Diário de Classe

O presidencialismo de coalizão: um problema de Direito

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2 de maio de 2020, 8h50

Com o crescimento das cidades e do proletariado, finalmente a democracia brasileira passou na aurora da chamada Segunda República a integrar as massas ao processo político. Se em 1930 o eleitorado representava 7% da população, em 1945 já era 16%. Em 1950, alcançou 22%. Embora excluísse ainda muitos indivíduos que contribuíam significativamente para a construção da riqueza nacional, percentualmente o conjunto de eleitores aumentou, em duas décadas, mais de 300%: o poder já se horizontalizava nos partidos políticos, acenando significativamente à representatividade que caracteriza a democracia moderna. Basta ver que, nos primeiros anos desse período, também conhecido como República Populista, 31 partidos solicitaram o registro provisório, projetando plataformas bastante plurais, até mesmo antagônicas, como hoje também se verifica.

Enquanto a UDN, por exemplo, de viés liberal, era contra o intervencionismo do Estado, opunha-se ao varguismo e espelhava o interesse das classes médias urbanas, o PSD — outro exemplo era uma espécie de braço desse mesmo varguismo, ligando-se às bases do interior e às elites regionais. Esse era o seu público. Já o PTB outra importante sigla era reformista, reguladora, interventora, nacionalista e com bases no movimento sindical urbano. Era, portanto, o oposto da UDN, como também eram tanto o PC do B, na legalidade apenas entre 1945 e 1947, que contava com a simpatia de intelectuais e camponeses, quanto o PSB, com bases, sobretudo, nas universidades.

Nesse esboço, que serve para demonstrar, finalmente, a incorporação das massas ao processo político[1], com a formação de quadros por interesse e agendas representativas, claramente já não era mais possível acessar o poder desvinculando-se dos interesses populares. Bom e emblemático exemplo disso é a derrota de Eduardo Gomes para Eurico Dutra em 1945. Mesmo sem bases populares, ainda que com o apoio de Getúlio Vargas, Dutra venceu o pleito, com seu adversário político dizendo que não precisava do voto dos marmiteiros. Precisava. Com um país que transitava das velhas bases patriarcais do café para a indústria, Gomes não percebeu a ruptura que finalmente incluía o interesse dos representados. Talvez a derrota de Gomes e a ascensão de Dutra marquem a primeira eleição efetivamente democrática no país com um impressionante atraso: era a décima quarta eleição presidencial e a décima segunda direta. Pouco mais de meio século após o advento da República, finalmente o povo importava. Já era tempo. Nossas demandas populares, enfim, encontraram a democracia.

Reflexivamente, desse tardio encontro marcado, em um país com históricos gaps sociais e interesses tão plurais como o Brasil, o multipartidarismo foi uma óbvia consequência, assim como também foi (é, na verdade) o fato de que a sigla que elegesse o presidente precisaria costurar coalizões que permitissem a governabilidade. No imenso catálogo de interesses e desejos populares, afinal, dificilmente a eleição do presidente viria colada à eleição de uma base de governo pura. Isso, de fato, nunca ocorreu, e essa possibilidade sempre esteve presa a limites meramente teóricos, impondo uma série de acordos prévios, entre o Executivo (nacionalizado e reformista) e o Legislativo (paroquializado e conservador). Esse arranjo, em tese o retrato do passado e conhecido como presidencialismo de coalizão, é o mesmo que, entretanto, reorganizou o poder com a Constituição de 1988, diante da abertura democrática.

Grosso modo, embora concentrasse na sua versão 2.0 ainda mais poder no Executivo, com a prerrogativa de legislar por Medida Provisória, por exemplo, o sistema era o mesmo: a governabilidade era assentada em uma espécie de acordo político que, pauta a pauta, entrelaçava as agendas legislativa e executiva. A perversão dessa espécie de solução de compromisso moldada em uma República, paradoxalmente, com instituições pouco republicanas é o conhecido toma-lá-dá-cá. Nesse contexto, como o tempo tem mostrado, não há almoço grátis. Tudo tem um preço.

Entre outras razões, mas sobretudo pelo esboço até aqui apresentado, muito desse ambiente em que se negocia uma inapropriável agenda pública termina não no Congresso e, menos ainda, no Executivo, mas no Judiciário, encarregado da última palavra. Ou seja, talvez a contingencial judicialização da política[2] seja, também, uma espécie de extensão de nosso presidencialismo de coalizão, demarcado não apenas por um amplo catálogo multipartidário a "defender" (entre aspas mesmo) os mais variados interesses, mas, sobretudo, por uma inegável embora muito discutida tradição patrimonialista a nos empregar sentido.

Esse cenário, claro, acena a um pouco republicano espaço público, em que o conflito democrático é cristalinamente transformado em busca pela hegemonia de um pessoalizado interesse. A política não apenas permite essa nada generosa equivalência de forças, bem medida por coalizões, mas, ainda, legitima tudo isso. Por outro lado, é diante dessa paisagem que fica ainda mais latente a importância de se combater fazendo coro à vasta obra de Lenio Streck o ativismo e o realismo jurídicos (que, na verdade, não passam de formas distintas para fazer pender a disputa política para o lado escolhido). Flexibilizar a autonomia do Direito, aceitando decisionismos e egoístas subjetividades de toda sorte, só atrasa o passo de nosso contínuo processo de republicanização, bem demarcado por tão próprias características ao longo do tempo.

Esse é o ponto. O presidencialismo de coalizão é uma dessas peculiaridades que, se não merecem ser combatidas (a perversão não está na formação de coalizões, mas no que condiciona, muitas vezes, essas mesmas e tão íntimas coalizões), também não podem, a seu turno, dispor de um irrestrito catálogo de possibilidades, como se enredassem realidades distintas. A República não admite esse dualismo. Ao contrário, ao cobrar uma postura ortodoxa em relação à Constituição[3], impõe uma unidade que fixa limites jurídicos a fins políticos através do Direito que não apenas em harmônicas condições institucionais, mas, sobremodo, em tempos difíceis de polarização, como esses atuais deve ser sempre preservado. Fora dele, afinal, não há res publica.

 


[1] Sobre a inclusão popular no processo democrático-eleitoral, ver WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

[2] Sem perder de vista a providencial diferença entre ativismo e judicialização da política. Enquanto o primeiro reflete um ato de vontade, o segundo é contingencial, sobremodo, a países de modernidade tardia, caso do Brasil.

[3] No sentido forte da contundente defesa de Lenio Streck (Uma ode à jurisdição constitucional) no Caderno Estado da Arte, no jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de abril de 2020.

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