Intervenção indevida

Google não deve avisar que vídeo do Porta dos Fundos pode ser ofensivo a cristãos

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4 de maio de 2020, 20h47

O Estado brasileiro é laico. Sendo assim, não pode exigir que uma obra que não tem capacidade para ofender a fé cristã exiba uma advertência de que tem potencial ofensivo.

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Google não deve avisar que obra do Porta dos Fundos pode ofender cristãos

Esse foi o entendimento firmado pela desembargadora Mônica Libânio Rocha Bretas, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao conceder, nesta segunda-feira (4/5), liminar ao Google para suspender a obrigação de inserir, abaixo do título do vídeo "Inritado", do programa humorístico Porta dos Fundos, advertência sobre a possibilidade de o conteúdo ofender cristãos e o sentimento religioso.

No vídeo, Jesus afirma a um padre que "os meninos do Porta dos Fundos" ficaram chamando-o de gay porque ele "levou um garoto do deserto para casa". Então Jesus pede que o padre processe o Porta dos Fundos e promova hashtags contra o grupo. O padre sugere que Jesus volte à Terra para salvar o mundo de guerras e crises. Mas Jesus diz que o mais importante no momento é combater o humor.

Trata-se de uma ironia do grupo aos ataques que sofreu devido ao seu especial de fim de ano, que retrata Jesus como homossexual. A obra chegou a ser censurada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, decisão depois suspensa pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli.

A Eloos Associação pela Equidade moveu ação civil pública, e a 10ª Vara Cível de Belo Horizonte concedeu liminar obrigando o Google a inserir, antes do vídeo, o seguinte texto: "Aviso para devotes e crentes no cristianismo ou pessoas sensíveis: este filme contém cenas que podem ser interpretadas como ofensa ao sentimento religioso". "Se for o seu caso, não assista."

Em agravo de instrumento, o Google alegou que a população conhece o conteúdo humorístico do canal e que a sinopse do vídeo deixa claros os temas e o modo como eles são tratados. Segundo a empresa, o objetivo da Eloos é "estigmatizar um conteúdo com o qual discorda, obtendo a chancela do Estado para sua própria convicção quanto ao teor do vídeo".

Para a multinacional, do ponto de vista jurídico, não se pode se confundir sátira com ofensa, e o consumidor não deve ser infantilizado, pois escolhe o que deseja consumir. A intervenção do Estado, de acordo com o Google, "flerta perigosamente com a censura".

Liberdade de expressão
Em sua decisão, a desembargadora Mônica Libânio Rocha Bretas apontou que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, entendeu que o direito à liberdade de expressão deve ser caracterizado como um "sobredireito fundamental", dada sua importância para o desenvolvimento da personalidade do sujeito e para a concretização de uma sociedade livre, plural e democrática.

Dessa maneira, só se pode proibir previamente a divulgação de opinião ou informação em casos absolutamente excepcionais, avaliou a juíza. Caso contrário, haverá censura. Para evitar isso, é preferível optar pela reparação posterior de eventuais danos, disse Mônica. Nessa mesma linha, o Estado não deve inserir avisos sobre a potencial ofensa de um conteúdo aos devotos de uma fé, argumentou.

"Pelo mesmo raciocínio, não considero devida a intervenção estatal no conteúdo ora discutido, por meio de uma advertência dirigida aos 'devotos e crentes no cristianismo ou pessoas sensíveis', pois, aderindo aos fundamentos supracitados, não vislumbro potencial de uma sátira humorística arrefecer os valores da fé cristã, já enraizada há séculos na sociedade brasileira, que, além disso, se assenta sob as bases de um Estado laico."

A magistrada também ressaltou que, na internet, as pessoas não são involuntariamente expostas a vídeos — elas que clicam nos que querem assistir e podem interromper a reprodução quando desejarem.

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1.0000.20.049964-8/001

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