Opinião

"Caso Thomaz Santos": TAS veda influência de terceiros em transferências

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  • Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga

    é presidente da Comissão de Direito Desportivo do IAB; professor do Master Diritto e Sport da Universidade Sapienza de Roma; doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL; diretor jurídico do Vasco da Gama; vice-presidente da Comissão Especial de Direito Desportivo da OAB Nacional e membro fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo.

7 de maio de 2020, 15h36

Em recente decisão, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) apreciou recurso do atleta Thomaz dos Santos e o absolveu da condenação de pagar uma multa de U$ 80 mil (cerca de R$ 440 mil), além de isentar o jogador das despesas com arbitragem e honorários, em importância aproximada de U$ 30 mil (R$ 165 mil), segundo informações do jornal La Razón [1]

O caso traz questões peculiares, com reflexos no direito ao trabalho dos atletas, e que vêm sendo observadas com alguma frequência, com decisões conflitantes, tanto pelas câmaras de resolução de conflitos quanto pelo próprio Poder Judiciário, quando a este submetidas.

Thomaz Santos defendeu o clube Jorge Wilstermann, da Bolívia, de 2014 a 2017, ano em que foi contratado pelo São Paulo. Em 2018, foi cedido para clubes brasileiros, sendo que no ano de 2019 foi cedido ao Bolívar, de La Paz.

Com a alegação de que havia sido assinado um documento no qual o atleta se comprometia a defender o Jorge Wilstermann no caso de retorno à Bolívia, sob pena de pagamento de multa de U$ 80 mil, o clube de Cochabamba apresentou demanda perante o Tribunal de Resolução de Disputas da Federação Boliviana de Futebol, tendo em vista a opção do atleta pelo Bolívar.

Insatisfeito com a decisão, o jogador recorreu à mais alta corte arbitral do esporte, que deu provimento ao seu recurso para afastar o pagamento da multa pleiteada e condenar o Jorge Wilstermann e a Federação Boliviana de Futebol, cada um, ao ressarcimento com os gastos e honorários legais arcados pelo recorrente e ao pagamento das custas processuais.  

No intuito de estimular o debate e analisar o objetivo da decisão, convém trazer posicionamentos doutrinários e do próprio Regulamento da Fifa.

As cláusulas que impõem restrições ou condições após a ruptura contratual trazem um ônus muito grande para o atleta e muitas das vezes, além de não oferecerem contra-partidas, são desprovidas de fundamento racional que as justifiquem.

Não há dúvidas de que no meio empresarial, quando se trata de proteção de segredos industriais, as cláusulas de não-competição podem (e são) aplicadas. Até mesmo no meio desportivo há situações em que são defensáveis quando se trata de desenvolvimento de programas de treinamentos, por exemplo.

No âmbito do desporto há peculiaridades e nuances que despertaram a atenção do legislador, que foi firme ao assegurar a ampla liberdade contratual desportiva sem imposições ou restrições contratuais.

No Brasil, a Lei Geral do Desporto [2] é expressa ao afirmar que são nulas quaisquer cláusulas que interfiram no livre exercício do trabalho, influenciem transferências, interfiram em desempenho e influenciem assuntos laborais. 

Dessa forma, por imperativo legal constante no diploma desportivo brasileiro, a liberdade de trabalho desportivo não pode ser restringida.

Essa é a visão do professor da Universidade de Coimbra João Leal Amado [3]. Verbis:

"Em sede de contrato de trabalho desportivo não há, porém, lugar para dúvidas: qualquer cláusula de não concorrência, enquanto cláusula que, por definição, visa a 'condicionar ou limitar a liberdade de trabalho do praticante desportivo após o termo do vínculo contratual', será nula".

O professor Rafael Teixeira Ramos [4] traz entendimento semelhante e lembra, inclusive, da já extinta figura do passe. Verbis:

"Admitir que por uma avença contratual um dos clubes se ponha em superposição privilegiada em detrimento de uma posição restrita do concorrente arquirrival, prejudica a livre concorrência perante os demais empregadores do mercado desportivo, gerando reflexões negativas no próprio equilíbrio competitivo e na incerteza dos resultados, princípios nucleares da atividade econômica desportiva".

Nota-se, portanto, que a atividade profissional desportiva deve ser livre, sem limitações contratuais que possam ser consideradas abusivas ou desproporcionais, sob pena de serem consideradas nulas de pleno direito.

O artigo 18bis do Regulamento de Transferências de Jogadores da Fifa traz a seguinte previsão:

"1  No club shall enter into a contract which enables the counter club/counter clubs, and vice versa, or any third party to acquire the ability to infl uence in employment and transfer-related matters its independence, its policies or the performance of its teams".

Em tradução livre, resta dizer que a Fifa estabelece que nenhum clube poderá celebrar contratos com qualquer outra parte contratante ou qualquer terceiro para fins de adquirir a capacidade de influência na relação de emprego e nas transferências, e ainda em questões relacionadas a sua independência, suas políticas ou desempenho de suas equipes.

Portanto, a estipulação pactuada entre o clube Jorge Wilstermann com o atleta Thomaz violou princípios do desporto e o próprio regulamento de transferências da entidade máxima do futebol, que assegura a ampla liberdade profissional sem restrições contratuais, razão pela qual não poderá haver influência de terceiros na transferência do atleta.

 


[2] Lei n. 9.615/1998, artigo 27-B —  São nulas de pleno direito as cláusulas de contratos firmados entre as entidades de prática desportiva e terceiros, ou entre estes e atletas, que possam intervir ou influenciar nas transferências de atletas ou, ainda, que interfiram no desempenho do atleta ou da entidade de prática desportiva, exceto quando objeto de acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Lei n. 9.615/1998, Artigo 27-C —  São nulos de pleno direito os contratos firmados pelo atleta ou por seu representante legal com agente desportivo, pessoa física ou jurídica, bem como as cláusulas contratuais ou de instrumentos procuratórios que:

[…]

III — restrinjam a liberdade de trabalho desportivo;

IV — estabeleçam obrigações consideradas abusivas ou desproporcionais;                   

V – infrinjam os princípios da boa-fé objetiva ou do fim social do contrato;                 

[3] AMADO, João Leal. Vinculação versus liberdade: o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo. Coimbra: Coimbra Editora – 2002, p. 126.

[4] RAMOS, Rafael Teixeira. Distrato no Contrato de Trabalho Desportivo e o Caso Fred entre Clube Atlético Mineiro e Cruzeiro Esporte Clube. In Repertório de Jurisprudência nº 21/2019, 1ª quinzena de novembro de 2019, p. 735-732. ISSN: 2175-9987.

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