Opinião

Da videoconferência à teleaudiência: tradição cede à inafastabilidade da jurisdição

Autores

  • Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave

    é doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Membro do IBDFAM.

  • Marco Bruno Miranda Clementino

    é juiz federal no Rio Grande do Norte professor da UFRN doutor em Direito com formação em Inovação e Liderança pela Harvard Kennedy School coordenador do Núcleo de Justiça 4.0 referente ao julgamento de ações de interesse das pessoas em situação de rua na Seção Judiciária do Rio Grande do Norte.

2 de maio de 2020, 17h24

Quando Mauro Cappelletti pensou nas três ondas renovatórias de acesso à justiça, certamente sabia que a coisa não pararia por ali. Porém, dificilmente imaginava, já naquela época, que a quarta onda caberia na palma da mão, com uma espécie de prestação jurisdicional exercida em nuvem, acessível por meio da utilização de dispositivos tecnológicos, a exemplo de um prático smartphone.

O tema não é propriamente uma novidade. O Poder Judiciário brasileiro iniciou seu processo de informatização há cerca de 30 anos e, ainda no início deste século, a Justiça Federal lançava os primeiros sistemas de processo judicial eletrônico, na época de uso restrito aos Juizados Especiais Federais. De lá para cá, a civilização do nosso tempo testemunhou uma acelerada evolução tecnológica, plenamente possível de ser aplicada à prestação jurisdicional.

Nos últimos três anos, os debates em torno da inovação jurídica ganharam ainda maior relevância no Brasil. O número de lawtechs disparou, os escritórios de advocacia passaram a exigir como nunca dos advogados habilidades envolvendo o emprego da tecnologia no direito e mesmo o tradicionalíssimo Poder Judiciário passou a instalar laboratórios de inovação com o objetivo de melhor enxergar seu próprio design organizacional. O fenômeno parecia vir acelerado, mas ainda esbarrava num traço muito significativo do ambiente jurídico: uma cultura organizacional densamente marcada pela tradição.

Aí veio uma pandemia…

Todos sabem o que veio depois, porque o depois é hoje e sabemos o que estamos vivenciando. O sistema jurídico brasileiro, mais do que a maioria dos seus congêneres estrangeiros, empresta acentuado prestígio ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Todavia, de um dia para o outro, juízes, promotores e advogados viram, assustados, o fechamento de fóruns, promotorias e escritórios de advocacia.

Fecharam os prédios, mas o sistema de justiça não parou.

Se, de um lado, percebemos que os avanços tecnológicos já nos ofereciam bem mais do que imaginávamos, o fato é que a tradição nos fazia resistir ao aproveitamento de todo esse potencial. Durante a pandemia, felizmente a tradição cedeu à inafastabilidade da jurisdição e fomos obrigados a inovar. Há mais de uma década empregávamos videoconferências nas audiências, mas estas eram irremediavelmente sediadas dos fóruns. Como a pandemia transformou nossas casas em fóruns e escritórios, o jeito foi criar novos modelos: as teleaudiências.

O principal traço distintivo entre as audiências tradicionais e as teleaudiências consiste na absoluta desterritorialização do ato. Não há dúvida de que o Código de Processo Civil prescreve um conjunto de regras permissivas da realização de atos processuais por meio eletrônico. Contudo, até dois meses atrás, estes eram invariavelmente estruturados a partir de um epicentro, que era o fórum, de modo que, ainda que praticados em meio eletrônico, o modelo era desenhado a partir do pressuposto de uma sede territorial. A teleaudiência, portanto, expressa simplesmente um novo modelo de trabalho, com regular suporte normativo na legislação em vigor.

Inovação é essencialmente um processo colaborativo em busca de uma transformação da realidade através de métodos de experimentação que lidam mais facilmente com o erro como referencial de aprendizado coletivo. Sob essa premissa, a 6ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, que tem como juiz titular um dos autores deste texto, decidiu realizar uma audiência-laboratório, objetivando construir um modelo de teleaudiência baseado na cooperação.

Foi então marcada a teleaudiência, com a finalidade de que, com a colaboração entre juiz, advogado e procurador, pudesse ser construído esse modelo, buscando resguardar garantias processuais, prerrogativas de todos os participantes e a privacidade das partes. Forte nesse espírito de cooperação, foi também convidada uma observadora externa para a teleaudiência, a professora Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, atualmente conselheira federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pelo Rio Grande do Norte e também autora deste texto. Na condição de representante da academia e da OAB, ela teve a missão de participar do momento de feedback após a realização do ato e de acompanhar toda a sua preparação.

O objetivo deste texto é apresentar um breve relato da experiência e suscitar algumas reflexões, as quais também servirão de subsídios para uma proposta de modelo nacional, tendo em vista que o Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal afetou esse tema para estudo e elaboração de nota técnica.

Como ponto de partida, o juízo abriu um quadro no aplicativo trello para desenhar um fluxo de trabalho inicial para o ato processual e estruturar um protocolo para a teleaudiência. Após o despacho de marcação desta, foi criado um grupo de whatsapp com a participação do juiz federal, servidores da vara, advogados, procuradores e mesmo da testemunha cujo depoimento seria colhido. A observadora também integrou esse grupo.

No momento da criação desse grupo virtual, foi enviada uma mensagem padronizada de boas-vindas, com a solicitação de indicação de provas que seriam produzidas, a fim de que o juízo pudesse viabilizar a devida estrutura, assim como com a informação de que seria utilizada a plataforma zoom. Mais adiante, foi postado no grupo de whatsapp um tutorial para uso desse aplicativo, com a informação de que seria realizada uma pré-audiência de teste, com a participação de todos, o que ocorreu dois dias antes da efetiva realização do ato processual.

Nessa pré-audiência de teste, todos receberam a recomendação de emprego do mesmo código de vestimenta de uma audiência tradicional, como sinal de respeito ao ato processual e aos demais participantes. Por óbvio, não foi imposto um código específico, até por falta de previsão legal, mas se ponderou que cooperação pressupõe também empatia, razão por que esse seria um gesto de deferência aos demais participantes.

Na data marcada, abriu-se a teleaudiência, com um preliminar protocolo de atuação em ambiente virtual. O juiz federal informou que faria o controle do áudio a fim de evitar microfonia e propôs uma recodificação da linguagem judicial a partir dos recursos do aplicativo. Assim, o tradicional “pela ordem” seria substituído pelo recurso “levantar a mão” e o uso dos emojis foi estimulado para busca de consenso. No feedback final, surgiu posteriormente a ideia de também fazer constar do protocolo o estímulo ao uso do chat, que pode substituir o tradicional requerimento para “consignar em ata”, concedendo maior autonomia a advogados e procuradores.

Porém, o juiz federal cometeu um erro! Ele era o anfitrião da reunião no aplicativo e esqueceu de acionar a gravação do vídeo. Por sorte, lembrou-se de fazê-lo durante a colheita do depoimento, tendo sido o equívoco recebido com bom humor pelos participantes, que de forma bastante cooperativa concordaram com uma repetição resumida. No feedback, ao final, chegou-se à conclusão de que o assistente de audiência teve ressignificado o seu papel e deve figurar como coanfitrião do juiz na condução da reunião no aplicativo, a fim de assegurar o cumprimento de um fluxo de registro eletrônico do ato processual, inclusive da qualidade de áudio e vídeo, além, por óbvio, da elaboração da ata, a qual, no caso específico, continha elementos de design, em sintonia com a linguagem atualmente empregada em âmbito virtual.

Houve um específico cuidado com a testemunha, a fim de resguardar sua incomunicabilidade. No início da audiência, ela foi informada de que ficaria na sala de espera do aplicativo até o momento em que seu depoimento seria colhido. Na mesma ocasião, o juiz federal solicitou que postasse no grupo de whatsapp o seu localizador, a fim de que as partes e advogados tivessem ciência de onde ela se encontrava. Não houve solicitação de que filmasse o ambiente de onde prestaria o depoimento, mas isso poderia ter sido feito.

Encerrada a audiência, deu-se um rico momento de feedback. Todos os participantes, salvo a testemunha, já então dispensada, puderam colaborar com a avaliação do ato. Advogado e procurador só enxergaram pontos positivos e atribuíram nota 10,0 ao ato processual, com o detalhe de que este participou de Recife, enquanto os demais se encontravam em Natal. O juiz federal deu nota 8,5 ao ato processual, furioso por conta do próprio erro de esquecer da gravação. O assistente de audiência foi mais generoso e concedeu nota 9,0. De certo modo, os dois últimos, que se prepararam bastante para o sucesso do ato, confessaram suas frustrações pelo erro cometido pelo juiz.

A observadora também atribuiu nota 10,0, salientando inúmeros pontos positivos, mas também suscitou alguns aspectos que merecem reflexão para definição de um protocolo para as teleaudiências.

O primeiro diz respeito à importância de controle do áudio, que pode comprometer o exercício da defesa. Daí a sugestão de que o assistente atue como coanfitrião da reunião no aplicativo. O juiz federal, por sua vez, afirmou ser relevante fazer constar no protocolo uma rotina de confirmação do áudio durante o ato, com auxílio dos emojis disponíveis no aplicativo. Também se concluiu que se deve recomendar, quando possível, o uso de microfones, que podem se tornar um novo artefato necessário do ambiente jurídico.

Um segundo ponto bastante relevante diz respeito à identificação da testemunha. De fato, o juízo não procedeu à identificação formal da testemunha e não houve impugnação, porque, de alguma forma, a teleaudiência parece criar um ambiente de confiança. Mas a advertência é bastante válida e o procurador sugeriu que isso fosse feito no futuro com a exigência de postagem, no grupo whatsapp, do documento de identificação e uma selfie da testemunha.

Outro ponto relevante é a preservação mínima da imagem e da privacidade no ato, evitando a sua espetacularização por eventual transmissão ao vivo, por exemplo. Como medida preventiva, chegou-se à conclusão de que deveria constar, no protocolo, o compromisso das partes e advogados de condicionar a realização de uma espécie de live-audiência à autorização judicial.

A maior preocupação da teleaudiência, sem dúvida, diz respeito à higidez da prova testemunhal. Ainda há espaço para se refinar o controle da identificação e da incomunicabilidade. No caso específico, como referido, o juízo usou como recursos a sala de espera do aplicativo e a determinação de postagem do localizador no grupo de whatsapp, mas outras medidas podem ser prestigiadas, como a exigência de uma luminosidade mínima no vídeo e a realização de uma espécie de google street view caseira no ambiente em que esteja a testemunha.

Outra preocupação relevante diz respeito ao ônus da estabilidade da transmissão, que parece ser do Poder Judiciário, já que cabe ao juiz a presidência do ato. Assim, a dificuldade de acesso ao link, por motivo técnico, não deve implicar prejuízo à parte, advogado ou procurador que não obtiver acesso. Ora, o link é o substituto da porta de entrada da sala de audiência tradicional. Se esta por algum motivo se fecha, não poderiam partes, advogados e procuradores ser prejudicados.

Por óbvio, esses efeitos podem também ser objeto de disposição em negócio jurídico processual celebrado pelas partes. Aliás, esses mecanismos podem estimular uma cultura de maior autonomia entre advogados quanto à produção da prova, como o uso negociado de escritórios de advocacia para a prática do ato, mesmo sem a presença do juiz, com o acerto quanto à respectiva validade.

A experiência comum a ser formada também passará a oferecer elementos para reflexão sobre padrões éticos de conduta em ambiente virtual, que serão amadurecidos com o tempo. Assim, no futuro, muito provavelmente teremos alguns critérios, inclusive técnicos, para definição de um possível conceito de deslealdade processual digital ou de má-fé processual digital. Todavia, por ora seria prematuro aplicar sanções processuais, reconhecer preclusões ou determinar conduções coercitivas de testemunhas pelo não acesso à teleaudiência.

A teleaudiência é apenas um átimo dessa onda de acesso à justiça na palma da mão. Na verdade, abre-se um riquíssimo campo teórico de ressignificação de pressupostos fundamentais de um processo judicial democrático. Ao se tratar de acesso à justiça digital, é preciso refletir sobre a correta escolha de um aplicativo ou mesmo sobre a concepção de uma plataforma oficial, porque estamos lidando com inovação jurídica num ambiente de exclusão digital, num país em que um magistrado paulista, conterrâneo da observadora da teleaudiência relatada neste texto, pode estar colhendo o depoimento de uma testemunha em Taipu, no Estado do Rio Grande do Norte, berço da família do juiz federal que a presidiu.

Com efeito, ao se preocupar com as repercussões jurídicas da qualidade de áudio e vídeo da audiência, estamos velando por uma espécie de ampla defesa digital. Outrossim, a reflexão sobre os efeitos processuais de determinados fatos ocorridos nesse ambiente virtual também revela o cuidado de se iniciar a construção de critérios para resguardo de um devido processo legal digital.

Um aspecto muito curioso diz respeito ao potencial de mudança na comunicação jurídica. Paradoxalmente, o emprego da tecnologia permite o estabelecimento de uma comunicação mais empática, por meio de novos signos linguísticos concebidos sob a ótica do design, como aconteceu na teleaudiência relatada, na qual o tradicional “pela ordem” foi representado por um emoji. Por incrível que pareça, isso permite a preservação da tradição jurídica, porque para os operadores do direito aquele pictograma continua expressando a mesma carga semântica no discurso jurídico, porém agora o “pela ordem” será mais facilmente compreendido pela população.

A propósito do campo linguístico, talvez a experiência mais impactante da teleaudiência relatada tenha ocorrido após sua realização, quando o juiz federal foi mostrar o termo de audiência à esposa, que exerce a função de promotora de justiça, e esta perguntou o que eram “aquelas figurinhas”, tendo a filha Bebel, de sete anos, que estava ao lado, respondido prontamente que eram pictogramas, matéria da aula de robótica! Em outras palavras, a criança compreendeu a linguagem do termo até mais facilmente do que a mãe, integrante do Ministério Público, mais habituada à linguagem jurídica tradicional.

Por fim, uma constatação final: a experiência mostrou como o ambiente virtual foi capaz de reforçar o dever de cooperação previsto no artigo 6º do Código de Processo Civil. Apresentado o protocolo da teleaudiência, seguindo-se a um breve treinamento sobre as funcionalidades do aplicativo, colheu-se a concordância das partes e a coisa fluiu com uma naturalidade impressionante. Não havia quem atropelasse a fala do outro e cada um agia com a devida autonomia, utilizando-se dos recursos disponíveis, a exemplo do chat.

É difícil prever o futuro, mas parece que essas novas experiências podem silenciosamente romper alguns paradigmas clássicos do pensamento jurídico. A autoridade parece estar sendo substituída pela liderança. O pensamento jurídico racional parece admitir uma conciliação com o experimental, reconhecendo maior valor científico aos referenciais de tentativa e erro, com maior prestígio ao método indutivo. Por fim, a melhor de todas: a litigiosidade pode finalmente ceder à cooperação.

É ver para crer…

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    é doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Membro do IBDFAM.

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    é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Doutor em Direito, com formação em inovação e liderança pela Harvard Kennedy School. Juiz Federal, é Membro do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e do Comitê Nacional da Conciliação do CNJ. É também formador da ENFAM e coordenador do IBET-Natal.

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