Ambiente Jurídico

Efeitos práticos da epidemia de Covid-19 na advocacia ambiental

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

2 de maio de 2020, 7h01

A Covid-19, pandemia originada na China que se alastrou rapidamente por todo o planeta, causando inúmeras mortes e estagnando a economia dos países, não poderia deixar de produzir efeitos na área do Direito Ambiental, em particular no que diz respeito à advocacia ambiental.

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É possível observar um efeito imediato sobre certas obrigações ambientais, dentre as quais aquelas assumidas pelo empreendedor no âmbito de processos administrativos ambientais ou de Termos de Ajustamento de Conduta – TACs celebrados junto ao Ministério Público ou à Defensoria Pública.

Esses processos administrativos ambientais podem se dar no âmbito do licenciamento ambiental, da solicitação de autorizações ambientais ou nas chamadas defesas ambientais, que são os processos que tramitam nos órgãos ambientais com a função de confirmar ou não a aplicação das sanções administrativas ambientais (suspensão, multa, embargo, demolição, advertência etc.).

Os efeitos da pandemia se deram de forma tão rápida e tão intensa, contados da primeira contaminação e morte na China ou no Brasil, gerando uma calamidade sanitária e econômica de proporções jamais ocorridas, que a comparação com as consequências das duas grandes guerras mundiais não é aleatória.

Em situações desse tipo não há como cumprir determinadas obrigações, devendo-se levar em conta a teoria da imprevisão, que era conhecida no direito romano como cláusula rebus sic stantibus e que diz respeito à possibilidade de alteração das obrigações jurídicas toda vez que a situação que deu causa a ela seja modificada de forma a tornar impossível ou extremamente difícil ou desproporcional o seu cumprimento.

É importante destacar que o próprio Código Civil brasileiro prevê em seu artigo 393 o caso fortuito ou de força maior como hipótese de não exigência do cumprimento de obrigações, embora circunstâncias desse tipo possam ser justificadas pelos próprios fatos ou pela lógica.

Por sua vez, os artigos 478, 479 e 480 do mesmo diploma legal já falam em resolução dos contratos por obrigação que se tornou excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, o que também guarda fundamento no artigo 421-A, incluído mais recentemente pela Lei Federal 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica).

No caso desta crise sanitária mundial, instalou-se uma situação de excepcionalidade e a força maior se fez evidente, tanto por parte da OMS Organização Mundial de Saúde , que declarou a emergência em saúde pública de importância internacional, quanto por parte da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, que decretaram estado de calamidade pública sendo óbvio que a oficialização da situação de pandemia já implica necessariamente no reconhecimento do grave risco à saúde da população.

No que diz respeito ao licenciamento ambiental, é sabido que as licenças ambientais possuem prazo de validade por tempo determinado, o que foi regulamentado pelo 18 da Resolução 237/97 do Conama: na Licença Prévia (LP), o prazo de validade deve ser no mínimo aquele estabelecido pelo cronograma de elaboração dos planos, programas e projetos relativos à atividade, não podendo ser superior a 5 anos; na Licença de Instalação (LI), o prazo de validade deve ser no mínimo aquele estabelecido pelo cronograma de instalação da atividade, não podendo ser superior a 6 anos; e na Licença de Operação (LO) o prazo de validade deve considerar os planos de controle ambiental e será de no mínimo quatro anos e no máximo dez anos.

Sabe-se que a existência de prazos de validade das licenças ambientais procura atender a dois ditames: o da efetiva proteção ao meio ambiente e o da segurança jurídica para empreender.

Se o sentido da concessão de licenças com prazos determinados é impedir a perenização de padrões ultrapassados tecnologicamente, o que certamente prejudicaria a qualidade ambiental, por outro lado isso garante estabilidade às atividades econômicas, pois o empreendedor enxerga nessa garantia a possibilidade de planejamento financeiro.

Com efeito, enquanto a licença estiver valendo a modificação de padrões ambientais não pode ser obrigatória para aquele que esteja regularmente licenciado segundo os padrões vigentes à época da concessão da licença, sendo esse o entendimento doutrinário majoritário, cabendo destacar Annelise Monteiro Steigleder, Antônio Inagê, Édis Milaré, Francisco Thomaz Van Acker, Luís Paulo Sirvinskas, Paulo Affonso Leme Machado, Paulo de Bessa Antunes e Vanêsca Buzelato Prestes[1].

A exceção é a superveniência de graves riscos ambientais e de saúde, situação prevista na Resolução ConamaA 237/97, quando uma questão de força maior poderia mudar o conteúdo das condicionantes da licença ambiental ou mesmo suspender os seus efeitos:

Art. 19 – O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer:

I – Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais.

II – Omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença.

III – superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.

Na situação do inciso III, a atividade já passa a causar graves riscos para o meio ambiente ou para a saúde pública e por isso pode e deve ter o seu funcionamento reanalisado é o caso da descoberta do potencial danoso de uma técnica ou substância utilizada no processo produtivo de determinada empresa, ou o de um desastre natural a exemplo de um desmoronamento ou de uma tempestade que comprometem o controle de segurança ambiental de determinada indústria.

Isso implica dizer que é perfeitamente possível restringir o funcionamento de uma atividade econômica que cumpriu todos os requisitos para obter e para continuar com a licença ambiental em razão de uma situação de calamidade pública ou em razão de um desastre biológico, para utilizar a natureza jurídica que Délton Winter de Carvalho[2] atribuiu à pandemia do novo coronavírus.


 

 

 

 

 

Impende dizer que a suspensão das atividades não se dá necessariamente em razão de um dano significativo, mas tão somente da possibilidade de acontecimento desse dano, pois o que se leva em consideração é a gravidade dos riscos, que no caso sob análise são riscos à saúde pública.

 

Foi o que aconteceu no país inteiro no caso da Covid-19 em razão de determinações do Poder Público para suspender todas as atividades ditas não essenciais.

A propósito, o Decreto Federal 10.282/2020, que regulamentou a Lei 13.979/2020, disciplinou a lista de serviços públicos e atividades essenciais que podem funcionar normalmente dentro desse período de suspensão das atividades, cabendo destacar aí as atividades de saúde, de segurança, de infraestrutura (fornecimento de água, alimentos, energia, gás natural, Internet, telefonia etc.).

Além da regulamentação geral, é importante dizer que há regulamentações específicas, como a do Decreto Federal 10.320/2020, que dispõe sobre os serviços públicos e atividades essenciais na área do Ministério de Minas e Energia (MME), e a  Portaria 116/2020 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que especifica produtos, serviços e atividades essenciais para garantir o pleno funcionamento das cadeias produtivas de alimentos, bebidas e insumos agropecuários.

A compreensão é que esse tipo de relação é taxativo, já que em matéria de saúde pública a interpretação deve ser restritiva, de maneira que as atividades não listadas ali só poderão funcionar se houver ordem judicial para tanto.

Tal contexto de excepcionalidade tem reflexo sobre as obrigações assumidas pelo empreendedor a título das condicionantes de licenças ambientais, uma vez que os compromissos assumidos perante o órgão ambiental podem se tornar de difícil ou mesmo de impossível cumprimento durante a pandemia.

Os direcionamentos apontados pelos órgãos ambientais como condição para a concessão da licença ambiental e como condição da validade da licença ou da autorização ambiental concedida podem ser de duas ordens: as medidas mitigadoras, que são direcionamentos com o objetivo de diminuir ou de evitar determinado impacto negativo ou de aumentar determinado impacto positivo, e as medidas compensatórias, que são aquelas exigidas em relação aos impactos ambientais impossíveis de serem evitados.

Apesar de os problemas relacionados à crise sanitária serem de conhecimento público e notório, faz-se mister que o empreendedor comunique formalmente ao órgão licenciador sobre a impossibilidade de cumprimento da obrigação ou das obrigações assumidas, não deixando de explicar as razões para tanto, pois isso servirá para a empresa se documentar e se prevenir diante de algum questionamento posterior por parte dos órgãos ambientais ou do próprio Ministério Público.

Se não for possível fazer isso via sistema eletrônico interno ou via e-mail, o empreendedor deverá providenciar o envio dessa comunicação via correios (com aviso de recebimento) ou então deverá fazer o protocolo na sede do próprio órgão ambiental.

Não se pode esquecer que pelo inciso XXVI do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020, a fiscalização ambiental é uma atividade essencial e não poderá sofrer restrições, fato que justifica a necessidade de comunicação imediata por parte do empreendedor, mormento no que diz respeito às atividades que continuarão operando, ainda que para fins de mera manutenção de estrutura.

O empreendedor deverá agir da mesma forma em relação às obrigações assumidas nos Termos de Compromissos (TCs) perante o órgão ambiental e nos Termos de Ajustamento de Condutas (TACs) perante o Ministério Público ou a Defensoria Pública, sendo ambos os instrumentos títulos executivos extrajudiciais que contêm pelo menos uma obrigação de fazer ou de não fazer e a correspondente cominação para o caso de seu descumprimento.

O TC, que é previsto no artigo 79-A da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes e das Infrações Administrativas Ambientais) e no artigo 26 do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), é o instrumento por meio do qual é celebrado um acordo entre os órgãos que fazem parte do Sisnama e o responsável pela atividade utilizadora de recursos ambientais ou capazes de causar impactos ao meio ambiente, tendo o intuito de evitar ou suspender as sanções administrativas.

Já o TAC, que é previsto no parágrafo 6º do artigo 5º da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública – LACP), é o acordo celebrado entre as partes interessadas com o objetivo de proteger direitos de caráter transindividual.

Por meio desses instrumentos, o Poder Público exige as adequações e correções necessárias no que diz respeito à legislação ambiental, comprometendo-se o empreendedor a efetuá-las dentro de um cronograma determinado, de maneira que a atividade possa voltar a funcionar sem nenhum impedimento.

No caso de descumprimento de suas cláusulas o termo de compromisso estará rescindido de pleno direito, de maneira que as multas e outras penalidades administrativas previstas poderão ser executadas imediatamente, somente se ressalvando o caso fortuito ou de força maior – o que é exatamente o caso da Covid-19, como já se verificou.

Pelas razões já expostas antes em relação às condicionantes do licenciamento ambiental, é imperioso que o empreendedor comunique ao órgão ambiental sobre a impossibilidade momentânea do cumprimento de cláusulas desses acordos extrajudiciais.

Já em relação aos acordos e decisões judiciais que contenham obrigações de cunho ambiental cujo cumprimento ficou difícil ou mesmo impossível de ser feito, seja em sede de ação civil pública, ação popular ou qualquer outra modalidade de instrumento processual, os prazos foram suspensos pelo Conselho Nacional de Justiça.

De toda forma, cabe ao advogado do empreendedor comunicar o Poder Judiciário acerca da dificuldade ou da impossibilidade do adimplemento de obrigações quando os prazos forem retomados, caso a dificuldade ainda persista, evidentemente.

Importante destacar que, no que pertine às condicionantes de licenças ambientais e cláusulas de TCs e de TACs, o período de excepcionalidade deverá ser descontado do prazo geral de cumprimento da obrigação, já que a parte interessada não é responsável pelo desperdício do tempo, cabendo, inclusive, ao órgão ambiental fazer isso de ofício.

É válido ao empreendedor tentar negociar com o Poder Público os detalhes da suspensão ou da modificação de suas obrigações ambientais, dada a excepcionalidade da situação, o que deve ser feito com base em critérios técnicos.

Cumpre observar que nem todos os órgãos ambientais suspenderam os prazos para a interposição de defesas e de recursos administrativos, a exemplo do que aconteceu com o Ibama, já que muitos deles passaram a facultar o protocolo de documentos via sistema eletrônico interno ou via e-mail.


 

 

 

 

 

Provavelmente, o grande legado da Covid-19 à Administração Pública Ambiental seja a intensificação e consolidação do fenômeno de informatização ou a virtualização dos processos administrativos ambientais, a exemplo do que ocorreu com o processo judicial no país, e isso exigirá uma maior organização do órgão ambiental, com a finalidade de garantir o acesso à informação ambiental e ainda para imprimir uma maior velocidade às suas ações.

 

O fato de os requerimentos e documentos serem protocolados online gerará mais comodidade para os empreendedores e os consultores ambientais e maior transparência para a sociedade civil e os órgãos de controle interno e externo, sendo inúmeras as vantagens: desnecessidade de deslocamento pessoal, dispensa do papel, maior rapidez na comunicação com a parte interessada, mais eficiência na interação com os órgãos intervenientes, melhor gerenciamento de arquivo, melhor utilização do espaço físico, possibilidade de protocolo a qualquer horário, redução do risco de perda de processos e documentos etc.

Cabe destacar a realização de reuniões do Copam/MG em tempo real pela Internet, o que está acontecendo em outros Estados e Municípios, bem como a regulamentação da audiência pública digital em processos de licenciamento ambiental pelo Estado do Rio de Janeiro por meio da Resolução Conema 89/2020, o que gera uma maior possibilidade de acompanhamento, de participação e de transparência das discussões, inclusive no que diz respeito às pessoas que se encontram fisicamente distantes daquele órgão ambiental.

* Este trabalho é dedicado a Leandro Eustáquio de Matos Monteiro e Pedro Campany


[1]   STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Aspectos controvertidos do licenciamento ambiental. Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.abrampa.org.br>. Acesso em: 14 mar. 2020; OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 308; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004., p. 486; VAN ACKER, Francisco Thomaz. Licenciamento ambiental. Disponível em: <http://www.ambiente.sp.gov.br/EA/adm/admarqs/Dr.VanAcker.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2020; SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 236; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 300; ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 102; PRESTES, Vanêsca Buzalato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria ambiental. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, p. 30 e; FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 185-187.

[2]   CARVALHO, Délton Winter de. A natureza jurídica da pandemia da Covid-19 como um desastre biológico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-21/direito-pos-graduacao-natureza-juridica-pandemia-covid-19-desastre-biologico. Acesso em: 26.04.2020.

A COVID-19, pandemia originada na China que se alastrou rapidamente por todo o planeta, causando inúmeras mortes e estagnando a economia dos países, não poderia deixar de produzir efeitos na área do Direito Ambiental, e em particular no que diz respeito à advocacia ambiental.

É possível observar um efeito imediato sobre certas obrigações ambientais, dentre as quais aquelas assumidas pelo empreendedor no âmbito de processos administrativos ambientais ou de Termos de Ajustamento de Conduta – TACs celebrados junto ao Ministério Público ou à Defensoria Pública.

Esses processos administrativos ambientais podem se dar no âmbito do licenciamento ambiental, da solicitação de autorizações ambientais ou nas chamadas defesas ambientais, que são os processos que tramitam nos órgãos ambientais com a função de confirmar ou não a aplicação das sanções administrativas ambientais (suspensão, multa, embargo, demolição, advertência etc).

Os efeitos da pandemia se deram de forma tão rápida e tão intensa, contado da primeira contaminação e morte na China ou no Brasil, gerando uma calamidade sanitária e econômica de proporções jamais ocorridas, que a comparação com as consequências das duas grandes guerras mundiais não é aleatória.

Em situações desse tipo não há como cumprir determinadas obrigações, devendo-se levar em conta a teoria da imprevisão, que era conhecida no direito romano como cláusula rebus sic stantibus e que diz respeito à possibilidade de alteração das obrigações jurídicas toda vez que a situação que deu causa a ela seja modificada de forma a tornar impossível ou extremamente difícil ou desproporcional o seu cumprimento.

É importante destacar que o próprio Código Civil brasileiro prevê em seu art. 393 o caso fortuito ou de força maior como hipótese de não exigência do cumprimento de obrigações, embora circunstâncias desse tipo possam ser justificadas pelos próprios fatos ou pela lógica.

Por sua vez, os arts. 478, 479 e 480 do mesmo diploma legal já falam em resolução dos contratos por obrigação que se tornou excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, o que também guarda fundamento no art. 421-A, incluído mais recentemente pela Lei Federal 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica).

No caso desta crise sanitária mundial, instalou-se uma situação de excepcionalidade e a força maior se fez evidente, tanto por parte da OMS – Organização Mundial de Saúde, que declarou a emergência em saúde pública de importância internacional, quanto por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que decretaram estado de calamidade pública – sendo óbvio que a oficialização da situação de pandemia já implica necessariamente no reconhecimento do grave risco à saúde da população.

No que diz respeito ao licenciamento ambiental, é sabido que as licenças ambientais possuem prazo de validade por tempo determinado, o que foi regulamentado pelo art. 18 da Resolução 237/97 do CONAMA: na Licença Prévia – LP o prazo de validade deve ser no mínimo aquele estabelecido pelo cronograma de elaboração dos planos, programas e projetos relativos à atividade, não podendo ser superior a 5 anos; na Licença de Instalação – LI o prazo de validade deve ser no mínimo aquele estabelecido pelo cronograma de instalação da atividade, não podendo ser superior a 6 anos; e na Licença de Operação – LO o prazo de validade deve considerar os planos de controle ambiental e será de no mínimo 4 anos e no máximo 10 anos.



 

Sabe-se que a existência de prazos de validade das licenças ambientais procura atender a dois ditames: o da efetiva proteção ao meio ambiente e o da segurança jurídica para empreender (sobre o assunto: https://www.conjur.com.br/2020-abr-25/ambiente-juridico-consideracoes-respeito-prazo-validade-licencas-ambientais).

Se o sentido da concessão de licenças com prazos determinados é impedir a perenização de padrões ultrapassados tecnologicamente, o que certamente prejudicaria a qualidade ambiental, por outro lado isso garante estabilidade às atividades econômicas, pois o empreendedor enxerga nessa garantia a possibilidade de planejamento financeiro.

Com efeito, enquanto a licença estiver valendo a modificação de padrões ambientais não pode ser obrigatória para aquele que esteja regularmente licenciado segundo os padrões vigentes à época da concessão da licença, sendo esse o entendimento doutrinário majoritário, cabendo destacar Annelise Monteiro Steigleder, Antônio Inagê, Édis Milaré, Francisco Thomaz Van Acker, Luís Paulo Sirvinskas, Paulo Affonso Leme Machado, Paulo de Bessa Antunes e Vanêsca Buzelato Prestes[1].

A exceção é a superveniência de graves riscos ambientais e de saúde, situação prevista na Resolução CONAMA 237/97, quando uma questão de força maior poderia mudar o conteúdo das condicionantes da licença ambiental (sobre o tema: https://www.conjur.com.br/2019-set-28/ambiente-juridico-condicionantes-concessao-licenciamento-ambiental) ou mesmo suspender os seus efeitos:

 

Art. 19 – O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer:

I – Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais.

II – Omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença.

III – superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.

 

Na situação do inciso III, a atividade já passa a causar graves riscos para o meio ambiente ou para a saúde pública e por isso pode e deve ter o seu funcionamento reanalisado – é o caso da descoberta do potencial danoso de uma técnica ou substância utilizada no processo produtivo de determinada empresa, ou o de um desastre natural a exemplo de um desmoronamento ou de uma tempestade que comprometem o controle de segurança ambiental de determinada indústria.

Isso implica dizer que é perfeitamente possível restringir o funcionamento de uma atividade econômica que cumpriu todos os requisitos para obter e para continuar com a licença ambiental em razão de uma situação de calamidade pública ou em razão de um desastre biológico, para utilizar a natureza jurídica que Délton Winter de Carvalho[2] atribuiu à pandemia do novo coronavírus.

Impende dizer que a suspensão das atividades não se dá necessariamente em razão de um dano significativo, mas tão somente da possibilidade de acontecimento desse dano, pois o que se leva em consideração é a gravidade dos riscos, que no caso sob análise são riscos à saúde pública.

Foi o que aconteceu no país inteiro no caso da COVID-19 em razão de determinações do Poder Público para suspender todas as atividades ditas não essenciais.

A propósito, o Decreto Federal 10.282/2020, que regulamentou a Lei 13.979/2020, disciplinou a lista de serviços públicos e atividades essenciais que podem funcionar normalmente dentro desse período de suspensão das atividades, cabendo destacar aí as atividades de saúde, de segurança, de infraestrutura (fornecimento de água, alimentos, energia, gás natural, Internet, telefonia etc).

Além da regulamentação geral, é importante dizer que há regulamentações específicas, como a do Decreto Federal 10.320/2020, que dispõe sobre os serviços públicos e atividades essenciais na área do Ministério de Minas e Energia (MME), e a  Portaria 116/2020 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que especifica produtos, serviços e atividades essenciais para garantir o pleno funcionamento das cadeias produtivas de alimentos, bebidas e insumos agropecuários.

A compreensão é que esse tipo de relação é taxativo, já que em matéria de saúde pública a interpretação deve ser restritiva, de maneira que as atividades não listadas ali só poderão funcionar se houver ordem judicial para tanto (nesse sentido: https://www.conjur.com.br/2020-abr-27/locacao-veiculos-atividade-essencial-juiz-belo-horizonte).

Tal contexto de excepcionalidade tem reflexo sobre as obrigações assumidas pelo empreendedor a título das condicionantes de licenças ambientais, uma vez que os compromissos assumidos perante o órgão ambiental podem se tornar de difícil ou mesmo de impossível cumprimento durante a pandemia.

Os direcionamentos apontados pelos órgãos ambientais como condição para a concessão da licença ambiental e como condição da validade da licença ou da autorização ambiental concedida podem ser de duas ordens: as medidas mitigadoras, que são direcionamentos com o objetivo de diminuir ou de evitar determinado impacto negativo ou de aumentar determinado impacto positivo, e as medidas compensatórias, que são aquelas exigidas em relação aos impactos ambientais impossíveis de serem evitados.

Apesar de os problemas relacionados à crise sanitária serem de conhecimento público e notório, faz-se mister que o empreendedor comunique formalmente ao órgão licenciador sobre a impossibilidade de cumprimento da obrigação ou das obrigações assumidas, não deixando de explicar as razões para tanto, pois isso servirá para a empresa se documentar e se prevenir diante de algum questionamento posterior por parte dos órgãos ambientais ou do próprio Ministério Público.

Se não for possível fazer isso via sistema eletrônico interno ou via e-mail, o empreendedor deverá providenciar o envio dessa comunicação via correios (com aviso de recebimento) ou então deverá fazer o protocolo na sede do próprio órgão ambiental.

Não se pode esquecer que pelo inciso XXVI do art. 3o do Decreto Federal 10.282/2020, a fiscalização ambiental é uma atividade essencial e não poderá sofrer restrições, fato que justifica a necessidade de comunicação imediata por parte do empreendedor, mormento no que diz respeito às atividades que continuarão operando, ainda que para fins de mera manutenção de estrutura.



 

O empreendedor deverá agir da mesma forma em relação às obrigações assumidas nos Termos de Compromissos – Tcs perante o órgão ambiental e nos Termos de Ajustamento de Condutas – TACs perante o Ministério Público ou a Defensoria Pública, sendo ambos os instrumentos títulos executivos extrajudiciais que contêm pelo menos uma obrigação de fazer ou de não fazer e a correspondente cominação para o caso de seu descumprimento.

O TC, que é previsto no art. 79-A da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes e das Infrações Administrativas Ambientais) e no art. 26 do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), é o instrumento por meio do qual é celebrado um acordo entre os órgãos que fazem parte do SISNAMA e o responsável pela atividade utilizadora de recursos ambientais ou capazes de causar impactos ao meio ambiente, tendo o intuito de evitar ou suspender as sanções administrativas.

Já o TAC, que é previsto no § 6º ao art. 5º da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública – LACP), é o acordo celebrado entre as partes interessadas com o objetivo de proteger direitos de caráter transindividual.

Por meio desses instrumentos, o Poder Público exige as adequações e correções necessárias no que diz respeito à legislação ambiental, comprometendo-se o empreendedor a efetuá-las dentro de um cronograma determinado, de maneira que a atividade possa voltar a funcionar sem nenhum impedimento.

No caso de descumprimento de suas cláusulas o termo de compromisso estará rescindido de pleno direito, de maneira que as multas e outras penalidades administrativas previstas poderão ser executadas imediatamente, somente se ressalvando o caso fortuito ou de força maior – o que é exatamente o caso da COVID-19, como já se verificou.

Pelas razões já expostas antes em relação às condicionantes do licenciamento ambiental, é imperioso que o empreendedor comunique ao órgão ambiental sobre a impossibilidade momentânea do cumprimento de cláusulas desses acordos extrajudiciais.

Já em relação aos acordos e decisões judiciais que contenham obrigações de cunho ambiental cujo cumprimento ficou difícil ou mesmo impossível de ser feito, seja em sede de ação civil pública, ação popular ou qualquer outra modalidade de instrumento processual, os prazos foram suspensos pelo Conselho Nacional de Justiça.

De toda forma, cabe ao advogado do empreendedor comunicar o Poder Judiciário acerca da dificuldade ou da impossibilidade do adimplemento de obrigações quando os prazos forem retomados, caso a dificuldade ainda persista, evidentemente.

Importante destacar que, no que pertine às condicionantes de licenças ambientais e cláusulas de TCs e de TACs, o período de excepcionalidade deverá ser descontado do prazo geral de cumprimento da obrigação, já que a parte interessada não é responsável pelo desperdício do tempo, cabendo, inclusive, ao órgão ambiental fazer isso de ofício.

É válido ao empreendedor tentar negociar com o Poder Público os detalhes da suspensão ou da modificação de suas obrigações ambientais, dada a excepcionalidade da situação, o que deve ser feito com base em critérios técnicos.

Cumpre observar que nem todos os órgãos ambientais suspenderam os prazos para a interposição de defesas e de recursos administrativos, a exemplo do que aconteceu com o IBAMA, já que muitos deles passaram a facultar o protocolo de documentos via sistema eletrônico interno ou via e-mail.

Provavelmente, o grande legado da COVID-19 à Administração Pública Ambiental seja a intensificação e consolidação do fenômeno de informatização ou a virtualização dos processos administrativos ambientais, a exemplo do que ocorreu com o processo judicial no país, e isso exigirá uma maior organização do órgão ambiental, com a finalidade de garantir o acesso à informação ambiental e ainda para imprimir uma maior velocidade às suas ações.

O fato de os requerimentos e documentos serem protocolados online gerará mais comodidade para os empreendedores e os consultores ambientais e maior transparência para a sociedade civil e os órgãos de controle interno e externo, sendo inúmeras as vantagens: desnecessidade de deslocamento pessoal, dispensa do papel, maior rapidez na comunicação com a parte interessada, mais eficiência na interação com os órgãos intervenientes, melhor gerenciamento de arquivo, melhor utilização do espaço físico, possibilidade de protocolo a qualquer horário, redução do risco de perda de processos e documentos etc.

Cabe destacar a realização de reuniões do COPAM/MG em tempo real pela Internet, o que está acontecendo em outros Estados e Municípios, bem como a regulamentação da audiência pública digital em processos de licenciamento ambiental pelo Estado do Rio de Janeiro por meio da Resolução CONEMA 89/2020, o que gera uma maior possibilidade de acompanhamento, de participação e de transparência das discussões, inclusive no que diz respeito às pessoas que se encontram fisicamente distantes daquele órgão ambiental.

* Este trabalho é dedicado a Leandro Eustáquio de Matos Monteiro e Pedro Campany

 


[1]   STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Aspectos controvertidos do licenciamento ambiental. Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.abrampa.org.br>. Acesso em: 14 mar. 2020; OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 308; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004., p. 486; VAN ACKER, Francisco Thomaz. Licenciamento ambiental. Disponível em: <http://www.ambiente.sp.gov.br/EA/adm/admarqs/Dr.VanAcker.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2020; SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 236; MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 300; ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 102; PRESTES, Vanêsca Buzalato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria ambiental. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, p. 30 e; FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 185-187.

[2]   CARVALHO, Délton Winter de. A natureza jurídica da pandemia da Covid-19 como um desastre biológico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-21/direito-pos-graduacao-natureza-juridica-pandemia-covid-19-desastre-biologico. Acesso em: 26.04.2020.

Autores

  • é advogado, professor da UFPB e da UFPE e doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Autor de "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Fórum, 2019).

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