Opinião

Sobre a interceptação telefônica na investigação policial

Autor

  • João Gabriel Cardoso

    é delegado de Polícia no Estado do Ceará professor do Curso de Carreiras Jurídicas Universo Juris pós-graduado em Direito Administrativo pela Faculdade de Ciências Wenceslau Braz autor de obras jurídicas aprovado em diversos concursos na área de segurança pública e ex-servidor público federal da Universidade de Brasília (UnB).

5 de maio de 2020, 21h35

O presente artigo tem por finalidade tecer argumentos acerca da (des)necessidade de individualização da(s) conduta(s) dos suspeitos no momento em que a autoridade policial elabora a representação por interceptação telefônica.

Ab initio, vale destacar que a interceptação telefônica é medida regrada pela Lei nº 9.296/96, tendo legitimidade para a sua representação e requerimento, respectivamente, a autoridade policial e o Ministério Público. Ressalta-se que o juiz também é legitimado para decretar ex offício, em que pesem as críticas quanto à sua legitimidade na fase inquisitorial, bem como na fase processual com o surgimento da Lei 13.964/2019, intitulada de Lei Anticrime.

Para que se possa representar pela interceptação telefônica, faz-se imprescindível obedecer aos requisitos cumulativos previstos no artigo 2º, quais sejam: haver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal; a prova não puder ser obtida por outros meios disponíveis; e o fato investigado constituir infração penal apenada com pena de reclusão.

Logo, a legislação traz requisitos de suma importância, e em um deles se tem a previsão de a interceptação das comunicações telefônicas ser medida imposta como ultima ratio, tendo cabimento apenas quando não há outros meios de se apurar a infração que é objeto de investigação, isto é, quando já foram realizadas diversas tentativas no sentido de elucidar a infração, como a obtenção de provas testemunhais ou periciais, por exemplo, de modo que em nenhuma delas houve êxito.

No entanto, o que se visa discutir é se a autoridade policial teria algum empecilho em representar pela medida cautelar de interceptação telefônica caso perceba que no inquérito policial há indícios razoáveis de uma prática criminosa apenada com reclusão, porém não se tem a delimitação da conduta de cada um dos representados.

Para fins de didática, basta imaginar a seguinte situação hipotética: a autoridade policial investiga os delitos de tráfico ilícito de drogas e de associação para o tráfico, e, apesar de ter indícios razoáveis de que um grupo X exerce a traficância, não sabe exatamente quem realiza a função de vender, e quem realiza a função de manter em depósito ou de transportar.

Diante desse cenário, pergunta-se: a autoridade policial estaria inviabilizada de representar pela interceptação telefônica simplesmente porque não tem a delimitação da conduta de cada um dos suspeitos envolvidos na prática delitiva?

A resposta, na visão deste autor, somente poderá ser negativa. E para confirmar a tese, há três interessantes argumentos favoráveis.

O primeiro decorre da própria Lei nº 9.296/96, que, ao admitir a representação por interceptação telefônica, somente impõe que haja os indícios razoáveis de autoria, não exigindo que haja a delimitação da conduta de cada um dos investigados. Logo, os indícios razoáveis de autoria podem restar consubstanciados, por exemplo, em relatório de missão policial ou boletins de ocorrência registrados por terceiros que apontem que determinados suspeitos possivelmente estão praticando o delito que é objeto de investigação, sem que se tenha a delimitação da conduta de todos os envolvidos.

O segundo encontra fundamento na doutrina e, para fortalecer a tese, faz-se importante expor as lições do brilhante doutrinador Renato Brasileiro de Lima, que diz em sua obra:

"A palavra indício de autoria (ou de participação), no sentido em que foi utilizada no artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.296/96, deve ser compreendida com o significado de prova semiplena, ou seja, um elemento de prova mais tênue, com menor valor persuasivo, nos mesmos moldes que o CPP se refere à decretação da prisão preventiva (artigo 312). No tocante à autoria, portanto, não se exige que o juiz tenha certeza, bastando a presença de elementos informativos ou de prova que permitam afirmar, no momento da decisão, a existência de indício suficiente, isto é, a probabilidade de autoria. Portanto, é necessária a presença de, no mínimo, algum elemento de prova, ainda que indireto ou de menor aptidão persuasiva, que possa autorizar pelo menos um juízo de probabilidade acerca da autoria ou da participação do agente no fato delituoso"

Por derradeiro, há precedentes tanto da quinta quanto da sexta turmas do Superior Tribunal de Justiça, que reproduzem a mesma tese, conforme se pode observar no RHC nº 43.947/RJ [1], no AgRg no HC nº 553.348/CE [2] e no AgRg nº 469.880/SP [3]:

"Na fase investigativa não se exige que a autoridade policial ou o juiz individualizem a conduta de cada suspeito, ou mesmo justifiquem a necessidade de interceptação de cada um dos terminais telefônicos ou endereços eletrônicos monitorados, bastando que demonstrem, suficientemente, a existência de indícios de que delitos estejam sendo cometidos, e que a medida invasiva é indispensável para a obtenção das provas necessárias para a elucidação".

Note-se que as decisões são das turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça, e não do plenário. No entanto, todas elas se encontram em perfeita sintonia com a própria lei, pois nenhum sentido teria se a autoridade policial somente pudesse representar pela interceptação quando se tivesse a conduta delimitada de cada um dos representados. Ora, se a interceptação telefônica é justamente para se atingir a conduta delimitada dos autores ou partícipes de ilícitos criminais apenados com reclusão, então incorreto seria o raciocínio dessa exigência no momento da representação.

Desse modo, cumprindo o objetivo do presente artigo, vislumbra-se que não é necessária a individualização da conduta de cada um dos investigados para fins de representação por interceptação telefônica, haja vista os argumentos despendidos acima, que possuem base legal, doutrinária e jurisprudencial.

 

Referências bibliográficas
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único/Renato Brasileiro de Lima. – 4. Ed., rev., atual e ampl. – Salvador: Juspodvm, 2016.

Jusisprudência do STJ JusBrasil. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/807308850/agravo-regimental-no-habeas-corpus-agrg-no-hc-469880-sp-2018-0243675-7?ref=serp Acesso em 21 de abril de 2020.

Jusisprudência do STJ JusBrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/767055883/andamento-do-processo-n-533348-agrg-no-habeas-corpus-09-10-2019-do-stj?ref=feed Acesso em 21 de abril de 2020.

Site do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1486355&num_registro=201304196060&data=20160223&formato=PDF Acesso em 21 de abril de 2020.

 


[1] RHC nº 43.947/RJ, 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Min. Rel. Jorge Mussi. Julgado em 18/02/2016. DJE 23/02/2016.

[2]AgRg no HC nº 553.348/CE, 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Min. Jorge Mussi. Julgado em 01/10/2019. DJE 10/10/2019.

[3] AgRg no HC nº 469.880/SP, 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Min. Rel. Laurita Vaz. Julgado em 17/12/2019. DJE 03/02/2020.

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    é delegado de Polícia Civil do Estado do Ceará, professor de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade Ieducare e especialista em Direito Administrativo pela Faculdade de Ciências Wenceslau Braz.

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