Opinião

Bitcoin não é moeda, nem divisa

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Yuri Rangel

    é advogado criminalista especialista em Direito Penal Econômico pela USP pós-graduando em Ciências Criminais pela USP e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

30 de junho de 2020, 13h39

A ligação entre moeda e Direito Penal existe há muitos anos. E, por óbvio, não haveria como exigir que tal ligação, presente ao longo dos anos no curso da história, não estivesse, também, presente no debate envolvendo as criptomoedas. Sobretudo quando, malgrado seja absolutamente possível elencar motivos aptos a atribuir, aos ativos criptografados, o posto de playground para a consumação de diversos crimes econômicos, algumas autoridades públicas — a todo custo — tentam, partindo de infundadas e superficiais premissas, criminalizar a sua mera posse e, por consequência, a sua simples movimentação.

Ao passo que, em épocas outras, seria impensável tratar sobre qualquer variável que, a níveis monetários, se afastasse dos padrões convencionais, hoje, as moedas virtuais, modernas e descentralizadas por essência, são, irrefutavelmente, parte do cotidiano das pessoas que estão inseridas num contexto de reinvenção obrigatória. À guisa do que, brilhantemente, expõe Renato de Mello Jorge Silveira, as criptomoedas, em um brevíssimo espaço de tempo, deixaram de ser algo fora da realidade e, mesmo com severas rejeições iniciais, passaram a se firmar como um negócio e investimento de interesse público [1].

O bitcoin, trilhando — a passos largos — caminho diametralmente oposto ao coadjuvantismo, lidera o movimento de atrair às criptomoedas olhares curiosos e, ao mesmo tempo, sedentos para entender esse novo cenário que, hoje, se apresenta. Presente em sete de cada dez movimentações financeiras relacionadas ao criptoativos e dominando, aproximadamente, 70% do setor ao qual se estabelece [2], seu multifacetado funcional oferece incontáveis possibilidades aos seus possuidores: ela pode ser utilizada como meio de troca (intermédio entre as mercadorias), como reserva de valor (forma de medir a riqueza) ou, apesar de episódico, como unidade de conta (instrumento pelo qual as mercadorias são cotadas). A tendência que se impõe é a de que, cada vez mais, as criptomoedas serão a forma escolhida para, por exemplo, pagar a conta de um café expresso pedido, após o expediente de trabalho, numa livraria de um shopping center.

Sucede que alguns mitos, por desinformação ou má-fé, em torno da sua natureza jurídica e econômica, circulam. O bitcoin, desafiando consolidadas instituições, não está atrelado às economias estatais, nem é emitido por seus órgãos competentes. Realidade esta que, para a perplexidade de alguns, revela uma imprescindível informação: as moedas digitais, embora demonstrados inúmeros aspectos que poderiam, em princípio, caracterizá-las como tal, não são moedas. Não por outra razão, recomenda-se emoldurá-las sob a égide do termo "criptoativos", sendo esta, por coerência, a terminologia mais adequada.

Torna-se cristalino, portanto, o entendimento de que, mesmo não sendo — ao menos no sentido formal — moeda, o bitcoin enseja preocupações econômicas e criminais como se moeda fosse. Ocorre que, muito embora seja ele a materialização de um louvável — e sofisticado — progresso no âmbito da tecnologia da informação, nem só de fatores positivos tal ativo vive. Entre as suas principais deficiências, estão: a volatilidade, a insegurança digital, a ainda baixa aceitação da moeda e, por último, o propenso mau uso para fins criminosos. Não por outra razão, sua plural incidência exerce — cada vez mais — preponderante influência no Direito Penal Econômico, gerando repercussões que transcendem os espaços acadêmicos e de atuação do sistema de Justiça criminal.

Nessa senda, as criptomoedas solidificam-se, para alguns, como sendo potenciais instrumentos para a concretização de três figuras delitivas: a evasão de divisas, a sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro. Destaca-se, como foco do que pretende alertar este artigo, o primeiro deles, que carrega, em sua redação, a trifurcada tônica de: 1) efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país; 2) promover, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior; e 3) manter, no exterior, depósitos não declarados à repartição federal competente. Impende rascunhar, de antemão, que não se pode ou, ao menos, não se deveria escolher a incidência, ou não, de tipos penais como se numa prateleira de supermercado estivessem [3]. A moldura, assim sendo, há de ser fixa e, portanto, hermética: ou se encaixa perfeitamente ou, simplesmente, não há, por coerência, serventia.

Nas lúcidas interpretações de José Carlos Tórtima, enquanto as moedas tendo suas emissões catalogadas como apanágio dos governos centrais dos países que as emitem são caracterizadas pelo seu curso forçado nos respectivos estados nacionais de origem, as divisas são, em síntese, os títulos ou ativos financeiros, conversíveis em moedas estrangeiras e, sobretudo, os próprios estoques de moedas transmutáveis, disponíveis no país. Consoante seu escorreito entendimento, para serem equiparados ao conceito de divisa, tais títulos ou estoques de moedas devem não apenas estar em poder de residentes no país, como também devem estar contabilizados no balanço de pagamentos, sob controle do Banco Central do Brasil [4].

Por esse ângulo, tratando, especificamente, do crime de evasão de divisas, tipificado no artigo 22 da Lei 7.492/96, uma inequívoca compreensão se extrai: a de que embora existam frágeis e insubsistentes argumentos que tentam fornecer entendimento contrário, o bitcoin, assim como qualquer outro criptoativo, por não ser moeda e, portanto, não ter curso forçado, é um ativo ainda não reconhecido pelo Banco Central do Brasil [5] e, enquanto continuar não sendo, impensável é a equiparação ao conceito de divisa. De igual modo, dantesca, também, seria a adequação ao conceito de depósito, pelo simples fato de as operações não estarem vinculadas nem às instituições financeiras, nem tampouco aos entes do sistema financeiro nacional.

Fato é, nesse diapasão, que não há o menor pudor científico, por parte das autoridades estatais, em reconhecer que as criptomoedas e, sobretudo, o bitcoin são uma "pedra no sapato" no seu controle regulatório. Nesse novo cenário evidenciado pelas moedas criptografadas, atuando numa suposta proteção à lisura das movimentações financeiras, patente está um inegável esforço público, a exemplo da Instrução Normativa nº 1.888 da Receita Federal [6], para que inúmeras atitudes econômicas habituais sejam, com o escopo de prevenção criminal, excessivamente regulamentadas. Num claro viés de criminalização da simples movimentação dos criptoativos, o órgão fiscal brasileiro parte de uma — excrescente e absurda — premissa de que quem executa transações financeiras por meio do bitcoin quer, numa espécie de camuflagem, escamotear algum grau de ilicitude.

É o que, também, compreendem as propostas legislativas nas suas atécnicas — e frustradas — tentativas iniciais de regulação específica no Brasil. Por ignorarem a complexidade do universo monetário virtual e, até mesmo, noções básicas acerca do tema, os projetos em andamento são absolutamente simbólicos. Sobre estes, portanto, há dois tipos: os que já foram arquivados e os que, mesmo se aprovados forem, não terão qualquer efetividade prática. Temos, portanto, ao menos aqui, no Brasil, um problema penal longe de ser solucionado.

A impossibilidade de constrição judicial direcionada ao bitcoin, o veto na cobrança e recebimento de emolumentos em moedas virtuais e a proibição de doações eleitorais feitas por criptoativos são, inequivocamente, fatores que consubstanciam a atuação dos poderes públicos no sentido de tentar — a todo custo — criminalizar, por si só, as criptomoedas, reforçando um grande preconceito que, hoje, a estas é direcionado. As preocupações existentes no sentido de que a realidade trazida pelo bitcoin possa ser, em algum grau, mais permissiva à incidência de crimes econômicos, de fato, procedem. Mas as iniciativas públicas que delas decorrem são, com as devidas e necessárias licenças, absolutamente excrescentes.

Apesar de ser um debate — a nível nacional — ainda embrionário, prescinde de maior profundidade a noção de que, para problemas relevantes, são necessárias respostas compatíveis. O anonimato, a difícil rastreabilidade e, ainda, a pressão do sistema financeiro nacional corroboram para a questionável incidência de respostas penais que, pela complexidade do universo virtual, se mostram afobadas. Diante desse sensível panorama, uma inescapável reflexão se extrai: a de que as moedas virtuais são uma realidade que, pelas razões apresentadas, chegou para ficar. Fugir desse entendimento, utilizando a aplicação das leis penais como freio à modernidade e como óbice a tudo que é desconhecido, é fechar os olhos às transformações que, ao menos, merecem ser abalizadas, discutidas e razoavelmente enfrentadas.

Em suma, e por zelo à coerência, frisa-se: o bitcoin não é moeda, não é divisa e, embora possa ser desviado para a consumação de delitos, crime, em si, não é. A sua utilização é lícita e, sobre isso, não existem dúvidas. Em verdade, é repugnante toda e qualquer postura de, justificada por uma ingênua — e, ao mesmo tempo, dissimulada — proteção à lisura das operações econômicas, criminalizar as criptomoedas, os que delas se utilizam e, ainda, os que delas tem a simples posse. A nova — e desafiadora — realidade jurídica que, por meio do bitcoin, nos foi imposta pode ser encarada de diversas formas, exceto uma: aquela que, flertando com o que há de mais excrescente, tenta fixar às criptomoedas a insólita etiquetagem de proibição total.

 

[1] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. "Criptocrime: considerações penais econômicas sobre criptomoedas e criptoativos". Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, vol. 1/2020, Jan – Mar. São Paulo: RT, 2020, p. 1.

[2] Dados disponíveis no site Coin Market Cap. Disponível em <https://coinmarketcap.com/>. Acesso em 27/5/2020.

[3] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Edicamp, 2002, passim.

[4] TÓRTIMA, José Carlos; TÓRTIMA, Fernanda Lara. Evasão de divisas, 3ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 22-23.

[5] NUNES, Leandro Bastos. Evasão de divisas e bitcoin à luz da jurisprudência do STJ. Conteúdo Jurídico. Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54445/evaso-de-divisas-e-bitcoin-luz-da-jurisprudncia-dostj>. Acesso em 26/6/2020.

[6] Instrução Normativa nº 1.888 da Receita Federal, publicada no dia 7 de maio de 2019: Institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).

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    é advogado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das comissões de Reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pelo Senado Federal.

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    é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela USP, pós-graduando em Ciências Criminais pela USP e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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