Opinião

Direito e cinema: três reflexões a partir do filme "Altos Negócios"

Autor

  • Paula Stemberg

    é mestra em Direito do Estado pela UFPR advogada professora universitária licenciada e conselheira na Junta de Recursos Administrativos-Tributários da Prefeitura Municipal de Curitiba (PR).

2 de maio de 2020, 11h48

O cinema, assim como todas as linguagens artísticas, é um instrumento de compreensão da realidade [1]. Embora os paralelos entre a ficção e a realidade sejam sempre possíveis, alguns filmes como "O Poço" ("El hoyo Galder Gaztelu-Urrutia", 2019), ou "Milagre na cela 7" ("7. Koğuştaki Mucize" Mehmet Ada Öztekin, 2019) trazem à tona uma série de temas e abordagens presentes nos debates jurídicos, como a desigualdade social e a distribuição de renda, ou a incoerente estrutura prisional e sancionatória no sistema jurídico. Outros, por sua vez, não trazem explicitamente temas jurídicos ao debate talvez como um reflexo da nossa "cegueira parcial" enquanto sociedade a condutas ou práticas estabelecidas em um determinado nicho, classe ou grupo social.

É a esse segundo "tipo" de filme, e justamente nos temas que menos lhe são explícitos, que dedico este artigo. O objetivo dos próximos parágrafos é indicar três pontos de análise possíveis a partir do filme "Altos negócios", de Cüneyt Kaya, estreado no Brasil no último dia 17 — um filme morno, que não inova na temática nem na forma de representação ou narrativa, mas que esbanja cenas de crítica social.

Fisco
"Precisamos de água para viver, não? Você a bebe, rega as plantas com ela. Ela faz batatas, cerejas e peras crescerem. E você sabe o que o Fisco faz"”

Aos 34 minutos do filme, deparamo-nos com a cena mais simples (sem efeitos especiais) e mais reveladora sobre a difícil relação Fisco-contribuintes.

Ao pegar uma jarra com água e despejá-la em um carpete, a personagem Viktor Stein (David Kross), protagonista deste longa-metragem do Netflix, já reconhecido como uma espécie de sátira [2] ao "Lobo de Wall Street" ("The Wolf of Wall Street" Martin Scorsese, 2013), sintetiza o sentimento dos contribuintes no que diz respeito ao dinheiro pago ao Fisco: desperdício!

O dinheiro que entregamos ao Estado para que ele cumpra seus fins, incluindo a sua própria manutenção, mas também um número razoável de políticas públicas destinadas à realização do bem comum, não é pouco na Alemanha, nem no Brasil. Se lá o percentual do PIB de arrecadação é cerca de 41,5% [3], aqui, em 2018, batemos o recorde de 35,07% [4].

Por isso o pagamento do tributo é sentido tão profundamente pelo contribuinte. Mas e o resultado desse pagamento? Quem é que os sente? Se em tempos normais é difícil responder, em tempos de pandemia, quando uma parcela da população não sai de casa senão em emergências ou buscar suprimentos e quando se tornam mais frequentes atitudes impensadas em algumas das esferas de governo, essa percepção pode ficar ainda pior!

Não se trata de uma ode à revolta fiscal culminando na quebra do princípio da solidariedade, ao estilo Victor Fouquet e Jean-Baptiste Noé [5], mas de uma provocação para que tomemos consciência do quanto o uso do dinheiro pelo Estado nos diz respeito, e o quanto devemos exigir de nossos representantes democraticamente eleitos o mais eficiente uso deste caro e escasso recurso!

Infelizmente a relação problemática com o Fisco não é a única tônica de realidade no filme.

Moradia e propriedade
Viktor Stein sai de casa para 'tentar a vida". Chegando a Berlin escolhe um apartamento para morar ao módico preço de 1,2 mil euros mensais. O problema é que ele não tem um contrato de trabalho que sirva, naquele contexto alemão, como comprovação de que terá renda suficiente ao pagamento do aluguel da moradia.

Ele até tenta conseguir uma moradia digna por 20 euros diários da forma correta, mas ser correto significa maior sacrifício e maior emprego de esforços. Qual é a solução? Pelo que o filme demonstra, começa por falsificação ideológica e termina em sonegação fiscal, passando por lavagem de dinheiro e fraude, pelo menos, em cada ciclo de criminalidade.

Quando Viktor decide falsificar seu nome e seu contrato de trabalho, consegue locar uma cobertura e a aluga para trabalhadores da construção imobiliária por 15 euros diários, e logo percebe a essencialidade da habitação e a facilidade de que ela seja o vetor de seu "enriquecimento ilícito".

Falar em essencialidade da habitação me remete, no contexto Brasil, a diversas coisas. A primeira delas é que aqui no metro quadrado mais caro da América Latina, no ano de 2018 mais de 6,35 milhões de famílias não tinham uma casa para morar, sendo que o número de imóveis vagos e com condições de ocupação era de 6,89 milhões [6]. Aquela frase que não cansamos de ouvir permanece verdadeira: há mais (possíveis) moradias do que pessoas precisando de uma!

A segunda, e pararei por aqui, é que no mais extenso território latino-americano, desde a redemocratização do país, foram 13 anos de tramitação da lei que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, a Lei nº 11.124/2005, a partir da qual pode se estabelecer o Plano Nacional de Habitação. Mas ainda não foi devidamente implantado.

Em seu lugar, o Programa Minha Casa, Minha Vida, que sem dúvida alguma beneficia inúmeras famílias de baixa renda, reduzindo o déficit habitacional e contribuindo para a geração de empregos pelo gatilho que o crédito pode dar ao setor imobiliário e de construção civil, e está para ser substituído por um novo programa que no ano de 2019 foi inúmeras vezes mencionado pelo Governo Federal, mas que ainda não foi devidamente formalizado, e que algumas vezes foi referido, por representantes do próprio governo, pelo nome Projeto Casa Brasil.

Embora ainda não tenhamos elementos suficientes para analisar o novo programa, vale a pena lembrarmos que os anos de vigência do Minha Casa, Minha Vida não foram suficientes para solucionar o déficit habitacional, porque não é apenas o crédito que resolve esse problema. É preciso uma força coordenada entre os entes da federação e entre as diversas pastas do governo para elaboração e implementação de políticas públicas que tratem a propriedade a partir de sua característica mais elementar na concepção do Estado de Direito (e para alguns [7] até mesmo do estado liberal): a partir de sua função social. Será que este novo programa caminhará em direção à adequada compreensão desta característica da propriedade?

Mulher
Nicole Kleber, interpretada pela deslumbrante Janina Uhse, gerente do Berlin Global Credit Bank e que na trama se torna ex-esposa de Viktor Stein, é a típica mulher de sucesso: inteligente, persuasiva, perspicaz, intuitiva e muito segura. Na primeira hora do filme, "Frau Kleber" tem uma vida estável, é trabalhadora, com independência econômica e emocional.

Até que Viktor cruza o seu caminho como um presente grego de seu amigo de infância, Garry Falkland (Frederick Lau). A partir do momento que ele consegue clientes para seis milhões de "crédito pré-aprovado" do Berlin Global, ele conversa com o chefe de Nicole e pede que ela seja promovida e fique à sua disposição dia e noite.

Apesar de aparentar uma inocente paixão, neste momento a chave reflexiva do feminismo é acionada. O que se retrata no filme é que na estrutura patriarcal de nossa sociedade muitas mulheres, embora extremamente competentes, ficam subordinadas não apenas ao crivo masculino que aprove sua ascensão profissional, mas também ao apoio masculino que a promova.

Rompendo a fronteira entre a profissional e a pessoa em sua intimidade, o custo desta promoção, no caso do filme, não demonstra uma coação sexual como mais comumente a coação é realizada —, mas replica um padrão indesejado. Trata-se de uma espécie de compra que não foi pedida ou consentida por Nicole, mas que é a linguagem para fazer com que ela se relacione com Viktor.

Isso porque ele já estava interessado em se relacionar com ela quando exigiu de seu chefe que a deixasse como gerente exclusiva para sua empresa e a promovesse. Não sabendo do mesmo interesse por parte dela, esta é a arma para deixá-la sem saída: ela passou a dever atendê-lo diuturnamente.

Depois de ser comprada por Viktor, ela se transforma em sua Katja Falkland: a mulher que não trabalha e fica em casa para cuidar dos filhos, enquanto o homem providencia o sustento da família e diverte-se com bebidas, drogas e sexo.

Katja Falkland é a esposa de Gerry. Ela não sabe dos esquemas criminosos e do envolvimento com drogas e prostituição de seu marido, e para demonstrar seu afastamento do mundo no qual seu esposo vive, ela só aparece em uma cena do filme.

No Brasil, embora as mulheres sejam mais escolarizadas, com maior número de horas em formação, têm menores salários e ocupam menos cargos de gestão, inclusive no setor público. Embora os índices com relação à faixa etária sejam diferentes, a desigualdade de gênero não se rompeu com o tempo. Ela permanece [8].

Além da relação conflituosa com o Fisco, o problema de moradia e propriedade e o retrato do papel da mulher, há outros problemas sociais retratados no filme: o caminho cíclico da criminalidade; a alienação parental (que Viktor sofre como filho e depois como pai); e o papel dos países reconhecidos como "paraísos fiscais" na consecução dos crimes de colarinho branco, entre outros exemplos.

Por fim, a narrativa de Cüneyt Kaya mais uma vez coloca a Sétima Arte como uma forma lúdica de colocarmos um espelho em frente à nossa realidade social e de encararmos nossos inúmeros problemas: um prato cheio para os famintos por aprendizado, por discussões conscientes e por mudanças!

 


[1] Para quem ainda não está familiarizado com esta linguagem, recomendo o texto do Professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy de 12 de abril de 2020. (Direito e Cinema: modos de usar – parte I. Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-abr-12/embargos-culturais-direito-cinema-modos-usar-parte>. Acesso em 21 abr. 2020.)

[2] WILKELMAN, Natalia. ‘Rising High’ Review: From Rags to Riches, Without a Conscience. In: The New York Times. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/04/17/movies/rising-high-review.html>. Acesso em: 21 Abr. 2020.

[3] Referente ao ano de 2018, conforme relatório Eurostat. Disponível em: <https://ec.europa.eu/eurostat/documents/2995521/10190755/2-30102019-AP-EN.pdf/68739572-f06a-51e4-3a5b-86e660a23376>. Acesso em 21 abr.2020.

[4] Conforme estudo elaborado por José R. Afonso e Kleber Pacheco de Castro em julho de 2019. O estudo está disponível para download em: <https://www.joserobertoafonso.com.br/consolidacao-da-carga-tributaria-afonso-castro/>. Acesso em 21 abr. 2020.

[5] La revolte fiscale – L’impôt: histoire, théories et avatars. Calmann-Lévy : Paris, 2019.

[6] Este e outros dados podem ser conferidos em: <https://habitatbrasil.org.br/impacto/nossa-causa/>. Acesso em 21 abr. 2020.

[7] MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: Os impostos e a justiça. Martins Fontes: São Paulo, 2005.

[8] GANDRA, Alana. IBGE: mulheres ganham menos que homens mesmo sendo maioria com ensino superior. Agência Brasil. 07/03/2018. <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-03/ibge-mulheres-ganham-menos-que-homens-mesmo-sendo-maioria-com-ensino-superior>. Acesso em 21 abr. 2020.

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