Embargos Culturais

Tecnologia e educação (jurídica) nos tempos de Covid-19

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

3 de maio de 2020, 8h41

Spacca

Dilemas e desafios do uso da tecnologia na educação (jurídica) são levados ao limite nos tempos atuais de Covid-19. A relação entre tecnologia e educação (jurídica) tornou um problema mais real o que, antes de março de 2020, era apenas índice para discussão de paradoxos e possibilidades. A dependência tecnológica deixou de ser dificuldade episódica e tornou-se um problema fundamental. O que era justificativa para o não cumprimento de metas e tarefas (o aprendente não apresentava trabalhos justificando-se com a dificuldade no acesso a rede mundial) tornou-se impossibilidade fática. Sem o “hardware” e sem conectividade não há meios e condições de realização de aulas remotas. A dependência é absoluta. Refiro-me, bem entendido, ao pequeno universo da educação jurídica, o que supõe uma classe média com acesso à tecnologia.

A premissa vale para professores e aprendentes, ou para instrutores e alunos, como preferem outros. O isolamento provoca (também) uma disputa pelo meio material: peleja-se em torno do uso do computador: agora sou eu!  É que, ao mesmo tempo, há tarefas e reuniões de trabalho remoto, aulas para crianças e adolescentes, a par da necessidade de cumprimento de horários mais rigorosos do que os habituais. No contexto da constatação econômica de que necessidades são infinitas e os bens finitos, computadores, redes de “wi-fi” e pacote de dados tornaram-se manifestações do divino.

Com a tecnologia é possível o controle sobre quem ensina, sobre o que é ensinado e a quem se ensina. Nunca se controlou tanto e, ao mesmo tempo, tão pouco. Uma contradição. Há um registro formal de acesso, por parte do aprendente, o que não significa, necessariamente, adesão, acompanhamento, aproveitamento. E como o tempo é de exceção, e não de regra, vale aquela primeira, o que justifica uma premissa em favor do aprendente. Mais do que nunca, do professor exige-se confiança no aluno. E do aluno, autodisciplina e confiança em seu poder de transformação da realidade. Há uma inversão da pedagogia tradicional, centrada na excelência e na onipotência de quem ensina. O foco agora é de fato muito mais centrado em quem se ensina, o que tumultua e confunde o professor convencional. Os tempos mudaram.

O professor enfrenta uma concorrência imediata que ronda a sala de aula virtual como uma assombração do conhecimento. “Youtubers”, “instagramers”, “podcasters”, administradores de grupos de “WhatsApp”, fabricadores compulsivos de “fake News”, blogueiros e palpiteiros de toda ordem estão em todos os espaços virtuais. A onisciência do “google “tornou-se a bibliografia fundamental: randômica, anárquica, multifacetada. O que fazer?

Umberto Eco, em “Apocalípticos e Integrados” colocou (na década de 80) essa questão, em termos inteligentes e propositivos. Apocalípticos veem o fim do mundo na expansão da cibernética: é o fim. Integrados vemos que há alternativas e que o momento é rico em oportunidades. Ao invés de consumir conteúdo de baixa qualidade, o professor deve produzir conteúdo próprio, bem como mediar e estimular o acesso e o consumo ao material de altíssima qualidade que há no espaço virtual. Vale uma mudança de perspectiva, no sentido de que a tecnologia deixe de ser um fator de substituição e passe a ser um indicativo de empoderamento. A tecnologia precisa ser dominada. Ela auxilia. Não pode ser um peso. O professor competente afasta-se do “download” macunaímico e preguiçoso. É agente do “upload” criativo e energizante.

Não podemos abandonar, no entanto, os valores humanistas da educação, centrados na ética e na construção de uma sociedade mais justa, bem como no respeito à condição do próximo. Há uma mente humana por trás de cada programa, aplicativo ou instrumento de facilitação. Ainda que professores tradicionais nos tornemos designers de aprendizagem, curadores de conteúdo ou mediadores de ciberinformações, ou qualquer outra invencionice que queiram nos impor, há um núcleo duro que a bizarrice desses nomes não desconstrói, e que consiste no fato de que conhecimento demanda tempo, atenção, dedicação. Não se aprende alemão dormindo ou direito penal no macete ou dosimetria da pena em aplicativos.

Combate-se o "youtuber” vazio e malicioso com a produção e postagem de vídeos sérios, provocantes e estimuladores. Combate-se o “instagramer” que não consegue postar mais do que imagens vazias, com a veiculação de conteúdo crítico e de provocação intelectual. O momento exige uma militância intelectual inquebrantável, como forma de combate ao obscurantismo, ao ataque às ciências e ao superficialismo tosco. Não adianta reclamar, como Jeremias, autor bíblico de um poema desesperado sobre a destruição de Jerusalém, cujas lágrimas obliteravam seus olhos. É preciso agir. A lógica do processo pedagógico “on line” é substancialmente distinta do processo pedagógico “off line” ou presencial, com o qual somos habituados.

O Padre Antonio Vieira argumentou (no Sermão da Sexagésima) que os pregadores fracassavam porque pregavam para os ouvidos, e não para os olhos. Se os ouvintes ouviam uma coisa e viam outra, como iriam se converter? Sugiro uma adaptação dessa indagação para os desafios educacionais presentes.  

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