Opinião

Dispensa de licitação e a "Lei do Coronavírus"

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2 de maio de 2020, 13h45

A imprevisível crise da pandemia do novo coronavírus gera fortes impactos sociais, econômicos e políticos. Por consequência, o regime de contratações públicas foi cabalmente afetado, em diversos âmbitos. Diante desse cenário, o poder público precisa adotar medidas urgentes para solução de problemas extraordinários de várias ordens. A urgência da situação clama pela flexibilização dos trâmites e exigências nos procedimentos administrativos.

Nesse contexto, foi publicada a Lei n.º 13.979/2020, popularmente conhecida como "Lei do Coronavírus", que prevê nova hipótese de dispensa de licitação:

"Artigo 4º — É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei".

O §1º do supracitado artigo 4º estabelece que essa hipótese de dispensa é temporária, aplicando-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública. Trata-se, portanto, de lei excepcional, conforme prevê a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Segundo os juristas Luciano Elias Reis Marcus e Vinícius Reis de Alcântara, tal prazo não poderá ser superior ao que for declarado pela OMS [1].

Cumpre ressaltar que a referida lei é uma norma geral de licitações e contratos públicos, nos termos do artigo 22, XXVII, da Constituição Federal. Aplica-se, portanto, a Administração Pública direta e indireta, além de abranger todos os entes federativos, que poderão regulamentá-la, considerando suas respectivas competências. Importante esclarecer que, embora as estatais sejam regidas atualmente pela Lei 13.303/2016, a hipótese de dispensa também se aplica a estas, pois o diploma abrange todo e qualquer contrato necessário ao enfrentamento da emergência de saúde pública [2].

Frisa-se que essas contratações de objetos relacionados à solução da crise de enfrentamento não dispensam a observância aos princípios regentes da Administração Pública. Nesse sentido, leciona o professor Marçal Justen Filho:

"A pandemia pode gerar situações de atendimento imediato, insuscetível de aguardar dias ou horas. Basta considerar hipóteses em que instalações ou serviços de terceiros sejam indispensáveis para tentar evitar o óbito de um sujeito ou para impedir a disseminação do vírus. É evidente que as regras constitucionais, que privilegiam o atendimento às necessidades coletivas e a realização do interesse público, impõem a adoção de medidas práticas e efetivas por parte da Administração Pública, independentemente, de formalização num procedimento administrativo burocrático" (JUSTEN FILHO, 2020, pg. 2) [3].

O princípio da publicidade deve ser cabalmente observado, conforme dispõe o artigo 4º §2º, devendo o procedimento ser publicado em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet). Os professores Luciano Elias Reis e Marcus Vinícius Reis de Alcântara entendem que não é necessária a publicação em imprensa oficial, por não haver menção à utilização subsidiária da Lei nº 8.666/1993, além de considerarem a publicidade na internet mais eficaz e transparente do que a realizada no diário oficial [4].

Importante ressaltar que a lei não abre a possibilidade de dispensa de licitação para nenhuma outra necessidade pública senão às inerentes ao combate da  pandemia, no que se refere à "emergência de saúde pública". Desse modo, é necessário avaliar se a hipótese de contratação realmente tem como causa à situação de calamidade, sob pena de burlar o dever constitucional de licitar.

As hipóteses de contratação direta no ordenamento jurídico brasileiro, em regra, são dispostas na Lei 8.666/93. A MP 926/2020, em seu artigo 4º-B, traz um elenco de situações com presunção absoluta de atendimento aos requisitos de contratação direta: a) ocorrência de situação de emergência; b) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;  c) existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares;  e d) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.      

Presume-se, portanto, preenchidas as circunstâncias autorizadoras de contratação direta, nas hipóteses listadas pelo supracitado dispositivo legal. O legislador teve a intenção de proteger o gestor público e o contratante de eventual responsabilização por eventual alegação de que a hipótese contratada não se trata de emergência ou calamidade pública.

A decisão se mostra necessária na medida em que a realização de um procedimento licitatório poderia inviabilizar o objeto do contrato, considerando a morosidade, seja na fase interna ou externa. Marçal Justen Filho leciona, contudo, que "alguma espécie de emergência deve existir para autorizar a dispensa de licitação". A hipótese de dispensa não abrange um procedimento de contratação em que o serviço ou produto não possam ser efetivado em um curto intervalo de tempo.

Não obstante, a contratação direta deve observar os  princípios e normas básicas que regem a Administração Pública, de modo a atender a contratação mais vantajosa, isonomia, transparência e publicidade. Desse modo, necessária a abertura de um procedimento administrativo, para análise de preços de obras e serviços, sempre atendendo ao princípio da motivação, justificando a escolha do objeto e preço contratado.

O artigo 8º do Decreto Federal nº 10.024/2019 prevê, entre outras exigências, a apresentação de estudos preliminares nos processos que envolvem o pregão eletrônico. O artigo 4º-C da MP 926/2020, por sua vez, dispensou a elaboração destes estudos preliminares, quando se tratar de "bens e serviços comuns". O conceito de bem ou serviço  comum é trazido pela Lei 10.520/2002, que define como "aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado".

O artigo 4º-E da "Lei do Coronavírus" estabelece um procedimento simplificado para contratações, admitindo a apresentação do "termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado". Exigem-se, no entanto, algumas condições para o termo como: a) declaração do objeto; b) fundamentação simplificada da contratação; c) descrição resumida da solução apresentada; d) requisitos da contratação; e) critérios de medição e pagamento; f) estimativas dos preços obtidos; e g) adequação orçamentária.

Em relação à estimativa de preços, a lei impõe o atendimento a, no mínimo, um dos parâmetros estabelecidos pelas alíneas do inciso VI, do §1º do artigo 4º-E, quais sejam: a) Portal de Compras do Governo Federal; b) pesquisa publicada em mídia especializada; c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; d) contratações similares de outros entes públicos; ou e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores.

Não obstante, o §2º do artigo 4º-E excepciona a exigência do atendimento a tais parâmetros: "Excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será dispensada a estimativa de preços de que trata o inciso VI do caput". Essa exceção se aplica apenas a situações excepcionalíssimas, que não permitem a pesquisa da estimativa quanto ao preço.

"Artigo 4º-E, § 3º — Os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do caput não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)

4º-F  Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do artigo 7º da Constituição".

Esse dispositivo é aplicável apenas quando não houver outro modo de atender a necessidade pública, senão contratando as empresas sem a regularidade fiscal ou trabalhista ou mais de um requisito para habilitação.

Marçal Justen Filho leciona: "Admite-se o afastamento de apenas alguns requisitos de habilitação ou da sua generalidade. Anote-se que a MP 926, ressalvou os requisitos de habilitação exigíveis em nível constitucional. Não se admite a contratação de sujeitos em débito com a seguridade social ou que infrinjam limites atinentes à utilização do trabalho de menores" [5].

Por fim, o artigo 4º-G da "Lei do Coronavírus" prevê disposições relativas à modalidade de licitação pregão:

"Artigo 4º-G  Nos casos de licitação na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, cujo objeto seja a aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata esta Lei, os prazos dos procedimentos licitatórios serão reduzidos pela metade. 

§ 1º  Quando o prazo original de que trata o caput for número ímpar, este será arredondado para o número inteiro antecedente.

§ — Os recursos dos procedimentos licitatórios somente terão efeito devolutivo".

Marçal aponta que essa previsão do artigo 4º-G denota que nem sempre será necessário ao Administrador Público adotar a dispensa de licitação. Desse modo, a administração pode se utilizar também do pregão simplificado. O administrativista aponta o problema hermenêutico gerado, na medida em que  a lei trouxe presunções absolutas da possibilidade de dispensa para situações emergência [6]. Para compatibilizar o possível problema gerado, entende-se que existe competência discricionária da Administração Pública, para escolher entre as duas alternativas, tendo em vista o caso concreto. Para casos mais urgentes, o poder público poderá se valer da contratação direta. Para casos menos urgentes, o poderá ser realizado o pregão, se não houver risco para o interesse público.

Se for realizado o pregão, este pode ser feito de modo simplificado, ou seja, adotando-se o termo de referência simplificado, trazido pela MP 926, além de prazos reduzidos pela metade e recursos apenas no efeito devolutivo. Assim, a lei do pregão, que prevê prazo mínimo de oito dias úteis entre a publicação do edital e o recebimento das propostas, será reduzido para quatro dias úteis.

O prazo de apresentação das razões recursais passará a ser de um dia  útil. O  prazo de até três dias úteis anteriores à data de abertura da sessão pública para impugnação do edital, previsto pelo Decreto 10.024, será reduzido para apenas um dia útil.

Por fim, cumpre ressaltar que a "Lei do Coronavírus" não afasta por completo o artigo 26 da Lei 8.666/93, que prevê formalidades a serem observadas na dispensa de licitação. Desse modo, a justificativa dos objetos contrato, sujeito e preço continua plenamente exigível, além da observância de todos os princípios regentes da Administração Pública. Por outro lado, os órgãos de controle deverão levar em consideração todos os obstáculos práticos enfrentados pela Administração, ao analisar as hipóteses de contratação direta, enquanto perdurar a crise do coronavírus.

Referências bibliográficas
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. 6. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

JUSTEN FILHO, Marçal. Efeitos Jurídicos da Crise sobre as Contratações Administrativas, 2020. Disponível em: < https://www.justen.com.br/pdfs/IE157/IE%20-%20MJF%20-%20200318-Crise.pdf >. Acesso em 21/4/2020.

JUSTEN FILHO, Marçal. Um Novo Modelo de Licitações e Contratações Administrativas?, 2020. Disponível em < https://www.justen.com.br/pdfs/IE157/IE%20-%20MJF%20-%20200323_MP926.pdf  > Acesso em 21/4/2020.

LIMA, Edcarlos Alves. Aquisição de bens e insumos e contratação de serviços para o enfrentamento da emergência gerada pela pandemia do novo coronavírus. Zênite Fácil, categoria Doutrina, 15 de abr. de 2020. Disponível em: < http://www.zenite.blog.br/aquisicao-de-bens-e-insumos-e-contratacao-de-servicos-para-o-enfrentamento-da-emergencia-gerada-pela-pandemia-do-novo-coronavirus > Acesso em 21/4/2020.

MENDES, Renato Geraldo. Zênite Fácil, Categoria Anotações, Lei nº 8.666/93, nota ao art. 24. Disponível em: < http://www.zenitefacil.com.br. > Acesso em 21/4/2020.

 


[2] Nesse sentido, Alexandre Di Pietra (2020): "A lei silenciou quanto à natureza da pessoa jurídica, se de direito público ou privado. Esse silêncio faz incluir as empresas estatais, porque ao definir a natureza do objeto da dispensa ou do excepcional procedimento de licitação o fez definindo o objetivo ou a finalidade que é a aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus". (Revista Eletrônica de Licitações e Contratos Administrativos, Edição de abril 2020 – nº 91 – ano IX, INAP).

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Efeitos Jurídicos da Crise sobre as Contratações Administrativas, 2020. Disponível em: < https://www.justen.com.br/pdfs/IE157/IE%20-%20MJF%20-%20200318-Crise.pdf >. Acesso em 21 abr. 2020.

[4] REIS ELIAS, Luciano; ALCÂNTRA, Marcus Vinícius Reis de. Contratação Pública Extraordinária no Período do Coronavírus, 2020,  pg. 9. Disponível em: < https://institutolicitar.com.br/wp-content/uploads/2020/03/CONTRATAC%CC%A7A%CC%83O-PU%CC%81BLICA EXTRAORDINA%CC%81RIA-NO-PERI%CC%81ODO.pdf > Acesso em 21 abr. 2020.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Um Novo Modelo de Licitações e Contratações Administrativas?, 2020, pg. 13. Disponível em < https://www.justen.com.br/pdfs/IE157/IE%20-%20MJF%20-%20200323_MP926.pdf  > Acesso em 21 abr. 2020.

[6] JUSTEN FILHO, Marçal. Um Novo Modelo de Licitações e Contratações Administrativas?, 2020, pg. 15. Disponível em < https://www.justen.com.br/pdfs/IE157/IE%20-%20MJF%20-%20200323_MP926.pdf > Acesso em 21 abr. 2020.

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