que, numa realidade não tão distante, prevaleça essa tese em prol da efetividade processual.


[1] Conforme tradução para o português de Eduardo Brandão: Eles, os juízes, vistos por um advogado, 2. ed., São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2015, p. 248. Na versão original, em italiano: Elogio dei giudici scritto da un avvocat.

[2] Trecho do discurso do ministro Humberto Gomes de Barros, proferido em 7.4.2008, na solenidade de posse no cargo de Presidente do STJ para o biênio 2008/2010.

[3] Sobre o “processo incivil”, confira-se: José Ignácio Botelho de Mesquita. Processo civil e processo incivil, Revista de Processo, vol. 131, 2006, p. 250-257.

[4] Já tive a oportunidade de fazer um paralelo entre os conceitos de “jurisprudência defensiva” e “processo incivil”, conforme: Gustavo Favero Vaughn, Jurisprudência defensiva e processo incivil, In: Entre o processo civil e incivil, coordenação de Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro e Thiago D’Aurea Gioffi Santoro Biazotti, São Paulo: Editora Lualri, 2019, p. 217-243. Aliás, essa obra coletiva foi fruto de trabalhos acadêmicos apresentados pelos alunos do Professor Walter Piva Rodrigues, que prefaciou a obra, em uma disciplina na Pós-Graduação em Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

[5] José Carlos Barbosa Moreira, Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos, Revista da Escola Nacional de Magistratura, vol. 1. n. 1, abr. 2006, p. 41.

[6] Veja-se, exemplificativamente, estes dois textos do Professor José Rogério Cruz e Tucci que foram publicados em sua instigante coluna, “Paradoxo da Corte”, no Consultor Jurídico: Um basta à perversidade da jurisprudência defensiva (24.6.2014 – https://www.conjur.com.br/2014-jun-24/basta-perversidade-jurisprudencia-defensiva) e A cruzada da Aasp contra a perversidade da jurisprudência (13.11.2018 – https://www.conjur.com.br/2018-nov-13/paradoxo-corte-acruzada-aasp-perversidade-jurisprudencia).

 

[7] Citem-se, por todos: EREsp 299.177-MG, rel. min. Eliana Calmon, Corte Especial, DJe 29.5.2008; AgRg nos EREsp 657.543-RJ, rel. min. Laurita Vaz, Corte Especial, DJe 2.2.2012.

[8] AgRg no AREsp 137.141-SE, rel. min. Antonio Carlos Ferreira, Corte Especial, DJe 15.10.2012.

[9] AgInt no AREsp 957.821-MS, rel. min. Raul Araújo, rel. p/ acórdão min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 19.12.2017.

[10] REsp 1.813.684-SP, rel. min. Raul Araújo, rel. p/ acórdão min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, DJe 18.11.2019.

[11] QO no REsp 1.813.684-SP, rel. min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 28.2.2020. Assim ficou redigido o item 3 da ementa do acórdão: “Consoante revelam as notas taquigráficas, os debates estabelecidos no âmbito da Corte Especial, bem como a sua respectiva deliberação colegiada nas sessões de julgamento realizadas em 21/08/2019 e 02/10/2019, limitaram-se exclusivamente à possibilidade, ou não, de comprovação posterior do feriado da segunda-feira de carnaval, motivada por circunstâncias excepcionais que modificariam a sua natureza jurídica de feriado local para feriado nacional notório.”

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