Opinião

A negociação público-privada durante e após a pandemia

Autor

  • Vitor Soliano

    é mestre em Direito Público (UFBA) professor da Faculdade Baiana de Direito membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA e advogado.

5 de maio de 2020, 12h10

No último dia 25, completou dois anos da publicação da Lei Federal nº 13.665/18, diploma que promoveu expansão substancial do Decreto-Lei nº 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Conhecida por alguns como "a nova LINDB", os novos dispositivos se voltam especificamente para as múltiplas dimensões de aplicação do direito público: administrativa, controladora ou judicial.

Entre as várias inovações positivas, a alteração na LINDB inseriu no ordenamento jurídico dispositivo que autoriza a realização de compromisso entre a Administração Pública e particulares. Embora não tenha sido uma inovação plena, afinal outros mecanismos similares já existiam (TACs, acordos de leniência, colaboração premiada, acordos substitutivos no âmbito das agências reguladoras, termos de compromisso no âmbito da CVM, termos de cessação de conduta no âmbito do CADE, etc.), o artigo 26 da LINDB universalizou e consagrou, em definitivo, a consensualidade como um instrumental de ação administrativa.

Estabelece o dispositivo que para "eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público (hipóteses), inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral (pressupostos), celebrar compromisso com os interessados (meio), observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial (condição de eficácia)". Por fim, dispõe sobre os elementos fundamentais do compromisso no seu parágrafo primeiro.

O dispositivo, portanto, contribui para a substituição de uma administração que só age de forma impositiva e unilateral por uma administração que também negocia, busca consensos e ajusta acordos de vontade. O pressuposto fundamental é que a consensualidade pode ser mais útil, eficiente e democrática do que a imposição unilateral de vontades da Administração e do que arrastar discussões administrativas e/ou judiciais por anos.

Apesar do potencial positivo do artigo 26, passados dois anos de sua publicação ainda é difícil encontrar autoridades administrativas que dele se utilizem. Em verdade, muitas autoridades desconhecem a sua existência. Assim, salvo a regulamentação federal por meio do Decreto nº 9.830/2019 e os regramentos e práticas dos órgãos e entidades que já se utilizavam da negociação antes da alteração na LINDB, o artigo 26 ainda aguarda sua plena implementação.

Entende-se que a não utilização do permissivo criado pelo dispositivo se deve, em parte, à sua não regulamentação pela maioria dos entes federados. Embora a regulamentação não seja uma condição de validade e eficácia da negociação público-privada, ela dá ao gestor e ao particular maior certeza e segurança sobre a licitude e estabilidade do negócio, além de deixar mais claro a sua possibilidade abstrata.

Contudo, a atípica situação por qual passa o país (e o mundo) pode funcionar como um fator de estímulo à ampliação da atividade negocial do Poder Público.

Por um lado, é certo que as situações de excepcionalidade, urgência, calamidade, etc. tendem a requerer e justificar ações estatais com alto teor de coerção e restrição. Por outro lado, entretanto, não é menos verdadeiro que mesmo nessas situações a negociação e o consenso podem ser caminhos produtivos. Isto é ainda mais verdadeiro quando se tem em mente a quantidade e variedade de controvérsias jurídico-administrativas que surgirão após o fim da situação de calamidade ou mesmo durante a progressiva transição de volta à "normalidade".

Entre outras, pode-se imaginar diversas situações de irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa que poderão emergir durante e depois do período de crise: I) desequilíbrios econômico-financeiro de contratos, sejam eles de concessão, sejam de obras regidas pelo RDC, sejam de obras submetidas ao regime ordinário, sejam os de prestação de serviço e/ou de entrega de bens; II) descumprimentos contratuais os mais diversos (prazo, objeto, modo, informação, etc.) e nos mais diversos tipos de contratos; III) prejuízos, potenciais ou consumados, derivados de requisições administrativas ou desapropriações (in)diretas; IV) prejuízos, potenciais ou consumados, derivados da imposição de limitações administrativas ou expropriações regulatórias/ordenadoras, temporárias ou não; V) desrespeito a medidas a todos impostas; VI) incertezas sobre a incidência ou não de vedações/limitações em decorrência da pluralidade de atividades exercidas pelo particular; VII) dúvidas sobre a licitude de determinadas condutas em decorrência da sobreposição de vedações e não-vedações por entes federados diversos; VIII) incertezas sobre o trâmite, o estado ou os prazos dos processos administrativos decorrentes da enorme quantidade de atos normativos publicados e da extrema dificuldade de acompanhá-los; e IX) ações de improbidade e procedimentos administrativos de investigação e punição de servidores a respeito de suas posturas, orientações e decisões durante o período de calamidade.

Ademais, mesmo com a suspensão da vida ordinária, as mais variadas controvérsias administrativas que não possuem qualquer relação com a pandemia certamente continuam surgindo diariamente.

É evidente que a variedade de situações é grande, assim como suas complexidades e impactos sociais e/ou individuais. Diversas delas estão ligadas à aplicação ou não de sanções, muitas estão atreladas à continuidade regular de atividades essenciais ou simplesmente importantes, a maioria envolve questões de insegurança jurídica.

Este parece ser um ambiente fértil para intensificar a realizações de negociações público-privadas. A sobrecarga de processos administrativos com potencial de se alongarem por muito tempo, em esfera administrativa e judicial, recomenda uma ação conciliadora e negocial do Poder Público. O negócio público-privado antecipa no tempo a satisfação do interesse público, descarrega a administração sancionadora e impositiva para lidar com questões em que a negociação se mostrar impossível ou inviável, minimiza a necessidade de judicialização, possui uma tendência a estimular o cumprimento pelo particular maior do que a continuidade da controvérsia e, ao menos em tese, possui menos custos de transação do que as alternativas. Adotar, por princípio ou viés de inércia, uma postura não-negocial pode se traduzir em ineficiência e prejuízo ao interesse público.

Vale destacar que o regramento criado pelo artigo 26 da LINDB é amplo o suficiente para autorizar os mais variados tipos de negociações e compromissos. Embora seja possível e até recomendável ao administrador olhar para práticas e modelos já consolidados de negociação público-privada, ele não está obrigado a segui-los. Há espaço para criatividade e modelagens de soluções 'fora da caixa". Em verdade, a situação de excepcionalidade que vivemos clama por soluções inovadoras.

Evidentemente que esse campo de criatividade deverá estar pautado não apenas pelos pressupostos e condições acima delineados, mas, também, pela ampla transparência, publicidade e adequada e específica motivação/fundamentação. A negociação público-privada é uma forma de agir administrativo, razão pela qual segue balizada pelos princípios que regem escolhas públicas.

Poder-se-ia arguir que a quantidade de situações conflituosas, de incerteza ou de irregularidade será tão grande que o ideal seria, ao invés da celebração de acordos público-privados, a elaboração de um regime especial estabelecido em lei. Embora um regime legal apresente relevantes aspectos positivos, estas alternativas não são e não podem ser excludentes. Isso porque, ainda que se institua regimes especiais ou de transição, haverá sempre a possibilidade de incerteza jurídica, situação contenciosa ou existência ou não de irregularidade a respeito da sua aplicação. Ou seja, a edição de lei não torna a atividade administrativa-negocial desnecessária.

Em um cenário de possíveis múltiplas negociações público-privadas, os órgãos de controle deverão atuar em uma linha tênue. Por um lado, devem estar atentos para que as negociações público-privado não se transformem em uma válvula de escape para o esvaziamento completo da legalidade ou para capturas particularistas. Os objetivos, mecanismos, pressupostos e condições deverão estar presentes e motivados. Por outro lado, devem: I) reconhecer a licitude e legitimidade abstrata da consensualidade administrativa e das negociações público-privadas; II) presumir a boa-fé do particular e do gestor; III) não pretender se substituírem aos gestores; e IV) considerar "os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo" (artigo 22 da LINDB).

As situações de excepcionalidade não precisam ser conduzidas apenas pelo "Direito Administrativo raiz" (autoridade, unilateralidade, imposição), como quis um meme que circulou nas redes sociais nas primeiras semanas da quarentena. Pode ser também um momento em que o convívio entre coerção (sempre limitada e condicionada) e negociação (sempre limitada e condicionada) seja não só possível, mas necessário. A manutenção desta convivência no médio e longo prazo pode ser um legado positivo do momento atípico que se vive.

Autores

  • Brave

    é advogado do Rego, Nolasco & Lins Advogados, professor de Direito Econômica da Faculdade Baiana de Direito, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/BA e mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!