Opinião

Project finance e a infraestrutura no contexto da Covid-19

Autores

  • Marcos Roberto de Moraes Manoel

    é advogado em São Paulo mestrando em Direito dos Negócios pela FGV-SP LLM em Direito Societário pelo Insper e pós-graduado em Finanças Corporativas e Direito do Mercado de Capitais pela FGV-SP com extensão em Direito dos Contratos pela Harvard Law School em Recuperação de Empresas e Falências pela PUC-SP e em Filosofia Moral e Política pela Harvard University.

  • Marcus Vinicius Macedo Pessanha

    é advogado do Nelson Wilians Advogados e especialista em Direito Público Administrativo e Regulatório.

3 de maio de 2020, 16h13

As medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias para a contenção do novo coronavírus, vetor da Covid-19, tais como o isolamento social, trouxeram consigo um cenário de incertezas para os investidores nacionais e estrangeiros. No horizonte do mercado, um possível quadro de recessão econômica mostra que boa parte das expectativas para o ano de 2020 não serão cumpridas, o que faz com que soluções criativas e possíveis sejam buscadas pelos operadores do direito e especialistas em finanças para atravessar esse momento de turbulências.

O crescimento de uma economia demanda iniciativas do Poder Público e da iniciativa privada, não podendo prescindir de mecanismos jurídico-financeiros de grande complexidade técnica, os quais demandam a atuação multidisciplinar de profissionais das mais diversas áreas. Assim, levando-se em conta a necessidade de vultuosos investimentos em projetos não só de implantação, como também de recuperação e ampliação de obras de interesse público, cresce em importância a utilização de instrumentos financeiros como o project finance no segmento da infraestrutura.

Em especial para projetos de alta complexidade, caracterizados por grandes investimentos, dilatados prazos de execução e retorno gradual dos recursos envolvidos, a opção por operações coligadas e estruturadas se mostra como uma opção a ser considerada, no contexto da Covid-19.  

Inicialmente temos que os investimentos realizados em infraestrutura são essenciais para o exercício da atividade produtiva fundamental de uma sociedade, sem a qual o desenvolvimento econômico se mostra inviável. Portanto, quaisquer ações nos diversos segmentos que são naturalmente aceitos como integrantes de um conjunto de infraestruturas, sejam estas efetuadas de forma direta pelo Poder Público, ou incentivado e autorizado por este, devem ser encaradas como determinantes para a concretização de políticas públicas importantes para a sociedade.

Assim, como característica inata da infraestrutura na concretização de interesses econômicos de amplo espectro, tais realizações possuem elevada complexidade em seus projetos, implantação e execução, a demandar grandes somas de dinheiro. Os especialistas em finanças, desta forma, ao buscarem avaliar as mais adequadas maneiras de encarar a avaliação dos riscos envolvidos, as estimativas de custos, e as formas de financiamento logo perceberam a insuficiência do tradicional corporate finance, ou seja, alocação de recursos por meio de aportes de capital diretos, mediante subscrição e integralização de participações, e/ou de dívida, mediante empréstimo, tendo como base o patrimônio dos sócios para estes fins. Um novo e mais eficaz método se fazia necessário.

Temos, então, na década de 1960 o início da disseminação do project finance para o financiamento de grandes obras de infraestrutura. O caso clássico na literatura estrangeira é  a construção da Trans Alaska Pipeline, oleoduto de 1300 Km de extensão realizado por uma joint venture de 8 empresas petrolíferas para viabilizar o transporte de petróleo entre o norte do Alaska e o porto de Valdez, a um custo de US$ 8 bilhões à época, e o envolvimento de 28.000 técnicos.   

Temos no Brasil, também, casos emblemáticos de utilização do project finance para a realização de relevantes obras a partir da década de 1990, como por exemplo, o aumento da capacidade de geração de energia de Serra da Mesa Energia em 1993, com investimentos da ordem de US$ 800 milhões, a construção da Rodovia Via Lagos no Estado do Rio de Janeiro em 1997, e as melhorias da Ponte Rio-Niterói, com um financiamento de R$ 36 milhões pelo BNDES pelo prazo de 10 anos, com garantia sobre os  créditos decorrentes da cobrança do pedágio.  

Ora, o project finance, como técnica financeira por meio da qual a satisfação dos créditos dos credores não depende dos ativos dos sócios, ou dos devedores, mas sim do  fluxo de caixa do próprio projeto, o qual fica comprometido com o pagamento das dívidas e com o retorno do pagamento dos sponsors, mostra-se como a solução adequada para os complexos projetos de  infraestrutura. Neste sentido, o diferencial do project finance se encontra no valor econômico-financeiro do projeto financiado, que não se consubstancia nos ativos dos devedores, mas sim no fluxo de caixa do próprio empreendimento.    

O cenário econômico brasileiro atual é composto de diversos fatores inibidores de investimentos, tais como a baixa disponibilidade de recursos orçamentários públicos, e a crise financeira, política e institucional que vem assolando o país há alguns anos. Estes elementos vêm afastando a alocação de recursos nas grandes obras necessárias a retomada do desenvolvimento econômico, trazendo consigo a reboque a estagnação do setor produtivo, a queda na arrecadação bem como a redução drásticas dos indicadores de bem estar na população. 

Considerando esse tenebroso quadro de pandemia global, o project finance — ou financiamento de projetos, estrutura econômica e financeira que não se confunde com operações ordinárias de financiamento, apresenta-se como uma alternativa viável e eficiente, a fim de se executar projetos de grande cabedal e que possam gerar bons retornos, minimizando-se os fatores inibidores ao investimento mencionados.

O project finance em apertada síntese, consiste em um instrumento de cunho financeiro e jurídico de características singulares.

Sob a ótica econômica, caracteriza-se por ser um projeto de provisão de fundos a obras de infraestrutura, industriais e de prestação de serviços públicos de vulto de longo prazo, mediante investimento pelos sócios do empreendimento, por meio de aporte de capital em contrapartida a uma participação societária, o que usualmente representa uma pequena parte da inversão, e empréstimo realizado em favor de uma empresa que, na relação jurídica e negocial emanada da coligação contratual, caracterizará uma unidade econômica individualizada. A capacidade de geração de caixa, bem assim os lucros auferidos pela empresa investida e tomadora do empréstimo, constituirão a principal fonte de pagamento do mútuo, ao passo que os ativos e direitos pertencentes à empresa constituirão garantia exclusiva (ou colateral) da operação. É um modelo atrativo à iniciativa privada, pois permite que ela tome parte em grandes projetos sem comprometer as suas métricas econômicas e o seu balanço patrimonial, na medida em que ocorre a afetação econômica e jurídica de um patrimônio ao empreendimento.       

Por seu turno, sob o prisma jurídico, consiste em uma relação societária e contratual estruturada para uma finalidade específica, razão pela qual constitui-se uma sociedade de propósito específico, veículo através do qual o projeto será executado e a partir do qual forma-se a coligação contratual entre sponsors (financiadores), empreendedores, fornecedores, prestadores de serviços, colaboradores, por vezes o Estado e, ao final, os usuários e consumidores do benefício oriundo da obra ou dos serviços públicos. No que tange às garantias, via de regra elas são concedidas como non-recourse collateral, isto é, elas limitar-se-ão aos recebíveis, aos ativos e direitos diretamente relacionados ao empreendimento, não sendo possível o alcance do patrimônio dos sócios para além do montante integralizado na sociedade de propósito específico, elementos que constituem a afetação jurídica do patrimônio do veículo do empreendimento. Finalmente, ainda na seara jurídica, a coligação contratual formada entre os diversos stakeholders tem o propósito de segregar riscos e, portanto, diminuí-los aos envolvidos.

Uma operação de project finance objetiva limitar a responsabilidade dos acionistas e empreendedores, tecnicamente denominados patrocinadores, bem como maximizar o seu eventual retorno, segregar o risco da empreitada entre os acionistas patrocinadores, os financiadores externos, eventuais provedores de serviços terceirizados e fornecedores e, eventualmente, o Estado.

Afim de atingir tais objetivos, o project finance tem como uma de suas características básicas a segregação do empreendimento, ou seja, patrimônio (ativo, passivo e patrimônio líquido) especificamente destinado ao projeto, o qual não será imiscuído ao  das empresas acionistas patrocinadoras, o que é normalmente realizado por meio da constituição de uma sociedade de propósito específico — seja uma sociedade limitada ou por ações — de forma a limitar a responsabilidade dos patrocinadores. Geralmente, os patrocinadores integralizam capital correspondente a 20 e 30% do montante do investimento necessário à execução do empreendimento. Podemos citar ainda a alavancagem financeira, ou seja, contração de dívida por meio de mútuos ou outros instrumentos afins, provido por financiadores externos, o financiamento garantido pelo empreendimento, ou seja, as receitas, lucros e ativos do empreendimento e, eventualmente, outros instrumentos de garantia ou mesmo alguma garantia prestada pelos patrocinadores – esta última não permitirá que se satisfaça débitos ilimitadamente no patrimônio do patrocinador, e finalmente, uma rede de contratos coligados, os quais objetivam a alocação de riscos de uma forma muito precisa e definida.

Justamente por ser dotado destas características, o project finance tem relacionamento estreito com as Concessões de Parcerias Público-Privadas, as quais foram introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei n. 11.079/2004 como uma reação ao esgotamento dos modelos tradicionais de delegação das atividades do Estado para o setor privado em seus modelos clássicos no regime de concessões, permissões e autorizações.  Em conjunto, são poderosos instrumentos viabilizadores de políticas públicas aptos a angariar os volumosos recursos necessários ao aprimoramento e desenvolvimento da infraestrutura no Brasil.

Assim, a PPP constitui uma forma viável de cooperação entre o Estado e a iniciativa privada quando embasada em uma sólida estrutura de financiamento alavancada em project finance, se prestando a captar recursos econômicos de forma eficiente. Sua composição, com limitação de responsabilidade dos investidores e alocação adequada de riscos entre os envolvidos na relação negocial, é um grande incentivo a participação dos investidores nestes empreendimentos de forte interesse público.

Esta estratégia financeira, portanto, tem relação direta com a retomada do desenvolvimento econômico no país após a fase mais aguda da pandemia de Covid-19, pois, caso seja usada de maneira adequada para as contratações de grandes obras de infraestrutura, ela potencializará a entrada de capital no segmento, fomentando a concretização do interesse público.

Considerando, portanto, que o Brasil, em geral, carece de infraestrutura, tal como saneamento, rodovias, portos, aeroportos, energia, hospitais e meios de transporte, dentre outros, o project finance, juntamente com as Concessões de Parcerias Público-Privadas, cuida-se de um instrumento poderoso e eficiente à disposição do Estado e da iniciativa privada para tal fim, sendo imprescindível para o restabelecimento do curso do desenvolvimento e do crescimento econômico do país neste momento único e delicado de nossa história.

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