Opinião

Sistema constitucional para inglês ver?

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1 de maio de 2020, 11h27

O vírus que contamina o Brasil não é novo e muito menos sem cura. O presidente Jair Bolsonaro não inova quando participa de manifestações a favor da ditadura militar. Enquanto a democracia constitucional brasileira preconiza o Estado de Direito, o poder limitado do governante, a separação de poderes, a autonomia dos estados e os direitos fundamentais dos cidadãos, o que de fato se observa no país é uma fraqueza institucional frente às atitudes antidemocráticas de diversos líderes políticos.

Em abril de 2018, Geoffrey Robertson, imponente advogado especializado em Direito Internacional e Direitos Humanos em Londres, palestrava na SOAS (School of Oriental and African Studies) da Universidade de Londres acerca do "caso Lula" — seu aprisionamento e sua busca pela candidatura nas eleições presidenciais brasileiras em 2018. À época, o advogado manejava recurso ao Comitê de Direitos Humanos da ONU e, em sua palestra, argumentava que o Brasil apresentava um déficit quanto à regulação e à aplicação do conceito de rule of law e suas verdadeiras implicações no ambiente político. De forma eloquente, Robertson dizia que o Brasil não compreendia de fato as necessidades de uma democracia constitucional que prezasse pelo Estado de Direito.

A época, certos juristas receberam a argumentação de Robinson de forma crítica. Via-se no seu posicionamento uma postura que beirava à arrogância, distanciada de diversos aspectos jurídicos, políticos, culturais e sociais do Brasil. Ora, democracia e Estado de Direito são princípios que se vinculam às realidades histórico-sociais de cada país, mesmo que apresentem um núcleo de inflexão quanto à sua essência, posicionamento este compartilhado por diversos estudiosos do Direito Comparado [1]. Da mesma forma que o Reino Unido se vê enquanto país democrático, em que pese não possuir uma Constituição escrita e a possibilidade, depois tornada em realidade, de o primeiro-ministro suspender o Parlamento em favor de sua pauta política, o Brasil também apresenta fortes exemplos de respeito ao princípio democrático e do rule of law em seu ordenamento jurídico-político.

Em que pese essa percepção inicial, observa-se hoje uma nova dimensão à critica apresentada pelo advogado inglês. A postura populista e autocrática do presidente Jair Bolsonaro extrapola todas as convenções que dão sentido aos princípios basilares da República brasileira. Em diversas oportunidades, o presidente agiu em total desrespeito à Constituição e seus preceitos, efetivamente ceifando o fundamento legitimador de seu exercício de poder. Isto pois Jair Bolsonaro jamais compreendeu o significado de seu posto, seus deveres, e também os seus limites em uma estrutura republicana e federativa.

Seus ataques à higidez constitucional não são uma novidade no cenário político atual. Em verdade, pronunciamentos a favor do retorno a períodos ditatoriais, o antagonismo a outros poderes constituídos, e até a convocação da sociedade civil para se rebelar contra o Congresso e o STF já são uma constante no período em que Bolsonaro preside o país. A partir da presidência, normalizou-se a postura antidemocrática e inconstitucional que, 30 anos atrás, era rechaçada pelos líderes políticos do país (importante aqui lembrar o famoso discurso de Ulysses Guimarães no momento de promulgação da Constituição: "Temos ódio e nojo à ditadura") [2]

Em seu mais recente ataque, inclusive, Bolsonaro deixou claro o seu posicionamento quanto à Constituição da República de 1988. Ao se defender de críticas por sua participação em um evento que fazia apologia à intervenção militar, o presidente remontou argumentos absolutistas e autocráticos para deslegitimar o texto constitucional e sua autoridade. Bolsonaro afirmou que seu poder não decorre da Constituição, uma vez que não há dissociação entre o Estado Brasil e a pessoa Bolsonaro. Em sua visão deturpada, ele é a Constituição, ele é a personificação do poder.

Esse discurso não é inovador na ciência política e está presente na construção teórica que embasou governos autoritários como o regime nazista na Alemanha e o fascista na Itália. Carl Schmitt, jurista e filósofo político alemão, foi central à legitimação e consolidação do aparato jurídico que fez ruir os pressupostos civilizatórios da Constituição de Weimar na Alemanha durante o entre guerras. Em suas contribuições acadêmicas mais famosas, Schmitt define o alinhamento entre o conceito de nação e a chefia do poder executivo, consagrando a percepção de que o chefe de Estado soberano representa, completamente e por si só, a unidade política que legitima o uso da força frente à distinção entre amigos e inimigos do Estado [3]. No que se refere aos poderes que circunscrevem esse monopólio político, Schmitt é categórico ao afirmar que o soberano é aquele que decide pela exceção, a suspensão, ou não, da ordem jurídica. Ainda, Schmitt define que a condição de legitimidade de partidos políticos distintos e do parlamento é a sua conformação com as vontades do soberano eleito popularmente, uma vez que somente este é encarregado de buscar as soluções necessárias para o bem-estar comum da sociedade civil. Ao fim e ao cabo, ao soberano não cabem limitações.

Dessa forma, Bolsonaro invocar esse léxico e essa argumentação não pode ser visto como algo isolado, principalmente vindo de um governo em que, a menos de seis meses atrás, apresentava pronunciamento ministerial parafraseando discursos de líderes nazistas [4].

Contudo, o que é mais assombroso nesse cenário é o silêncio ensurdecedor das instituições políticas do país, todas vinculadas estritamente à defesa da soberania da Constituição e do Estado de Direito. O Supremo Tribunal Federal até agora pouco fez, o Congresso muito menos. Ao total já somam 17 pedidos de impeachment ao presidente, sendo que apenas um foi arquivado, enquanto os outros aguardam providências do presidente da Câmara. Tirando pronunciamentos individuais e atitudes singulares de alguns atores políticos, pouco se fez para responsabilizar Bolsonaro, destituí-lo de seus poderes e proteger a democracia. Enquanto as atitudes do presidente em apologia à ditadura não são favoráveis, o verdadeiro demonstrativo do enfraquecimento do Estado de Direito é a inação institucional e política frente a estes pronunciamentos. A resposta pouco proativa dos poderes constituídos é o principal fator que ilumina o real estado antidemocrático da política brasileira e delimita nosso conceito de rule of law.

Frente a um populista autocrático que desdenha da ordem constitucional a um certo tempo, não bastam estruturas jurídicas, interpretações republicanas e um extensivo rol de artigos, incisos, cláusulas pétreas, emendas constitucionais e normas federais para conformar uma ordem constitucional democrática. É preciso que todos os atores que preenchem seus postos institucionais atuem em conformidade com esses pressupostos jurídicos basilares.

Com vista a esses fatos, resta claro que o sistema constitucional foi acometido por um vírus debilitante e de difícil tratamento. A separação horizontal de poderes falha em proteger a soberania constitucional e a defesa da democracia brasileira. Uma vez que o presidente atua sem qualquer limite e responsabilidade, observamos que a Constituição já perdeu, seu propósito foi esvaziado por uma série de manifestações individuais, notas de repúdio, medidas não vinculantes e pouco efetivas a nível institucional. O Estado de Direito brasileiro e o sistema constitucional estabelecido em 1988 perderem sua força normativa frente à realidade política que se permitiu instaurar. Não serve, sequer, para inglês ver.

 


[1] Para citar alguns: Mark Tushnet, ‘The Possibilities of Comparative Constitutional Law’ (1999) 108 The Yale Law Journal 1225 <http://www.jstor.org/stable/797327> accessed 13 February 2018; Ran Hirschl, Comparative Matters: The Renaissance of Comparative Constitutional Law (Oxford University Press 2014); Duncan Kennedy, "Political Ideology and Comparative Law" in Mauro Bussani and Ugo Mattei (eds), Cambridge Companion to Comparative Law (Cambridge University Press 2012).

[2] Paula Adamo, "Temos ódio e nojo à ditadura: os 30 anos do discurso histórico que promulgou a Constituição do Brasil". BBC News Brasil (5 October 2018) <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45750071> accessed 21 April 2020.

[3] Carl Schmitt, Constitutional Theory (Jeffrey Seitzer tr, Duke University Press 2008) 75–88; Carl Schmitt, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty (George Schwab tr, University of Chicago Press 2005) 5–15.

[4] Bruno Goés, Helena Aragão and Jussara Soares, "Roberto Alvim copia discurso do nazista Joseph Goebbels e causa onda de indignação". O Globo (Rio de Janeiro, 16 January 2020) <https://oglobo.globo.com/cultura/roberto-alvim-copia-discurso-do-nazista-joseph-goebbels-causa-onda-de-indignacao-24195523> accessed 21 April 2020.

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