Opinião

União comete equívoco em ações decorrentes de extração ilegal de minérios

Autor

  • Júnior Alexandre Moreira Pinto

    é advogado professor na Universidade de Taubaté e na Escola Paulista de Direito (EPD) mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo e pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

4 de maio de 2020, 18h47

Tornou-se frequente, no âmbito da Justiça Federal, o ajuizamento de demandas condenatórias, a cargo da União, baseadas em extração ilegal de minérios. O ente público federal objetiva, com tais ações, a reparação civil em decorrência da denominada usurpação mineral.

O raciocínio utilizado pela União nessas ações é bem simples e objetivo. Na medida em que o artigo 20 da Constituição da República apresenta os recursos minerais sob sua titularidade (inciso IX), a conduta do minerador que executa a lavra fora dos limites autorizados implicaria no direito ao ressarcimento integral do dano ocorrido. Em outras palavras, subtraído o bem do patrimônio público, haveria o dever de reparação civil ao lesado. Seguindo o mesmo raciocínio, essas ações judiciais trazem, como pedido, o valor de mercado do bem mineral usurpado, cujo volume é quantificado, por exemplo, por laudo de avaliação produzido pela Agência Nacional de Mineração. À luz dos argumentos elencados pela Advocacia Geral da União, teria essa quantia ingressado de forma ilícita no patrimônio do minerador. Na maioria dos casos, essas demandas possuem pedidos condenatórios de valores vultosos, ultrapassando-se com frequência dezenas de milhões de reais.

O que parece um raciocínio lógico exercido pela União, na realidade, pauta-se por um equívoco em sua premissa. Isso porque a titularidade dos bens minerais, garantida pelo citado dispositivo constitucional, não representa uma propriedade civilmente concebida.

O mesmo artigo 20, ao apresentar um rol de bens sujeitos à titularidade da União (entre os quais os recursos minerais inciso IX), tratou de impor uma restrição legal ao pleno exercício desses direitos. Tal constatação decorre, ainda, do artigo 173 do Texto Maior, que proíbe o Estado de exercer diretamente (salvo raras exceções) a exploração dessa atividade econômica. Sendo assim, sua titularidade está verdadeiramente limitada à gestão dos recursos e à outorga a particulares que, sob o preenchimento de determinados requisitos, obterão a concessão para o aproveitamento desses recursos. Essas condições estão previstas na própria Constituição da República e no Decreto-Lei nº 227/67 (Código de Mineração). Isso é, em que pese a titularidade da União, esta não promoverá a exploração do bem e, por conseguinte, não terá o direito à apropriação financeira do resultado da comercialização. Seu domínio tem o limite imposto pela Carta Magna, cabendo ao ente público conceder a particulares o direito de exploração e do resultado da lavra. Nessa linha, o produto da lavra passa a ser de propriedade do minerador.

Por sua vez, receberá a União, como verdadeira contrapartida à impossibilidade de aproveitamento dos recursos minerais, a Compensação Financeira pela Exploração dos Recursos Minerais (CFEM), com regulação nas Leis 7.990/1989 e 8.001/1990. Portanto, o particular concessionário, ao promover o aproveitamento econômico da substância mineral, pagará à União, à luz dos critérios legais compensatórios, uma fração do resultado da comercialização.

No caso em análise, falta o requisito do dano para a incidência da responsabilidade civil, ao menos sob a extensão pretendida. Se a CFEM representa a única prestação devida à União em decorrência do aproveitamento mineral, esse valor seria, de igual sorte, o único que deixaria de ser auferido pela União. Tampouco cabível a indenização pelo valor global do minério extraído irregularmente, sob o aspecto do lucro cessante. Isso porque tal modalidade de dano pressupõe o que razoavelmente se deixou de ganhar. No caso, sob o regime constitucional impeditivo vigente, a União não seria beneficiada pelo valor comercializado da substância mineral.

Houve a necessidade de uma breve exposição dessas questões para se permitir o entendimento de que a premissa utilizada pela União, como fundamento de reparação civil nas demandas promovidas, está equivocada. Como pretende se ressarcir de algo que não ingressará em seu patrimônio? Sob esse prisma, se existente o dever de indenizar, o quantum ressarcitório não poderá ultrapassar aquilo que efetivamente a União receberia diante da exploração, ou seja, o valor relativo à CFEM. Aplicável ao caso, assim, o artigo 944 do Código Civil, que prevê a fixação da indenização pela extensão do dano.

Ao bem da verdade, pretende o ente público buscar a responsabilidade civil valendo-se de um tipo penal, adotado pelo artigo 2º da Lei nº 8.176/91. Ocorre que esse dispositivo legal decorre, simplesmente, da exploração mineral sem a autorização competente. É o que basta à caracterização do crime. Esse raciocínio não serve para que se configure a responsabilização civil, pois há norma constitucional que limita o direito da União sob o aspecto patrimonial.

O argumento utilizado pela União ao não aceitar o valor da CFEM como base de cálculo para a incidência da verba indenizatória decorre do fato de que esta compensação financeira somente seria aplicável às áreas autorizadas. Sendo assim, não seria aplicável diante da prática de atividade ilegal. Entretanto, o raciocínio jurídico correto não pretende equiparar lavras legais a realizadas além dos limites autorizativos. A questão, outrossim, decorre das bases conceituais da reparação civil. Como frisado, a responsabilização, para restar caracterizada, pressupõe a existência do dano. E este, por sua vez, é entendido como o desfalque patrimonial sofrido pela vítima. No caso em apreço, sendo constitucionalmente impossível a incorporação do valor de mercado da substância mineral ao patrimônio da União, não é possível se conceber que essa quantia represente o dano por ela sofrido.

Há outros enganos expostos nas petições iniciais dessas ações, sobretudo quanto aos critérios quantitativos utilizados. Contudo, caberá a análise quanto a essas e outras assertivas em outro ensaio. O primordial, por ora, é afastar a premissa do raciocínio deduzido pela União nas já constantes demandas judiciais civis dessa natureza.

Autores

  • é advogado, professor na Universidade de Taubaté e na Escola Paulista de Direito (EPD), mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo e pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

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