Opinião

Lei 13.994/2020 surge apenas para certificar o óbvio

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6 de maio de 2020, 18h43

Há anos demais, a conciliação encampada no cotidiano do rito sumaríssimo tem tido como exceção a postura ativa do conciliador em uma atividade promotora do entendimento mútuo. Com ênfase na dinâmica consumerista, tão massificada no proceder judicial quanto na vida, não raro o intuito conciliatório se vê resumido à quase clama do Poder Judiciário ao representante do fornecedor demandado em um robotizado: "Tem proposta de acordo, doutor(a)?".

Comparado ao sistema de manifestação prévia das partes que institui o artigo 334, § 4º, inciso I, CPC/2015, no qual o desinteresse de ambas torna dispensável a assentada, o entendimento pela imprescindibilidade da audiência nos Juizados Especiais vem se provando de um formalismo mais rigoroso que o do procedimento ordinário, fulminando o princípio da simplicidade da Lei nº 9.099/95.

Em 2015, com o advento do atual Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária aos procedimentos especiais, o Poder Judiciário teve a oportunidade de se modernizar sem negar a premissa da ocorrência obrigatória da conciliação. Bastava reconhecer a aplicação supletiva da previsão de realização eletrônica (artigo 334, § 7º, CPC) e esquecer a interpretação histórica de que "comparecimento em audiência" equivale à presença física, fruto de um tempo em que esta era a única opção.

Ancorada em um princípio de oralidade cuja interpretação tem levado à exigência ultrapassada de presença pessoal das partes, foram necessários 25 anos de vigência e uma pandemia que já mumificou suas estruturas por 40 dias para se provar o anacronismo da Lei nº 9.099/95.

Na data de autoria deste pequeno texto, 27 de abril, adveio a Lei nº 13.994, que, ao alterar a Lei nº 9.099/95, finalmente autoriza a realização da audiência de conciliação por meios eletrônicos e, ao mesmo tempo, cria curiosas perplexidades. Diz-se, em especial, face ao novo artigo 23, segundo o qual "se o demandado não comparecer ou recusar-se a participar da tentativa de conciliação não presencial, o juiz togado proferirá sentença".

Entre outras possíveis interpretações, uma das que se podem extrair do novo caput do artigo 23 da Lei nº 9.099/95 é a de que a expressão "não comparecer" se conecta com "a tentativa de conciliação não presencial", de modo que os fatos do meio virtual finalmente veem seu reconhecimento para esse rito processual. É dizer, ainda que virtualmente, que a presença do demandado para o intuito conciliatório finalmente se passará a enxergar como "comparecimento", ampliando o sentido dessa hipótese para vários dos efeitos normativos.

A título de exemplo, visto o novo dispositivo dessa forma, então, além do julgamento da lide sem instrução, iria se atrair o efeito da confissão ao demandado que não compareça e também repercutiria sobre a posição processual do demandante que, falhando em comparecer à audiência virtual, terá como regra o arquivamento da sua queixa e o pagamento de custas processuais.

Contudo, conectar a expressão "comparecer" ao meio indicado no artigo 23, que agora especifica ser apenas o não presencial, por mais estranho que soe, significaria que não há mais fundamento legal para o julgamento conforme o estado do processo quando o demandado se ausentar nas audiências presenciais. Se assim for, embora a ausência à audiência presencial continue a ensejar confissão ficta (artigo 20), ao revel que comparece ao processo ainda caberia a produção de provas durante a instrução, como o é no rito ordinário.

Seria superável essa repercussão lógica sobre a ausência nas audiências presenciais se o intérprete considerasse o "não comparecer" do artigo 23 como uma condição autônoma, geral e independente do complemento da oração, de modo a abarcar qualquer tipo de não comparecimento. A alternativa para evitar tal efeito soa ainda mais estranha.

No mais, agora que há dois tipos de audiência conciliatória, é no mínimo curiosa uma segunda interpretação, complementar, que partiria da escolha legislativa consciente de distinguir o ato de "não comparecer" daquele de "recusar-se a participar" da sessão virtual, quando, ao final, o demandado seria peça faltante em qualquer dos casos.

Isso porque, se tomada a distinção como proposital, então, quando o demandado apenas não comparecer à sessão virtual, haverá três efeitos: I) o impedimento à juntada da defesa; II) a aplicação da confissão de que trata o artigo 20; e III) o julgamento conforme o estado do processo do artigo 23.

Contudo, sob a mesma premissa de diferenciação, quando a ausência do demandado se qualificar pela recusa expressa em participar da audiência virtual, haverá hipótese distinta da do artigo 20, que delimita seus efeitos apenas ao não comparecimento. Com isto, a única consequência seria o julgamento antecipado e o tolhimento da instrução processual, mas resguardado o direito do réu à apresentação de contestação e à produção de prova documental.

Embora o ponto de contato em ambas seja, finalmente, a premissa de que o ato de "comparecer" à audiência é circunstância expressamente realizável também por meio digital, ambas as linhas trazem problemas interpretativos desnecessários ao procedimento pretensamente mais simples dos Juizados Especiais.

Desde o advento do CPC/2015, a aplicação supletiva do artigo 334, §§ 7º e 8º, já revelaria a possibilidade de fazer audiências por via digital e demonstravam que o sentido de "comparecer" seria também realizado por esse meio. Não fosse a reticência dos aplicadores do Direito em interpretar as normas sob a forma de sistema, sem criação de nenhum dos problemas aqui suscitados.

Isso e a falta de qualquer menção à presença física na Lei nº 9.099/95 nos mostram aqui que, além de criar novas complexidades para um rito que se pretendia simples, o verdadeiro mérito da Lei nº 13.994/2020 é apenas um: certificar o óbvio.

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