Opinião

PL 1397/2020 é instrumento oportuno, mas precisa de ajustes

Autores

  • Juliana Bumachar

    é advogada sócia de Bumachar Advogados Associados presidente da Comissão Especial de Recuperação Judicial e Falência da OAB/RJ professora convidada da Pós-Graduação Lato Senso da FGV Direito Rio membro do Núcleo de Estudos em Direito Empresarial e Arbitragem da FGV Direito Rio e do Grupo de Trabalho do CNJ para modernização da atuação do Judiciário nos processos de recuperação e falência e do Conselho Administrativo do TMA Brasil.

  • Gabriel Broseghini Mendonça

    é advogado associado do escritório Bumachar Advogados.

4 de maio de 2020, 11h06

De um dia para o outro, sem qualquer margem de previsibilidade, o mundo está tendo de lidar com a maior crise econômica desde a quebra da Bolsa de Nova York, efeito da pandemia da Covid-19. As previsões para o Brasil são assustadoras. O Banco Mundial já fala em uma brutal recessão, com queda de 5% do Produto Interno Bruto nacional. As empresas, depois de uma década praticamente perdida, com crescimento pífio, agora se veem na contingência de lidar com um desastre econômico sem precedentes na história brasileira.

A última década já não havia sido fácil. Muitas empresas entraram em recuperação judicial, buscando no Judiciário o apoio necessário para se reerguer. A título de ilustração, o número de ajuizamento de pedidos de recuperação judicial na metade de 2019 foi aproximadamente 90% maior que o mesmo período de 2018, que por sua vez foi cerca de 30% maior que em 2017.

Havia, no entanto, um certo otimismo no ambiente econômico. O cenário que se avizinhava, diferente do atual, era difícil, mas previsível. Tudo mudou, radicalmente. Se o cenário para as companhias saudáveis não é nada animador, o que dizer para as empresas em regime recuperação judicial?

Diante desse cenário de crise, foram propostas algumas medidas para mitigar os efeitos causados pelo vírus nas sociedades em recuperação judicial. Um exemplo está no rápido e eficaz trabalho desenvolvido pelo Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que publicou a Recomendação 63 [1], de 31 de março, aos magistrados competentes para processar e julgar recuperações empresariais e falência.

Além das recomendações do CNJ, merece destaque também o Projeto de Lei 1.397/2020 (PL transitório), que institui medidas de caráter emergencial, mediante alterações, de caráter transitório, na Lei 11.101/2005 (LRF) pelo menos até 31 de dezembro, ou até quando perdurar a pandemia.

Em que pese o PL transitório ainda não tenha sido aprovado pelo Congresso, ele já é objeto de intensos debates pelos especialistas em razão do que dispõe o seu artigo 12 [2], que autoriza a inclusão, no plano, de créditos vencidos após o ajuizamento do pedido de recuperação judicial.

Antes de tecer considerações ao referido dispositivo, louva-se todo e qualquer medida proposta com objetivo de agregar e trazer soluções para as empresas em dificuldade (sobretudo pelo fato de o Governo Federal não ter proposto nenhuma medida específica para as empresas já em processo de recuperação judicial).

No entanto, conquanto em um primeiro momento a faculdade de incluir créditos vencidos após o ajuizamento do pedido de recuperação judicial possa ser uma medida de desafogo para a sociedade em crise financeira, no médio ou no longo prazo tal medida pode trazer mais malefícios do que benefícios, sobretudo afetar a já escassa oferta de crédito para empresas que se encontram submetidas ao regime recuperacional.

A recuperação judicial é um instituto de Direito Econômico, cujo objetivo é salvar a empresa (atividade) viável economicamente para que a mesma possa continuar exercendo sua função social. Como se sabe, o ajuizamento do pedido recuperacional estabelece um marco: todos os créditos existentes na data do pedido estarão submetidos ao plano de recuperação judicial (artigo 49, caput, da LRF). A contrário senso, os créditos que nasceram após o pedido de recuperação judicial não estão sujeitos ao regime de recuperação judicial e, portanto, não podem ser alterados pelo plano de recuperação judicial.

Além disso, nenhum credor que seja detentor de crédito submetido ao processo poderá satisfazer o seu crédito pela via extrajudicial, fora daquilo que for aprovado pela assembleia de credores, no plano de soerguimento, sob pena de violação ao princípio da igualdade entre os credores (ou como também é conhecido, princípio da pars condititio creditorum).

E o artigo 49 é fundamental para todo o processo de recuperação judicial, sobretudo no que tange à concessão de crédito para as empresas que se utilizam do regime recuperacional.

Atualmente não se consegue imaginar o desempenho de atividade empresarial sem a concessão de crédito. Estudos já comprovaram o óbvio: para manter o negócio, a empresa deve ter acesso a recursos que lhe permitam pagar fornecedores de produtos e serviços que sejam essenciais, bem como pagar trabalhadores, seguros, aluguéis, prestadores de serviços e outras despesas operacionais, além de custos associados diretamente à preservação do valor dos ativos, sem prejuízo das despesas do próprio processo.

Ressalta-se que a oferta de novos recursos ao devedor em crise é importante não apenas para a própria devedora, mas também para os credores parceiros e financiadores, os quais, ao promoverem investimentos na empresa, demonstram aos demais credores que o negócio é viável. E, com isso, cria-se uma "bola de neve do bem", pois, com mais e mais credores apoiando a devedora, aumenta-se a confiança de todos os envolvidos no processo de recuperação judicial, de modo a assegurar o prosseguimento das atividades da empresa.

Mas por que os credores aceitam continuar financiando a recuperação judicial? Para além de acreditarem na continuação da empresa, o credor avalia o risco do negócio, pois para ele é importante manter o cliente, sendo certo que, na medida do possível, o seu crédito está resguardado, possuindo a segurança de ser considerado extraconcursal, tanto no âmbito da recuperação judicial, como na hipótese de uma eventual falência da sociedade recuperanda, circunstância em que terá preferência no reembolso dos recursos aportados.

Agora veja: o artigo 12 do PL transitório visa a excluir essa garantia do credor parceiro, de modo que este credor, que resolveu acreditar na empresa em recuperação judicial — quando os outros pararam de fazer negócios com ela — fique totalmente desguarnecido. Assim, qual o incentivo que ele terá para continuar fornecendo para a sociedade recuperanda?

A resposta é intuitiva: nenhum. O mercado de financiamento de empresas em recuperação judicial no Brasil ainda é tímido e, talvez, com medidas como a que foi proposta pelo PL transitório, possa se tornar ainda menos utilizado, pois haverá significativo aumento dos riscos para o financiador, o que, consequentemente, implicará no aumento do custo do crédito para a sociedade devedora.

Como bem adverte Leonardo Adriano Ribeiro Dias, em sua obra Financiamento na Recuperação Judicial e Falência:

"O potencial investidor em empresas em recuperação judicial mede, avalia e precifica os riscos contra o retorno que pode obter, mas ele não pretende lidar com variáveis cuja incerteza não consiga mensurar ou estabelecer um preço que considere justo. Ainda que possa recorrer ao Poder Judiciário para reaver seu crédito, nenhum investidor correrá riscos para depois perder parte ou a totalidade de seus investimentos" [3].

Sem prejuízo do risco legal [4], o disposto no artigo 12 do PL transitório pode, ainda, trazer outras consequências graves para o processo de recuperação judicial, como por exemplo a diluição dos credores, o que traria ainda mais descrédito para o processo de recuperação judicial.

Além disso, qual o tratamento que deverá ser dado a esse credor que teve seu crédito incluído após o ajuizamento do processo de recuperação judicial? O plano de recuperação judicial poderá prever uma subclasse com condições de pagamento melhorada para estes credores com crédito constituído após o ajuizamento do pedido? E como tratar o crédito dos credores trabalhistas que surgiram após o ajuizamento do pedido?

Alterar as regras do jogo com a partida em andamento gera desnecessária insegurança jurídica e, a depender das modificações, os malefícios podem superar os benefícios. Assim, além de trazer instabilidade para os processos em andamento, a medida proposta, na forma do artigo 12 do PL, tende a prejudicar o credor parceiro que, de boa-fé, concordou em apostar no reerguimento da empresa, além de colocar um pá de cal no mercado de credito para empresas em crise, que agora se veem, súbita e injustamente, equiparadas aos demais credores.

Parece-nos que a solução mais adequada seria permitir que este credor, que teve o seu crédito constituído após o ajuizamento do pedido de recuperação judicial, tenha o direito de optar em se submeter ou não às condições de pagamento previstas no novo plano de recuperação judicial e não, simplesmente, ser dragado para o "segundo" plano, a critério exclusivo da sociedade recuperanda.

Outra medida que poderia ser adotada para combater possíveis injustiças aos credores detentores de créditos pós-recuperação judicial seria a possibilidade de a sociedade recuperanda apresentar um plano de recuperação extrajudicial específico para pagamento destes credores, o que não violaria o princípio da pars conditito creditorum. Assim, tratar-se-iam os desiguais conforme suas desigualdades.

Evidentemente, seria necessário incluir no capítulo II do PL transitório a modificação de parte do §3º do artigo 161 da LRF para permitir ao devedor apresentar um plano de recuperação extrajudicial para os credores pós recuperação, mesmo com a sua recuperação judicial em andamento. Ressalta-se que, com a medida sugerida, esse credor detentor de crédito pós recuperação judicial correria menos risco de se submeter a vontade da maioria e possuiria mais poder para barganhar melhores condições de pagamento do seu crédito.

O PL transitório não poderia ser mais oportuno. Introduz alguns valiosos mecanismos voltados para viabilizar o reerguimento das empresas em recuperação judicial, neste momento de crise econômica sem precedentes na história brasileira. Alguns ajustes se fazem necessários, contudo. Dentre eles é essencial que se considere a situação dos credores que, de boa-fé, creditaram na empresa em dificuldade, após a deflagração do processo de recuperação judicial.

 


[1] Trata-se de texto normativo com inúmeras recomendações positivas aos magistrados com competência para o julgamento de ações de recuperação judicial e falência nestes tempos de pandemia ocasionada pela Covid-19.

[2] Artigo 12 — Fica autorizada a apresentação de novo plano por aquele devedor que já estiver com plano de recuperação judicial ou extrajudicial homologado em juízo, podendo sujeitar créditos posteriores ao anterior pedido de recuperação judicial ou extrajudicial já homologado, com direito a novo período de suspensão previsto no artigo 6º da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, sujeitando-se o plano aditado à nova aprovação pelos credores nos termos do procedimento específico.

[3] DIAS., Leonardo Adriano Ribeiro. Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência. São Paulo, Quartier Latin, 2014. P. 280.

[4] Risco legal consiste no risco de desvalorização de ativos ou de valorização de passivos em intensidade inesperada, perante mudanças na legislação ou regulação, rumos de uma demanda judicial, parecer ou orientação de cunho legal. (SADDI, Jairo. Investimentos em empresas em recuperação: o olhar do investidor e a experiência da nova lei de Falências. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXIX, n.º 105. Set de 2009. P. 78.)

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