Opinião

Regulação independente da indústria do petróleo deve ser preservada

Autor

  • Fabricio Dantas Leite

    é advogado procurador do Estado do Rio de Janeiro professor da FGV-RJ — Ebape membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro e da Comissão de Direito Tributário e Financeiro do Instituto dos Advogados Brasileiros ex-secretário executivo-adjunto do Ministério da Fazenda ex-presidente substituto do Conselho Nacional de Políticas Fazendárias (Confaz) ex-procurador da Fazenda Nacional e doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela USP.

7 de maio de 2020, 20h26

As crises econômicas geram pelo menos uma sequela negativa comum: poucos ganham e muitos perdem. Como o sofrimento da maioria é uma constante, com diversos graus de intensidade, no inconsciente coletivo as crises são iguais e devem ser combatidas da mesma maneira.

Deixando as emoções de lado, essa noção equivocada pode gerar consequências regulatórias capazes de agravar ainda mais o sofrimento da maior parte da parcela vulnerável da população.

Um exemplo ilustrativo das diferenças entre as crises e suas causas econômicas e consequências regulatórias pode ser verificado na comparação entre a recente pandemia causada pela Covid-19 e a greve dos caminhoneiros ocorrida em 2018.

Há diferenças óbvias entre ambas, não só no que se refere à intensidade e à duração, como na gravidade e na abrangência, porém, e dentro do seu limite temporal curto, a greve dos caminhoneiros, assim como a Covid-19, impôs reflexos negativos ao PIB e apreensão e angústia à população.

A diferença marcante entre uma e outra, entretanto, que impõe consequências econômicas diversas e, por vezes, tratamento regulatório distinto, é que, enquanto a greve dos caminhoneiros, por falta de abastecimento, promoveu um choque de oferta, a Covid-19, por retração do consumo mundial, vem causando uma crise de demanda sem precedentes na história recente, nem mesmo na crise financeira de 2008.

Na indústria do petróleo, em especial na distribuição e revenda de combustíveis e derivados, essa diferença é marcante.

A greve dos caminhoneiros exigiu um mindset do setor e, em especial, da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), de garantia do produto a qualquer custo, diante de um desabastecimento nacional generalizado, causado por choque de oferta. A impossibilidade logística de transporte de combustível parava carros de polícia, ambulâncias e viaturas do corpo de bombeiros, enquanto causava um caos na vida da população e na economia nacional.

Por esse motivo, imediatamente após o seu início [1], e a despeito de a greve ter sido prontamente declarada inconstitucional [2], a ANP, através de despacho da sua diretoria colegiada [3], entre outras medidas de caráter excepcional, flexibilizou a vinculação da marca para a venda de combustíveis, ou seja, ainda que ostentassem bandeira diversa, os postos revendedores estavam autorizados a comercializar combustível de qualquer distribuidora que tivesse capacidade logística de efetuar a entrega.

A chamada fidelidade de bandeira é, sem dúvida, uma imposição regulatória tradicional e que gera discussão entre distribuidores e parte dos revendedores. De um lado, há os que defendam que uma flexibilização total iria gerar um aumento de competitividade e, por via de consequência, uma diminuição do preço final.

Há, por outro lado, questões relativas à garantia de abastecimento, à qualidade do produto, à fiscalização, de propriedade industrial e questões relacionadas com a função social do contrato de distribuição, sobretudo em relação ao atendimento da cadeia vertical de escoamento da produção e, portanto, de todas as zonas geográficas específicas em país continental, que ainda sensibilizam a agência a manter o respeito à marca, nos limites de sua discricionariedade técnica, os termos das Resoluções ANP nºs 41/2013 e 58/2014.

A flexibilização ou não da marca, no entanto, não é o principal agora. Pelo contrário, a regra da bandeira é o justamente o instrumento para se observar um fenômeno interessante: como as diferenças de causas e consequências econômicas das crises interferem e devem interferir na regulação independente na hora de adotar medidas para a sua mitigação.

O que se adota como medida quase intuitiva em uma crise de oferta pode trazer consequências dramáticas em uma crise de demanda, e vice-versa.

Nesse contexto, em resposta ao requerimento de revendedores interessados em quebrar os contratos de exclusividade de distribuição e, portanto, aumentar a margem de lucro em tempos de retração de consumo, que cita como paradigma o caso da greve dos caminhoneiros, a ANP emitiu um nota contrária à pretensão. Por meio de sua área técnica, a agência "não considerou apropriado atacar o problema de redução de demanda por meio da suspensão do regime vigente de tutela regulatória de fidelidade à bandeira" [4].

Por óbvio, a questão vem sendo debatida através de diversas demandas judiciais, tanto de postos revendedores interessados em quebrar seus próprios contratos de exclusividade quanto de distribuidoras ávidas em adentrar o market share ocupado por concorrentes.

Sob outra ótica, entretanto, esse caso transporta um desafio teórico acadêmico diretamente para instâncias decisórias práticas: quais os limites do controle judicial na seara técnica da regulação independente, em especial na valoração do impacto da sua própria atuação perante o mercado regulado em crises com causas e consequências econômicas diversas.

Pretender que a regulação independente adote medidas semelhantes em crise de oferta e em crise de demanda, por intermédio de ordem judicial, é afastar completamente a regulação independente de seu objetivo finalístico, ou seja, de ser uma instância capaz de reduzir a indesejável distância entre a norma abstrata legislativa e o funcionamento interativo dinâmico do mercado regulado.

Qualquer mudança regulatória, ainda mais uma mudança dessa magnitude, que tem a capacidade de alterar a forma como o downstream se organiza como indústria, deve preceder um processo dialógico amplo com o próprio setor regulado e com os diversos setores interessados da sociedade civil e dos entes públicos.

É notório, por exemplo, que a parcela mais significativa da base de arrecadação do ICMS atualmente está focada no setor de energia, em especial no consumo de energia elétrica e combustíveis. A liberação da marca terá reflexos na forma como os estados fiscalizam esse setor, inclusive no que se refere a mecanismos legais como a substituição tributária.

A intervenção judicial sobre a regulação independente deve considerar sempre que, quando motivada e razoável, a decisão regulatória serve a um propósito maior, de manter a coerência técnica do mercado regulado [5].

A pandemia da Covid-19, por certo, como o maior desafio humanitário e econômico desde a implantação da regulação independente em nosso país, através das agências reguladoras, irá exigir deste modelo sua máxima eficiência nos mais diversos setores, da regulação do mercado financeiro, à regulação sanitária ou da saúde à energia.

Na seara da indústria do petróleo, em que barreiras anteriormente teóricas foram ultrapassadas, como a cotação negativa do barril do petróleo no mercado norte-americano [6], a regulação independente deve ser preservada, sempre que exercida dentro de parâmetros técnicos razoáveis.

Admitir que um paradigma relacionado com choque de oferta possa ser usado quando não há retração de demanda na revenda de combustíveis, seria uma forma de prestigiar free riders em uma crise de consumo, em um momento delicado para o setor no mundo. Em outras palavras, seria a desmoralização do modelo regulatório no momento em que mais precisamos que ele ofereça resultados.

Se as crises nunca são iguais em seus fundamentos, uma de suas consequências é sempre a mesma: alguns se aproveitam das dificuldades da maioria.

 


[1] A greve se iniciou em 21 de maio de 2018 e o Despacho nº 671 da diretoria foi proferido em 24 de maio e publicado no DOU de 25 de maio de 2018.

[2] Em decisão proferida na ADPF 519, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

[3] Despacho ANP nº 671, de 24 de maio de 2018.

[4] In <http://www.anp.gov.br/noticias/5723-coronavirus-anp-mantem-fidelidade-a-bandeira-na-revendaAssinado>. Consulta em 28 de abril de 2020.

[5] Este parâmetro de respeito à interpretação econômica razoável feita por agências independentes teve como marco no direito da regulação e no âmbito da indústria do petróleo especificamente, o julgamento da Suprema Corte Norte-Americana no caso Chevron USA Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, no julgamento da ADI 4874/DF, cita este caso como marco jurisprudencial de deferência judicial às decisões administrativas, quando fundamentadas, razoáveis e compatíveis com a Constituição.

[6] No dia 20 de abril de 2020, o preço do petróleo bruto nos Estados Unidos, pela primeira vez na história, atingiu cotação negativa pela cotação do West Texas Intermediate (WTI), devido à alta armazenagem do produto e à baixa demanda.

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    é advogado, procurador do Estado do Rio de Janeiro, professor da FGV-RJ — Ebape, membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro e da Comissão de Direito Tributário e Financeiro do Instituto dos Advogados Brasileiros, ex-secretário executivo-adjunto do Ministério da Fazenda, ex-presidente substituto do Conselho Nacional de Políticas Fazendárias (Confaz), ex-procurador da Fazenda Nacional e doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela USP.

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