Limite penal

"Provas pseudocientíficas": livre apreciação e livre conhecimento da prova

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

1 de maio de 2020, 8h00

Spacca
A inspiração para as presentes anotações veio do belo texto de Rachel Herdy e Juliana Dias, “Por falar em ciência: cartas psicografadas não são meio de prova”, publicado na Coluna Limite Penal, na ConJur de 17.04.20. O tema é instigante e merece reflexões sérias, embora seja curto o espaço disponível. De qualquer modo, vale a tentativa.

Como se sabe, os mais antigos faziam o tema das provas girar em torno dos sinais sensíveis deixados pela infração: corpus delicti. O que vem ao processo, porém, hoje já sob a influência da Filosofia da Linguagem, não são as provas em si, mas sim o que se diz sobre elas: os meios de prova. Por isso adjetiva-se, na classificação quanto aos meios, como testemunhal, pericial ou documental.

Sendo assim, ela “entra” no processo para cumprir um papel referente ao conhecimento (afinal, ainda segundo os antigos, quod non est in actis non est in mundus) e em face dos pedidos das partes, na estrutura acusatória; ou pela ordem do juiz – o senhor do processo –, por ato seu ou após deferir o pedido das partes, na estrutura inquisitória. Há, como se sabe, um rito para a introdução da prova no processo: elas são requeridas, admitidas, produzidas e avaliadas. Por isso, diz-se: momentos da prova.

Produzir a prova, portanto, é fazê-la entrar no processo; introduzi-la. Não é pouco.

Eis por que para isso acontecer é preciso que a prova seja hígida, de tal forma que se possa verificar se o conteúdo dela se sustenta por si, o que as provas “pseudocientíficas” (aquelas que não são resultado de um método científico válido, verificável e plausível), não o fazem. Nem elas e nem as que, mesmo sendo “pseudocientíficas”, alguns têm o interesse de que sejam científicas, por vários motivos dos quais o que se ressalta é se tratar de mera pretensão.

As “provas pseudocientíficas” – e nelas as cartas psicografadas1 –, por exemplo, não podem ser consideradas provas e não devem ser admitidas e produzidas. Isso quer dizer: não devem entrar no processo nem como documento, dado que o conteúdo não se sustenta por si, ou seja, tem-se algo que, de antemão, coloca em risco a “verdade” dele e, portanto, sua aceitação. E como testemunha (do além) muito menos.2 Afinal, é essa prova que, se for produzida, será apreciada/avaliada; e o resultado disso ainda – argumentativamente, logo, como linguagem – exposto na fundamentação.

Não fosse assim e sabendo-se como se avalia a prova produzida, estar-se-ia sempre diante de um incentivo à chicana, ao se ter que permitir à parte contrária a juntada de outra “carta”, de outro “médium”, dizendo o contrário. Estaria ferido de morte o princípio de não-contradição, de Aristóteles, porque pelo menos uma delas, sem dúvida, seria inverídica, sem que se pudesse dizer qual; e não haveria postura lógica a sustentar as duas no mesmo processo. Ademais, não seria factível imaginar – por razões primárias –, o argumentum ad vericundiam, para fazer prevalecer a aparente “maior autoridade” de alguém que se teria expressado “do além”, dado ser falacioso, por si, o próprio argumento. Nem muito menos acareações mediúnicas. Como disse Alexandre Morais da Rosa: reconhecimento pelo “jogo do copo”, em que se faria a linha de suspeitos e o copo apontaria o culpado flanando pela mão invisível! Afinal, grandes homens dizem, também, grandes besteiras.

Ora, no fundo, isso não é prova… porque a alusão não encontra nenhuma relação comprovável e aceitável. Portanto, não se deve admitir, justo para não se produzir e, assim, ter que avaliar. Trata-se, então, de providência salutar de um juiz cioso com a regularidade processual.

E como tal afirmação se adequaria à livre apreciação da prova pelo juiz, contemplada no art. 155, do CPP3?

Para responder seria preciso ir um pouco além e verificar a diferença entre o livre convencimento e a livre apreciação da prova.

Livre convencimento é, para qualquer processualista, convicção racional e, assim, na prática, decisão fundamentada na sua devida – ou mais larga – extensão. Em suma, um princípio que virou regra constitucional (art. 93, IX) e que exige que todas as decisões sejam, efetivamente, fundamentadas como prestações de contas.

Por seu turno, a livre apreciação da prova é outra coisa, embora se possa dizer, quem sabe, que é o caminho para o livre convencimento. E isso se diz porque há, no processo – e para alguns autores – um roteiro a ser seguido, tentando-se mostrar o que pode ser objeto de avaliação, mormente para se tentar deixar fora questões que, quiçá, “não estariam no mundo”; e, assim, não poderiam ser explicadas na fundamentação determinada pelo livre convencimento.

Mas a questão é: como se faz para fazer o juiz verificar a miríade de relações que o fato tem em si (por seus elementos) e, depois, na relação dele com o texto legal aplicável?

Na história, per fas et nefas, já se teve essa apreciação pelo próprio juiz, conforme a cabeça dele, em razão da sua convicção (eis a convicção íntima); mas também para fazer de conta que ele não se metia nisso, transferiu-se tal avaliação para a lei, o que resultou numa chamada “convicção legal”. Dá para imaginar por que nada disso respondia a algo minimamente aceitável. Ora, seria melhor os “dados de Rabelais”, diziam alguns; ou a “aposta na constância causal”, das Ordálias, como diz Cordero. Daí que nas “Luzes” se vem com um medius virtus: a lei regula a matéria (não raro os requisitos estão lá), mas não se tem como substituir o juiz (em face da adequação), no seu modo de ver o mundo e apesar da previsão legal. Em suma, não se pode confiar tão só na visão de mundo dele, juiz, quem sabe no seu “bom senso” e, portanto, na “sua moral”; mas também não se pode fingir que há efetivo “controle” transferindo-se o “valor” para a lei, para o texto legal. Por isso, aposta-se em um controle externo; aquele que se vai dar da forma possível, ou seja, pelo que ele diz na fundamentação. Eis, então, a enorme importância do controle; e o seu devido lugar.

É como se se dissesse: o juiz aprecia a prova por ele mesmo e, apresentando-se como Estado (aqui se entende por que Pontes de Miranda falava em presentar), deve “prestar contas” (eis o to account ou to account for, do Common Law), dizendo o porquê de tudo o que lhe foi pedido pelas partes e daquilo que ele mesmo verificar por conta própria. E assim o faz pelo dever de fundamentar as decisões, que, como visto, é a base do “princípio do livre convencimento”, hoje regra da CR, em seu art. 93, IX.

Em suma, entre “convicção íntima” e “taxatividade ou convicção legal”, o que escolher? Em qual apostar? Como controlar a apreciação/avaliação que se faz?

Ora, a situação não é simples, mas aparentemente não sobrou opção. Pela força da linguagem (por óbvio… pelo nome que se deu e pela época da escolha dele), acabou-se naquilo que se convencionou chamar de accountability, conhecida na Europa pelo medius virtus, dito livre convencimento. Entre “convicção íntima” e “convicção legal”, optou-se por “convicção racional”.

Lenio Luiz Streck, com razão, critica o livre convencimento4, questionando como um magistrado, falando pelo Estado, pode ser “livre” em seu convencimento, marcado pelo sentimento pessoal e/ou subjetivismo. Tem fundamento a crítica se se pensa em uma liberdade que se não pode ter.

Embora o nome seja ruim, pois se presta a confusões, há um contexto histórico que explica a opção feita, mais tarde, pelo termo, pois na estrutura da Inquisição e seu processo, não se garantia nada com a taxatividade – sempre plenamente passível de burla –, coisa que sabiam desde antes, desde as Ordálias: basta ver os resultados que estampam os registros do, por exemplo, Judicium ferri candentis; e aqui em favor dos réus. A taxatividade, neste diapasão, sempre foi a forma inequívoca, no processo inquisitório, de se chegar ao resultado que – antes – havia sido projetado. Para garantir os resultados, porém, com fundamento principalmente em Ulpiano, no Digesto (D. 47.10.15.41: “quaestionem” intellegere debemus tormenta et corporis dolorem ad eruendum veritatem.), (re)criaram a tortura legal… que tinha um ritual – legal – a ser seguido, tudo de modo a se ter essa dupla face: garantia que se poderia superar o sofrimento e se livrar da punição – conforme a lei –; e dar “à lei” a culpa pelo que acontecia de pior, quiçá imediatamente espelhada no inquirido. Tenha-se presente, ademais, que a confissão tinha virado regina probationum, mas os resultados dos processos logo desaconselharam a espontaneidade dela; e a tortura apareceu como solução “lógica”. Mas a taxatividade era apresentada, sempre, como uma garantia. Basta ver a razão do testis unus testis nullus, algo para não ser perdido de vista hoje, em função da delação premiada e a barbárie (ou seria melhor: absurdo democrático?) de se a ter como “verdade absoluta”, camuflada em uma prova de corroboração pífia.

Por outro lado, a convicção íntima remetia aos julgamentos políticos; e àqueles fundados na moral, muito a gosto (naquela época) daqueles que faziam dela a sua base epistêmica e, portanto, desprezavam, de certa forma, a lei escrita. Ali, os princípios sustentavam e a tradição falava forte pelos costumes. Mas na Europa meridional – quem sabe pela tradição romana – isso parecia brincadeira. Afinal, os próprios romanos usavam o jus; mas sempre que a coisa não ia, nunca deixaram de usar, no lugar do Direito, o gládio.

Logo, na tradição legislada que ficou, a questão sempre se colocou e a posição média falou mais alto: não se conseguia tirar do juiz sua irrenunciável capacidade e efetiva atividade de pensar sobre (sempre na apreciação/avaliação) a prova que se permitia na forma da previsão. Optaram pela razão, tendo ele, o juiz, que dizer o Direito fundamentadamente: eis o dicere ius e, portanto, a iuris dictio. Assim, é preciso ter presente que o poder está sempre limitado; ainda que dessa forma, um tanto escorregadia.

Em suma, o juiz aprecia, mas quando disser o Direito sobre o que apreciou, fundamenta, circunstanciadamente, sua decisão, isto é, acerta o caso penal dizendo sobre todos os fundamentos que lhe levaram a tanto, inclusive aqueles que dizem sobre (aludem a) a “verdade” do(s) fato(s).

Isso, então, não é “livre”; e muito menos “ livre convencimento”, senão no sentido de uma “convicção racional”, tudo de modo a poder ser controlado devidamente. Neste sentido, o nome que ficou (livre convencimento) não é mesmo bom, porque se não pode (como quer Lenio Streck) dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Mas também não se pode dizer que não é isso que se diz com ele, ou seja, uma “convicção racional”, embora dela se deva desconfiar – como tudo nesse campo do Eu – porque é do imaginário que se trata, logo, do lugar do engodo, como referiu Lacan; e tudo sem se poder desprezar uma atividade inconsciente, da qual nunca, no tema, cogitou-se. De qualquer forma, os processualistas penais do mundo inteiro não insistiriam no erro se fosse tão grosseiro. O certo – sem dúvida –, é que se não pode dizer que livre convencimento é livre apreciação.

Ao que interessa aqui, no tema da carta psicografada, é que se não tem como fundar as conclusões senão falseando as premissas, se se falar em analítica, por óbvio. Enfim, sabe-se de antemão que o juiz não conseguirá fundamentar nada senão falseando a premissa. Ora, ele não tem a fonte para fundar a premissa e, dela, não consegue deduzir. E se é assim – e é mesmo –, não se deve admitir a prova e deixar ser produzida, justo porque se não sustenta. Ponto.

Por outro lado, trata-se de algo que se não pode fazer com os juízes, que devem respeitar a CR e fundamentar corretamente seu dicere ius. Ora, é para eles, antes de tudo, que vai aparecer o problema – e que grande problema! – na hora de dispor sobre seus elementos de convicção. Sem base, aponta-se para a retórica fácil e insustentável. No júri, porém, tem-se uma “ponte”; e as consequências desastrosas, na falta de fundamentação5, podem aparecer para a acusação ou para a defesa. É sintomático, então, o motivo pelo qual as referidas cartas psicografadas aparecem tanto nos processos em que o caso penal diz com os crimes dolosos contra a vida; e maiores explicações seriam desnecessárias.

Tudo isso vale para a prova “pseudocientífica”, mas seria o mesmo se a prova fosse aparentemente “científica”, como é o caso das combinações físico-químicas da narcoanálise, por exemplo? Já não é mais do “além” que viria a “verdade” e sim do próprio giro da ciência. O resultado obtido com a aplicação do soro da verdade deveria receber tratamento igual ao da carta psicografada? E o detector de mentiras? Gente como Franco Cordero tem muito a dizer sobre o assunto, mas é para outra oportunidade.

Agradeço a colaboração da Profª Ana Maria Lumi Kamimura Murata.


1 DIAS, Juliana Melo; HERDY, Rachel. Por falar em ciência: cartas psicografadas não são meio de prova. CONJUR, limite penal. Publicado em: 17/04/2020: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-17/limite-penal-falar-ciencia-cartas-psicografadas-nao-sao-meio-prova?fbclid=IwAR0t_C_CnRZ4XsLH4Qyt2_KygMzk0whKn8lMkHrEOqjEot7PNRdpKUPbYQc>.

2 As autoras precitadas (Rachel Herdy e Juliana Melo Dias) estão certas ao deixar claro que se não trata de um problema religioso e sim científico, com devido respeito a todos que merecem: “Quando levantamos essas críticas, não é nossa intenção atacar o espiritismo ou ofender seus adeptos. Nosso objetivo é estabelecer limites quanto ao que pode ser aceito como ciência e, sobretudo, como meio de prova em um processo judicial”.

3 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

4 STRECK, Lenio Luiz. O novo Código de Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas: o fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. Revista de informação legislativa, ano 52, n. 206, abr./jun. 2015, pp. 33-51. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/52/206/ril_v52_n206_p33.pdf>. Acesso em: 20/04/2020.

V. também: STRECK, Lenio Luiz. Contra claro texto do CPC, STJ reafirma o livre convencimento. CONJUR, Senso incomum. 26/09/2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-26/senso-incomum-claro-texto-cpc-stj-reafirma-livre-convencimento>.

5 Sobre o tema da fundamentação dos veredictos no Júri, v. NARDELLI, Marcella Alves Mascarenhas. A prova no tribunal do júri: uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, 588p.

Autores

  • é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.

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