Opinião

Médicos precisam de 'vacina jurídica' para enfrentar colapso

Autores

  • Matheus Pupo

    é sócio do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo IDPEE da Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

  • André Damiani

    é especialista em Direito Penal Econômico sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados.

5 de maio de 2020, 17h49

O ano de 2020 será lembrado pela pandemia da Covid-19, doença respiratória aguda cujos primeiros casos foram diagnosticados na China e se alastrou, rapidamente, para os demais continentes, deixando um rastro de vítimas fatais na Itália, Espanha e, mais recentemente, nos Estados Unidos.

O impacto dessa emergência sanitária no Velho Continente é tão devastador que a Itália, em 19 de março deste ano, superou o número de óbitos confirmado no epicentro da calamidade (província de Hubei, China), muito embora possua um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo. 

A Itália, assim como outros países, não se preparou para o atendimento intensivo de uma concentração abrupta de pacientes. Por causa disso, não há médicos, remédios e respiradores artificiais suficientes ao enfrentamento do flagelo.

O elevado grau de calamidade atingido na Itália fez com que a Siaarti (Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva) emitisse norma ética estabelecendo critérios específicos sobre "quais pacientes serão submetidos a tratamentos intensivos, quando os recursos não forem suficientes para todos ou quando eles não possuem a mesma chance de recuperação", durante a pandemia da Covid-19.

As autoridades médicas italianas, diferentemente do que se noticiou, jamais estabeleceram que os pacientes maiores de 80 anos, acometidos pela Covid–19, seriam alijados de tratamento intensivo. Noutra direção, a Siaarti fixou 15 critérios, os quais deverão ser valorados pelo médico caso seja obrigado a escolher qual paciente receberá prioritariamente o tratamento intensivo (em razão da falta de equipamento ou de estrutura), sendo que o critério basilar determina que a escolha recaia sobre "aqueles com maior probabilidade de sobrevivência e, em segundo lugar, para aqueles que podem ter mais anos de vida saudáveis, com vistas a maximizar os benefícios para a maioria das pessoas".

No Brasil, a regra geral determina o atendimento do paciente em situação mais grave, chamado de "vaga zero", nos termos da Resolução n.° 2.077 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Todavia, para o contexto emergencial caracterizado pela carência de vagas (infelizmente muito comum em algumas unidades do SUS), é prevista a aplicação das disposições da Resolução CFM n.º 2.156, a qual estabelece, de forma escalonada, "critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva". Segundo o artigo 6º da referida resolução, existem cinco patamares de prioridade:

"Prioridade 1 — Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico;

Prioridade 2 — Pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e em nenhuma limitação de suporte terapêutico;

Prioridade 3 — Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica;

Prioridade 4 — Pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica;

Prioridade 5 — Pacientes com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação, mas com a possibilidade de doação de órgãos ou tecidos".    

Infelizmente, o grau de colapso do sistema de saúde que se espera durante o pico de casos da Covid-19 jamais foi previsto; por causa disso, o médico será forçado a realizar a "escolha de Sofia" sobre a vida dos pacientes, ou seja, terá de optar por quem irá morrer e quem terá chances de sobreviver, o que é moral e emocionalmente devastador para um profissional da saúde.

Dessa forma, é necessária uma análise criteriosa sobre o estado de saúde do cidadão, buscando-se prevenir que pacientes de baixa prioridade ocupem leitos e insumos destinados a enfermos mais graves. Pior ainda, os médicos serão obrigados a promover internações tardias nas UTIs e altas médicas prematuras, sempre em contrariedade com os protocolos até hoje estabelecidos. Em reforço, acabarão por criar subníveis dentro de cada classe de prioridade, por conta própria, à margem da legislação do CFM; tudo isso visando a salvar o maior número de pessoas.

Ocorre que tais ações poderão gerar nefastas consequências pessoais ao médico. Afinal, a atuação em desacordo com protocolos poderá ensejar a instauração de sindicâncias e processos administrativos. Além disso, o descontentamento de uma família, tendo em vista que seu ente querido não recebeu determinado tratamento de suporte à vida, dará causa ao ajuizamento de ações indenizatórias e a instauração de procedimentos criminais para apurar prática dos crimes de omissão de socorro (artigo 135 do Código Penal) ou homicídio culposo (artigo 121, §3º, do Código Penal), sob a acusação de negligência ou imperícia médica.

Por causa disso, o CFM ou o Ministério da Saúde deveriam, urgentemente, criar norma ética específica e objetiva para o atual cenário de calamidade sanitária, buscando-se "vacinar" o médico das consequências jurídicas de seus atos. Afinal, nada mais perigoso do que relegar a gabinetes climatizados o julgamento de intervenções promovidas lá no front, em salas de emergência e UTIs abarrotadas de pacientes moribundos.

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    é sócio do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo IDPEE da Universidade de Coimbra, em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

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    é sócio fundador do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GV-LAW).

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