Opinião

Estado não deve ser responsabilizado por prejuízos do comércio na quarentena

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4 de maio de 2020, 19h52

O coronavírus mudou drasticamente a realidade social de todo o mundo. A Covid-19, com origem atribuída à província de Hubei, República Popular da China, rapidamente espalhou-se pelo mundo todo, sendo declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como pandemia em 11 de março  [1].

Nesse mesmo período, a OMS passou a recomendar o isolamento como "a forma mais eficaz de salvar vidas" [2]. Alinhado às práticas globais, o Governo Federal editou a Lei nº 13.979/2020 estabelecendo protocolos de isolamento e quarentena, fixando regras de locomoção em todo o território nacional, além de regular o funcionamento restritivo de serviços públicos e privados.

Nos estados e municípios por todo país proliferaram normas determinando uma série de atividades que ficaram proibidas de funcionar, tais como cinemas, teatros, bares, clubes, academias, restaurantes, lojas, shopping centers, centros comerciais, dentre outros [3].

O fechamento de atividades públicas e privadas produziu e produzirá consequências financeiras graves em todo o País. De acordo com as projeções da CNC para 2020, o comércio brasileiro amargará perdas da ordem de R$ 25,3 bilhões, geradas pelas alterações de rotina e fechamento de lojas trazidos pelo isolamento social decorrente da pandemia [4].

Toda essa contextualização, entre normas federais, estaduais e municipais, visa a dimensionar o emaranhado de regras que regulamentam a sistemática de combate social, econômica e de saúde relacionada à Covid-19. Nesse cenário é que se propõe analisar a responsabilidade extracontratual do Estado por prejuízos advindos do fechamento do funcionamento de estabelecimentos privados.

Da responsabilidade civil do Estado derivada de Ato Legislativo
A responsabilidade civil do Estado significa o dever de reparação dos danos causados pela conduta estadual, seja omissiva ou comissiva. Esse dever está fundado no princípio romano neminem laedere, que significa agir de forma a não lesar os direitos de outrem. Utilizando as lições do professor Aguiar Dias, "o mecanismo da responsabilidade civil, visa, essencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano" [5]. O professor Felipe Braga Netto acrescenta ainda que "hoje sabemos que nem sempre o equilíbrio desfeito ou alterado pelo dano é econômico. Pode ser, também, moral e estético" [6].

O professor José dos Santos Carvalho Filho leciona que a "noção de responsabilidade implica a ideia de resposta, termo que, por sua vez, deriva do vocábulo latino respondere, com sentido de responder, replicar" [7]. Nessa linha é oportuno recordar que a responsabilidade civil vem adquirindo os seus contornos atuais desde a Constituição de 1946, quando se passou a fixar a teoria do risco administrativo à responsabilidade extracontratual. A CF/88, por sua vez, consagrou a regra da responsabilidade do Estado dentro do Artigo 37, § 6º.

É oportuno recordar que os contornos atuais da responsabilidade civil passaram por processo de mutação, no que se entende pelas quatro fases históricas de evolução da matéria: I) teoria da irresponsabilidade do Estado; II) teoria da responsabilidade subjetiva; III) teoria da culpa do serviço; e IV) teoria da responsabilidade objetiva.

A atual fase vivida é a que se denomina de responsabilidade objetiva do Estado. Caracteriza-se pela "obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem" [8]. O Estado, como garantidor de direitos fundamentais, é chamado a responder em prol do que se denomina de "solidariedade social, solidariedade essa engendrada pelo fato de que toda ação administrativa do Estado é levada a efeito em prol do interesse coletivo" (STF, RE 262.651, relator ministro Joaquim Barbosa).

No que toca aos atos legislativos, até meados do século passado orientavam-se pela teoria da irresponsabilidade. O professor Aguiar Dias lecionava que "o poder público não responde pelos danos resultantes: a) dos atos parlamentares; b) dos atos legislativos; c) dos atos específicos da função jurisdicional" [9]. Hoje, por mais que a aplicabilidade seja mais restrita, não se tem dúvida da aplicação da responsabilidade extracontratual do Estado por atos legislativos.

Nesse viés, o ministro Celso de Mello pondera que o "Estado não dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal" (STF, ADinMC, 1.063-8, relator Celso de Melo, DJ 27.04.01). A majoritária doutrina, tal como professor Matheus Carvalho, entende que a responsabilidade civil derivada de atos legislativos apenas é viável enquanto estivermos diante de leis de efeito concreto ou no caso de leis declaradas inconstitucionais, quando se demonstre o dano direto ao particular.

A lei é destinada a estipular normas gerais e abstratas, medida pela qual, como regra, não está destinada a regular uma situação específica. É esse ato normativo um veículo de regras gerais, sendo incapaz, a priori, de causar um dano específico a alguém. Essa, aliás, é a tese sustentada pelo professor Carvalho Filho, defendendo que "o ato legislativo não pode mesmo causar a responsabilidade civil do estado, se a lei é produzida em estrita conformidade com os mandamentos constitucionais" [10]. Ou seja, apenas seria viável se falar em responsabilidade civil no caso de leis inconstitucionais.

Essa posição, no entanto, não é a defendida pela jurisprudência e a maioria da doutrina pátria. Defende-se que, quando estivermos diante de uma lei de feitos concretos que cause um dano ao particular, aplicar-se-ia a mesma posição adotada aos atos administrativos. Ou seja, no caso de leis de efeitos concretos estaríamos diante de um verdadeiro ato administrativo, aplicando a previsão contida no artigo 37, § 6º da CF.

Nessa medida, portanto, deve a lei terminar por regular e impor ônus específico a certo e determinado grupo de indivíduos. Tem a roupagem de lei, mas reveste-se da concretude de um ato administrativo.

A outra hipótese diz respeito à produção de lei inconstitucional. No caso, a responsabilidade é derivada da indevida atuação do órgão legislativo. A noção de lei inconstitucional está atrelada à prática de um ato ilícito, provocando dever de ressarcir os danos patrimoniais dele decorrentes [11]. Nesse sentido é posição firmada pelo STJ: "Apenas se admite a responsabilidade civil por ato legislativo na hipótese de haver sido declarada a inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado" (STJ, REsp 571.645, relator ministro Otávio de Noronha, 2ª T, DJ 30.20.06).

Fica claro, portanto, que a responsabilidade extracontratual do Estado, balizada no Artigo 30, § 6º, da CF quanto a atos legislativos é restrita. A interpretação da Corte Suprema cinge-se a outorgar a responsabilidade do Estado quanto à edição de atos normativos apenas às duas hipóteses específicas acima elencadas: leis de efeitos concretos ou leis inconstitucionais, que causem dano específico ao particular superior ao bônus experimentado.

Da inviabilidade de responsabilização do Estado por prejuízos na quarentena
A inviabilidade de se atrelar aos estados a responsabilidade advinda de prejuízos experimentados pela redução do consumo e das vendas está atrelada ao seguinte tripé: I) competência dos municípios para regulamentar o funcionamento do comércio; II) excludente de responsabilidade; e III) excludente de ilicitude. Vejamos.

De início, vimos que coexistem normas regulamentando o isolamento social e funcionamento de empreendimentos privados nos âmbitos federal, estadual e municipal. Essa convivência de leis e decretos trouxe um bojo de regras conflitantes. Enquanto as normas federais traziam medidas menos restritivas, alguns estados e municípios adotaram maior rigor nas ações de isolamento social.

Destaque-se que, a princípio, tentou o Governo Federal deixar o tema todo a sua alçada, tal como o fez com a edição da MP nº 926/2020, trazendo alterações à Lei Federal nº 13.979/2020. A MP tentou centralizar a definição das atividades afetadas por medidas de isolamento e quarentena a decreto do presidente da República.

Ocorre que, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.341 DF) proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), reafirmou-se a validade das regras editadas por estados e municípios. Sentenciou o ministro, ainda em análise de pedido cautelar, que há competência concorrente entre os entes federados de normas que cuidem da saúde, de dirigirem o sistema único e executarem ações de vigilância sanitária e epidemiológica, nos termos dos artigos 23, inciso II, 198, inciso I, e 200, inciso II, da Constituição de 1988. Destacou que no caso reside o critério da predominância do interesse.

Nesse cenário, fica claro que cada ente é competente para regular as medidas de isolamento social no âmbito da sua competência, dentro do critério de predominância de interesses. Fica fácil concluir que as medidas que regulamentam o funcionamento do comércio local são da esfera de regulamentação do município, tal artigo 30, inciso I, da CF.

De longa é a tradição do Supremo Tribuna Federal nessa linha, tal como prevê a Súmula Vinculante nº 38 ("É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial").

Em sendo assim, por mais que coexistam regras federais, estaduais e municipais sobre o funcionamento de estabelecimentos privados, é a regra municipal que deve prevalecer. Aliás, tal direcionamento, inclusive, caminha no mesmo sentido das orientações do Ministério da Saúde quanto ao combate ao vírus. Em recente declaração, avaliando a dimensão continental do território do país, o ministro insistiu que a análise das medidas de isolamento devem atentar às peculiaridades de cada região: "Os municípios, Distrito Federal e estados que implementaram medidas de Distanciamento Social Ampliado (DSA), onde o número de casos confirmados não tenha impactado em mais de 50% da capacidade instalada existente antes da pandemia, devem iniciar a transição para Distanciamento Social Seletivo (DSS)" [12].

Portanto, nesse cenário, em que as regras municipais são aquelas que ingerem sobre o funcionamento de comércio local e a análise das questões de predominância local, não pode a responsabilidade pelo eventual fechamento das atividades privadas alcançar o Estado. Não é essa unidade federada a competente constitucionalmente para regulamentar esse tema. Pensar de maneira distinta é atrelar responsabilidade por fato de terceiro, burlando a regra da tricotomia da responsabilidade civil ato, nexo de causalidade e dano.

O segundo aspecto a ser analisado consiste na análise das excludentes de responsabilidade. Por mais que a responsabilidade extracontratual do Estado esteja regida, prioritariamente, pela teoria objetiva, não se afasta que em havendo ruptura do nexo causal não pode o Estado ser chamado a indenizar. O STJ fixa que "existem hipóteses nas quais o nexo de causalidade pode ser afastado: caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima. É certo, porém, que só se afasta esse nexo causal quando demonstrado, com segurança e consistência a ocorrência de uma das excludentes mencionadas" [13]. É exatamente o caso.

Ainda que se supere a inviabilidade de responsabilizar-se o Estado por regras atinentes à esfera de competência do município, não há como atrelar responsabilidade civil ante a clara evidência da caracterização de força maior. De início, recordo a lição do professor Couto de Castro deixando claro que "as expressões caso fortuito e força maior são equivalentes e não se reconhece mais efeitos práticos na distinção entre ambas" [14]. De fato, a relevância no trato jurisprudencial do tema está ligada à distinção entre o fortuito interno e o fortuito externo [15]

In casu, há evidência da configuração do fortuito externo e a ausência do dever de reparação de dano. Como fica claro, a edição de regras de isolamento social e funcionamento da atividade privada não mantém conexão com prévio serviço prestado pelo Estado. De modo que não há como enquadrar em fortuito interno. De outro lado, eventos excepcionais dessa relevância não estão no âmbito de controle do poder público.

O professor Felipe Braga Netto cita que "um tsunami que invade a cidade destruindo imóveis e veículos não empenhará responsabilidade civil do Estado" [16]. O exemplo encaixa-se perfeitamente na repercussão da pandemia da Covid-19: rápida, inesperada e de proporções incalculáveis. As ações de restrição da iniciativa privada visam a promover diretrizes maiores de proteção à vida e à saúde.

A jurisprudência é o maior repositório para identificar uma solução jurídica quanto à (in)existência de responsabilidade civil extracontratual do Estado no presente caso. Recordo caso em que o Estado foi chamado a responder por danos materiais e morais de vítimas em função de fortes chuvas que ocorreram em certa região. O STJ afastou a responsabilidade por entender que não é o Estado garante universal, medida pela qual, inexistindo omissão específica, não concorreu de forma decisiva ao evento, afastando-se o nexo de causalidade [17].

Nesse contexto, portanto, é clara a configuração da força maior que afasta qualquer pretensão reparatória em face do Estado.

O terceiro aspecto sob análise trata das excludentes de ilicitude. Diferente da excludente de responsabilidade, a excludente de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal) afasta a contrariedade do direito da conduta, a ilicitude do ato. Nesse contexto, compete observar se as ações de isolamento social que eventualmente causem dano a particulares estão acobertadas por alguma situação de excludente de licitude.

Nesse cenário, oportuno destacar declaração do ministro Gilmar Mendes quando do julgamento do mérito da ADI 6.341 DF. O ministro, analisando que a proteção da população é dever legal previsto na Constituição, destacou que "o presidente da República dispõe de poderes inclusive para exonerar seu ministro da Saúde, mas ele não dispõe do poder para, eventualmente, exercer uma política pública de caráter genocida" [18]. Ou seja, a atuação de isolamento social e restrição do funcionamento de comércio são medidas necessárias e legítimas no momento.

O STJ, em diversas oportunidades, já cravou que "não há conduta ilícita quando o agente age no exercício regular de um direito" [19]. O exercício regular de um direito não afasta por si só a responsabilidade de indenização, como bem ressalta Odete Medauar: "Deixam-se de lado, para fins de ressarcimento do dano o questionamento do dolo ou culpa do agente, o questionamento da licitude ou ilicitude da conduta, o questionamento do bom ou mau funcionamento da administração. Demonstrado o nexo de causalidade, o Estado deve ressarcir" [20].  No entanto, in casu, dadas as condições que cercam a situação, é liame que não apenas torna lícita a conduta, como afasta o dever de indenizar do Estado.

Portanto, ao analisar os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários que cercam os temas, defende-se que não é viável a responsabilização extracontratual do Estado por danos experimentados por medidas de isolamento social e fechamento do funcionamento do comércio, dada a incompetência do ente para regular o tema e a configuração das excludentes de responsabilidade e ilicitude no caso.

 

 


[3] Como exemplo, cito o Decreto nº 24.887/2020 de 20 de março de 2020 do Estado de Rondônia e o Decreto nº 16.612/2020 de 23.03.2020 do Município de Porto Velho.

[5] DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 557.

[6] NETTO, Felipe Braga. Manual da responsabilidade civil do Estado. 4. ed. Salvador: Jus Podivm,2017, p. 35.

[7] CARVALHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 547.

[8] MELLO, Celso Antônio bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 552.

[9] DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 629.

[10] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 572.

[11] ESTEVES, Julio Cesar dos Santos. Responsabilidade civil do estado por ato legislativo. Del Rey, 2003, p. 249.

[13] STJ, AGRG no AResp 4.684, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª T, DJ 17.04.2012.

[14] CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 7.

[15] NETTO, Felipe Braga. Manual da responsabilidade civil do Estado. 4. ed. Salvador: Jus Podivm, p. 149.

[16] NETTO, Felipe Braga. Manual da responsabilidade civil do Estado. 4. ed. Salvador: Jus Podivm, 2017, p. 148

[17] STJ, AgRg no REsp 1.208.096, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, 1ª T, DJ 02.02.11.

[19] STJ, REsp 303.396, Rel. Min. Barros Monteiro, 4ª T, j. 05.11.02

[20] MEDUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT, 2011, p. 388/389.

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    é procurador do Estado de Rondônia, assessor especial do Gabinete da Procuradoria-Geral do Estado de Rondônia, ex-secretário do Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão e professor de Direito Constitucional.

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