Opinião

O apito dourado de Sergio Moro

Autores

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

  • Ariel Barazzetti Weber

    é advogado criminalista e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

4 de maio de 2020, 13h32

Poucas pessoas podem viver de acordo com suas próprias regras. Sergio Moro pode vir a se tornar um desses privilegiados indivíduos. Ao anunciar em coletiva sua saída do governo federal, antecipando os motivos pelos quais o fizera, o ex-juiz da "lava jato" e ex-ministro da Justiça atraiu para si — ao menos esse é o ponto que nos propusermos a discutir — a aplicação da novidade legislativa por ele patrocinada: a figura do informante do bem.

Também conhecida como whistleblower, expressão de origem anglo-saxã que, traduzida para o português significaria "soprador de apito", tem esse nome devido ao antepassado método de comunicação da polícia quando em frente a um crime em andamento ou perigo: soprava-se o apito para comunicar os colegas e demais pessoas de profissão e demais pessoas das redondezas. Com o passar dos anos, o apito, lá fora, foi entregue também aos cidadãos, permitindo denúncias desde irregularidades até mesmo crimes que estejam em andamento ou tenham ocorrido dentro de empresas ou órgãos do governo. Do século 15 até os dias atuais, vários nomes tornaram-se conhecidos em decorrência de sua atitude denunciativa de atos ilegais ou irregulares, destacando-se o "garganta profunda" da administração de Nixon, até Edward Snowden, em casos mais recentes.

No Brasil, há uma tendência, por meio de teorias importadas, de tornar cidadãos comuns em verdadeiros garantes, exigindo dos mesmos a denúncia de atos sob a ameaça de processo penal e prisão. Nesse contexto, o informante do bem opera de maneira oposta: premia-se o individuo que, espontaneamente, esteja disposto a denunciar o que acredita estar em desacordo com as normas vigentes.

Introduzido por meio da Lei 13.964/2019, o instituto do informante do bem assegura a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público. Para tanto, a legislação exige que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista mantenham unidade de ouvidoria ou correição.

O dispositivo legal garante proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, exceto se o informante tiver apresentado, de modo consciente, informações ou provas falsas. Pergunta-se, então: um informante do bem só terá direito a essa proteção se a denúncia houver sido feita por meio da ouvidoria ou corregedoria?

Responder positivamente à questão levaria, a nosso ver, a uma drástica redução da aplicabilidade do instituto, contrariando o objetivo da norma, que é justamente abrir caminho a denúncias de irregularidades e possíveis ilicitudes. A forma e o meio da denúncia pouco importarão, desde que respeitados os preceitos da legislação: informações cujo conteúdo o informante julgue verdadeiro sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público.

A inserção da figura na lei do "disque-denúncia" está muito mais inclinada à proteção da identidade do informante do que a exigência desse formato para sua caracterização. Levado a cabo o formalismo extremo, sequer notícias endereçadas às autoridades investigativas permitiria a proteção do informante, o que não parecer ser a intenção do legislador.

Dentro desse contexto, parece-nos que a coletiva de imprensa de Sergio Moro tornou-o verdadeiramente um informante do bem para fins legais, já que destacou ações do presidente da república que, em análise superficial, contrariariam o interesse público, e, quiçá, configurem abuso de poder e desvio de finalidade de atos do governo. Falou-se em Sergio Moro como delator, contudo, a figura não parece ser aplicável, pois, em princípio, não estamos a tratar de ilícitos criminais no seio de uma organização criminosa, e, tampouco o ex-ministro afirmou a prática ou conhecimento de crimes.

Em sendo enquadrado o ato de revelação de Moro como uso de seu “direito de relatar informações crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público”, o ex-ministro terminaria por se beneficiar de legislação por ele patrocinada e defendida. Outrossim, ele passaria a ser protegido contra ações ou omissões praticadas em retaliação ao exercício do direito de relatar.

Aí reside o principal e final direito de Moro, sendo ele considerado informante do bem: isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato feito. E, nesse caminho, o depoimento que virá a prestar ou a coletiva que já prestou não podem ser utilizadas contra ele. É dizer, portanto, que resta descabida a menção por parte da Procuradoria-Geral da República a crimes contra a honra e a descabida previsão de denunciação caluniosa.

O futuro de Moro e seus relatos, a não ser que se comprove falsas as informações e a má-fé do ex-Ministro, está, portanto, intimamente entrelaçado ao destino da novel legislação. À PGR caberá assegurar os direitos previstos na legislação, sob pena de agir contra as previsões legais mencionadas, levando ao descrédito e prematura morte da figura do informante do bem no direito pátrio.

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