Paradoxo da Corte

Honorários no incidente de desconsideração num recente precedente

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

30 de junho de 2020, 8h00

O vigente Código de Processo Civil, seguindo a tradição da legislação processual revogada, adotou, no caput do artigo 85, o denominado princípio da sucumbência, ao dispor que: “A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”. Justifica-se a imposição de tal obrigação, de natureza estritamente processual, como já proclamava Chiovenda, no fato objetivo da derrota.

Esta premissa, outrossim, decorre, no mais das vezes, da incidência do princípio da causalidade, entendendo-se que os honorários advocatícios devem ser suportados pelo litigante que, por ato comissivo ou omissivo, ensejou (deu causa) o ajuizamento da demanda. Assim, resolve-se essa equação sem grande esforço: se o autor venceu, o réu deve ser condenado na sucumbência (despesas processuais + verba honorária); se o autor perdeu, fica ele então obrigado a pagar as despesas e honorários do advogado do réu vencedor.

Todavia, nem sempre esse fenômeno se verifica de forma simétrica. Há situações excepcionais, nas quais essa regra se inverte, como se verifica, por exemplo, na ausência superveniente do interesse de agir, implicativa da extinção do processo, por perda do objeto, sem exame do mérito. Nessa hipótese, a teor do parágrafo 11 do artigo 85 do diploma processual, “os honorários serão devidos por quem deu causa ao processo”. É dizer: se o réu pagou o quanto lhe era cobrado na via jurisdicional, a despeito da extinção anômala do processo, as verbas sucumbenciais serão carreadas ao demandado.

Desse modo, resulta bem claro que os chamados princípios da sucumbência e da causalidade devem ser aplicados, à luz do caso concreto, de forma lógica e coordenada.

Observo, no entanto, que, de fato, dada a constelação de hipóteses emergentes da praxe forense, algumas delas propiciam maior dificuldade no que concerne à distribuição dos ônus da sucumbência.  

Ressalte-se, a propósito, que, recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n. 1.845.536-SC, foi instada a examinar questão polêmica, atinente ao cabimento de condenação em honorários advocatícios, no âmbito do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, instaurado com fundamento no artigo 133 e seguintes do Código de Processo Civil. 

Importa registrar que, embora o recurso especial tenha sido provido por unanimidade, a turma julgadora divergiu quanto ao fundamento que alicerçou o respectivo acórdão.

Tratava-se de situação na qual o tribunal de original impusera ao exequente condenação em honorários advocatícios, ao rejeitar o pedido de desconsideração por ele formulado. A parte vencida interpôs então recurso especial pugnando pelo descabimento de tal condenação, uma vez que o referido incidente: a) fora extinto por decisão interlocutória, não havendo previsão no artigo 85, parágrafo 1º, para imposição de sucumbência; e, ainda, b) por que a sociedade demandada é que teria dado causa à instauração do incidente, visto que extinta de forma irregular.

Assim, infere-se que a ministra Nancy Andrighi, então relatora, houve por bem prover o recurso especial, admitindo o argumento de que, realmente, pelo princípio da causalidade, a empresa executada é que dera causa ao apontado incidente, textual:

“ (…) Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o princípio da sucumbência deve ser articulado com o princípio da causalidade, o qual, cumprindo a função de justiça distributiva, orienta que não é justo que aquele para quem o processo foi necessário tenha que arcar com o correspondente encargo econômico.

Na hipótese concreta, embora tenha logrado êxito pela  improcedência do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, foi a recorrida quem deu causa à sua instauração, pois, conforme se infere dos autos, a circunstância que motivou o pedido do presente incidente foi o irregular encerramento da pessoa jurídica da qual era sócia, resultado de sua desídia em promover o competente registro, que seria providência que poderia, em tese, evitar a indesejada tentativa de levantamento do véu da separação patrimonial”.

Abrindo divergência, o ministro Marco Aurélio Bellizze, secundado pelos demais integrantes da referida 3ª Turma, destacou que, na causa em julgamento, a pretensão de condenação em honorários é "juridicamente impossível", lastreando-se na seguinte motivação:

“(…) No caso concreto, concluiu a relatora que seria ‘teratológico, absurdo, aberrante impor ao credor que sequer tem atendido seu crédito mais uma penalidade em decorrência do exercício de seu direito de persegui-lo’, acrescentando que o encerramento irregular da personalidade jurídica é resultado da desídia dos sócios, os quais, assim, deram causa ao pedido incidental de desconsideração.

Com as mais respeitosas vênias da relatora Min. Nancy Andrighi e de seu laborioso voto, apesar de acompanhá-lo na conclusão, divirjo de seus fundamentos.  

De fato, a jurisprudência desta Corte Superior, por reiteradas vezes, harmoniza os princípios da sucumbência e da causalidade, a fim de distribuir, com justiça, os ônus sucumbenciais, especialmente no que toca aos honorários advocatícios. Contudo, na hipótese dos autos, é dispensável a perquirição da causalidade e da sucumbência, porquanto a decisão de extinção do incidente não está presente no rol do artigo 85, caput e parágrafo 1º, do CPC/2015.

Nos termos do novo regramento emprestado aos honorários advocatícios pelo atual Código de Processo Civil, verifica-se que, em regra, a condenação nos ônus de sucumbência é atrelada às decisões que tenham natureza jurídica de sentença. Excepcionalmente, estende-se essa condenação àquelas decisões previstas de forma expressa no parágrafo 1º do referido dispositivo legal, in verbis: ‘São devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente’.

No caso concreto, está-se diante de uma decisão que indeferiu o pedido incidente de desconsideração da personalidade jurídica, à qual o legislador atribuiu de forma expressa a natureza de decisão interlocutória, nos termos do artigo 136 do CPC/2015 (sem destaque no original):Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

Desse modo, afastada, de forma expressa, a natureza sentencial e não ressalvada a possibilidade de condenação em honorários advocatícios, essa pretensão revela-se juridicamente impossível.

Outrossim, ainda que a título de obiter dictum também não é razoável se atribuir ao sócio a responsabilidade pela promoção de incidentes de desconsideração de personalidade jurídica. Esse incidente é medida excepcional reservado apenas às hipóteses em que haja desvio de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50 do CC/2002). Desse modo, a movimentação da máquina judiciária para promover o incidente manifestamente incabível, porque fundado exclusivamente em argumento reiteradamente rechaçado por esta Corte Superior e não previsto nas hipóteses legais autorizadoras, não deveria ser imputada à causa do sócio. Aliás, o legislador também foi taxativo em impor ao requerente a demonstração dos requisitos legais para o cabimento do incidente…

No entanto, da forma como proposto pelo voto da relatora, pode-se concluir que o sócio, ainda que não seja alcançado pela desconsideração, em casos de dissolução irregular, será sempre o ‘causador’ do incidente.

Ademais, no caso dos autos, a sócia recorrida era menor de idade à época da constituição da dívida e sócia minoritária, figurando no quadro societário com apenas 1% das cotas sociais. Desse modo, não parece automática a imputação da causa do incidente ao sócio que se pretende trazer para o processo em curso.

Por todos esses fundamentos, rogando, mais uma vez, as mais respeitosas vênias à relatora Min. Nancy Andrighi, dou provimento ao recurso especial, para restabelecer a decisão de primeiro grau (e-STJ, fls. 123-130), reconhecendo o não cabimento dos honorários advocatícios em decisões interlocutórias que resolvem incidente de desconsideração de personalidade jurídica…”.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reformou decisão de segundo grau, a qual, com base no princípio da causalidade, ex vi do disposto no aludido artigo 85, parágrafo 1º, havia imposto ao autor do pedido de desconsideração jurídica o pagamento de honorários da parte vencedora, pois esta teve que contratar advogado e apresentar defesa.

A despeito da habitual profundidade do exame da questão vertente no mencionado acórdão, permito-me aduzir que o fundamento fulcral do voto exarado pela ministra Nancy Andrighi é o de que seria injusto ao credor (vencido no incidente) ter de suportar o pagamento das verbas sucumbenciais. Não obstante, deixou ela de considerar que a sócia requerida teve que constituir advogado para se defender e acabou sagrando-se vencedora. É fato que o credor não deu causa à execução, mas certamente foi ele o exclusivo responsável (causador) pela instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Cumpre enfatizar, por outro lado, que o primordial fundamento do voto vencedor do ministro Marco Aurélio Bellizze é o de que, como explicitamente asseverado, incidente processual resolvido por ato decisório de natureza interlocutória, não comporta condenação em honorários advocatícios.

Lembro, no entanto, que a orientação pretoriana do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que não cabem honorários em incidentes, foi construída sob a égide da revogada legislação processual, porquanto o velho artigo 20, parágrafo 1º, ao contemplar os incidentes e os recursos, referia-se apenas a “despesas”.

O Código de Processo Civil em vigor, todavia, não reproduziu regra análoga. A rigor, há vários incidentes nos quais o próprio Superior Tribunal de Justiça considera possível a condenação em honorários de sucumbência, notadamente no âmbito da impugnação ao cumprimento de sentença. Além disso, a tese de que incidente julgado por decisão interlocutória não comporta condenação em honorários sucumbenciais, deixa de considerar que: (i) o termo "sentença" no artigo 85, caput, é empregado em acepção genérica, como sinônimo de decisão, devendo ser interpretado de forma extensiva, pois, do contrário, honorários não poderiam ser fixados em acórdão; e (ii) há hipóteses nas quais o próprio diploma processual prevê a imposição de honorários por decisão interlocutória, como, por exemplo, aquela que exclui um litisconsorte do polo passivo por ilegitimidade ad causam (artigo 338, parágrafo único – STJ, 3ª Turma, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 1.321.196-SP, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva); a que reconhece a inexistência de pagamento do título judicial (artigo 523, parágrafo 1º – STJ, 3ª Turma, Recurso Especial n. 1.701.824-RJ,  rel. min. Nancy Andrighi); a que julga habilitação de crédito (STJ, 3ª Turma, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 1.492.727-MT, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino).

Aduza-se que, em todas estas situações, o julgamento dos respectivos incidentes não implica extinção do processo principal!

Longe de tecer qualquer reparo ao aresto aqui examinado, a minha intenção, a um só tempo, é a de suscitar o debate sobre importante problema jurídico, bem como  evidenciar que, no campo fértil do direito, determinadas questões oferecem múltiplas vertentes hermenêuticas, que constituem opções válidas para fundamentar os pronunciamentos judiciais.

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