Consultor Jurídico

Opinião: Acesso à Justiça em tempos de pandemia

6 de maio de 2020, 16h23

Por Diogo Esteves, Franklyn Roger Alves Silva, Júlio Azevedo

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Quais os impactos que a Covid-19 vem surtindo no acesso global à Justiça? Procurando responder a essa pergunta, a rede internacional de cooperação acadêmica reunida em torno do Global Access to Justice Project imprimiu esforços para coletar dados atualizados em mais de 51 países, objetivando esclarecer como o acesso das pessoas à justiça foi afetado em tempos de pandemia.

Como forma de viabilizar a coleta rápida e uniformizada de dados, a pesquisa utilizou a metodologia de questionário semi-estruturado, sendo as respostas apresentadas por pesquisadores do campo jurídico (e sócio-jurídico), profissionais de direito dos setores público e privado, diretores de instituições de assistência jurídica, funcionários públicos de elevado escalão e formuladores de políticas públicas de cada país analisado.

Em breve síntese, os resultados obtidos a partir do estudo comparativo dos questionários podem ser divididos em quatro grandes eixos: (i) visão geral sobre as medidas adotadas pelos diversos países; (ii) impactos em grupos vulneráveis; (iii) impactos nos sistemas judiciais; (iv) impacto nos sistemas de assistência jurídica.

No primeiro eixo, observou-se que todos os países analisados adotaram medidas para conter o avanço da contaminação pela Covid-19, valendo-se de recomendações sanitárias (100%), restrições à entrada de imigrantes (86%), interrupção das atividades escolares (94%), suspensão de serviços não essenciais (76%) e medidas de isolamento social (92%). Muito embora o relato acerca da capacidade estatal de manutenção do Estado de Direito em ordem a prevenir arbitrariedades (94%), constatou-se que em alguns locais a pandemia foi utilizada como pretexto para concentração do poder executivo estatal, restringindo direitos fundamentais dos cidadãos (25%). Cite-se, ademais, punições decorrentes do descumprimento das medidas de isolamento social, tais como multas (73%) e prisões (41%), bem como violações de direitos humanos a partir da violência policial e de detenções arbitrárias (31%).

No segundo eixo, verificou-se que a maioria dos países deixou de adotar medidas específicas para conter os impactos desproporcionais suportados por grupos vulneráveis. Alarmante, nesse sentido, a inexistência de ações setoriais para conter a violência doméstica e familiar suportada por mulheres em isolamento social (53%), além da ausência de alternativas habitacionais em prol de pessoas em situação de rua (63%). Grande parcela dos países também deixou de implementar políticas específicas de desencarceramento, tais como a soltura temporária de presos (49%) e o isolamento em celas individuais (72%). Por outro lado, foram identificadas restrições no que toca ao regime de visitas a pessoas encarceradas por familiares (92%). Doutro giro, constatou-se a maciça adoção de medidas de assistência socioeconômica em prol das populações hipossuficientes (86%), tais como a concessão de benefícios assistenciais, a desoneração de obrigações tributárias e a distribuição de auxílios financeiros.

Já a análise do terceiro eixo permitiu apurar um esforço mundial de reorganização dos serviços judiciários, levada a efeito pela majoritária adoção do trabalho remoto (73%) e suspensão temporária de audiências (69%), prazos processuais (49%) e atendimentos físicos (71%), salvo em casos considerados pelas legislações locais como urgentes. Em destaque, a tecnologia constituiu interessante ferramenta estatal para facilitar o acesso à justiça em tempos de pandemia (78%), sendo possível mencionar a distribuição digital de petições (33%), a realização on-line de videoconferências (53%), além do uso de call-centers (14%), aparelhos de telefonia celular (35%) e e-mail eletrônico (41%) para franquear a comunicação com jurisdicionados, advogados e defensores públicos.

Por fim, o quarto eixo evidenciou que os serviços de assistência jurídica também aderiram em grande medida ao trabalho remoto (53%) e ao uso de tecnologias (71%) para garantir a continuidade do atendimento à população. Excepcional, entretanto, foi a expansão dos critérios de admissibilidade (12%), a adoção de medidas de facilitação para novos casos (25%), o uso de métodos virtuais de resolução consensual de conflitos (8%) e a suplementação financeira dos serviços para atender as dificuldades surgidas (25%). Constatou-se, ademais, que a pandemia prejudicou a continuidade dos serviços de assistência jurídica na maioria dos países (51%), sendo possível prever até mesmo futuros cortes orçamentários em alguns países (25%), além de uma possível sobrecarga de trabalho em períodos pós-pandêmicos.

Não obstante muitas perguntas permaneçam sem resposta, parece claro que estamos enfrentando um marco histórico e não podemos ignorar suas implicações. Justamente por isso, este será o primeiro artigo de uma série destinada a avaliar o acesso à justiça em tempos de pandemia.

Clique aqui para acessar a pesquisa completa. O estudo também está disponível no site do Global Access to Justice Project.