Opinião

Mensalidades escolares e proporcionalidade. Qual proporcionalidade?

Autor

  • Demétrio Beck da Silva Giannakos

    é advogado professor da Faculdade de Direito da Uniritter mestre e doutorando em Direito pela Unisinos sócio do escritório Giannakos Advogados Associados membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB-RS e associado do Ibradim e da Agadie.

29 de junho de 2020, 11h15

Spacca
São muitos os casos julgados diariamente que visam a simples "criação judicial do Direito". Nestes casos, existe um afastamento por parte do juízo dos pedidos formulados pelas partes e da legislação vigente.

Diz-se que a crise de legitimidade da legislação (Estado-Legislação) foi "superada" pelo Estado-Jurisdição. Assim, estaria (está?) aberto o caminho para o ativismo judicial, como se judicialização e ativismo fossem a mesma coisa. Aliás, por conta dessa não-distinção o percentual de decisões ativistas aumenta.

No Brasil, vários autores procuraram identificar esse fenômeno do surgimento dessa "virada em direção ao judiciário". O perigo desse "processo" começou a ser denunciado em 1921, por Édouart Lambert, em França. A coisa é, pois, antiga.

Ocorre que, ao lado do diagnóstico, vieram os equívocos, como o de que os princípios trariam uma abertura interpretativa, a ponto de os adeptos das teorias da argumentação afirmarem que "conflito ou colisão de regras se resolve no tudo ou nada", sendo que "a colisão de princípios seria solvida na ponderação", o que vitaminou sobremodo o "Estado Jurisdição". Despiciendo relatar aqui a problemática decorrente desse tipo de análise.

Sobre o papel interpretativo dos princípios, faz-se menção direta a artigo recente publicado na ConJur, cujo título é: O lidador do direito conhece das coisas o que ele mesmo põe nelas!1.

Muitos autores — embora a partir de outras matrizes – também já identificaram os problemas do ativismo judicial/arbitrariedade, como Humberto Ávila, ao dispor da seguinte forma: "(…) resta claro que o princípio da separação dos Poderes é violado quando o julgador, ainda que munido das melhores intenções, desconsidera os significados mínimos dos dispositivos introduzidos pelo legislador, o modo como este normatizou a matéria e os efeitos que sua interpretação irá provocar nos bens jurídicos protegidos pelos direitos fundamentais do indivíduo. É que, procedendo dessa forma, termina o julgador por substituir o legislador, na medida em que cria, ele próprio, normas gerais e abstratas (…)"2.

Ou seja, é fácil verificar de que forma a doutrina induz o juiz a erro, ao incentivá-lo a decidir de forma discricionária (qual seria o limite do poder discricionário?). No momento em que a doutrina e a jurisprudência afirmam que princípios são indeterminados (abertos) "por natureza" (sic), há que se registrar — e isso é possível demonstrar na teoria do Direito — que nisso há um equívoco, porque sustentada na tese de que princípios seriam valores.3

A confusão conceitual entre princípios e valores tem como consequência a (pseudo) aplicação de princípios separados de sua facticidade, de sua problemática original, conduzindo a decisão ao subjetivismo e/ou à discricionariedade judicial4.

"Valores": esse conceito diz respeito ao que está fora do sujeito e não ao que está, propriamente ou predominantemente dentro dele (seus pressupostos morais, sua visão particular de mundo etc.). Os princípios são a articulação institucional que atribui hierarquicamente a densidade e o suporte, jurídico e objetivo, objetivamente jurídico e juridicamente objetivo, à compreensão do intérprete. Esse é o ponto5.

Ainda, os princípios — concebidos-utilizados corretamente — possibilitam um controle intersubjetivo de modo a possibilitar um fechamento interpretativo a partir da vinculação da fundamentação da decisão com a coerência do sistema democrático. Eles (princípios) independem da arbitrariedade da autoridade. Eles chegam antes. Princípios são padrões. São normas. Logo, se princípios fossem valores não seriam normas6.

Vejamos um caso concreto do uso sem medidas de um “princípio”. No último dia 27/05/2020, foi proferida decisão judicial na Comarca de Belo Horizonte determinado, em caráter de tutela de urgência (art. 300 do CPC), a redução de 25% do valor de mensalidade escolar7.

Na decisão judicial, o juízo, ao fundamentar a sua decisão, dispôs o seguinte: "Por fim, mas não menos importante, cabe fixar o percentual de redução do valor das mensalidades, atento aos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade. Assim, tendo por norte o objetivo já manifestado — o restabelecimento e a preservação do equilíbrio contratual — tenho que se mostra ponderado o arbitramento da redução em 25% (vinte e cinco por cento) do valor das mensalidades inicialmente ajustado, percentual este a ser aplicado às prestações vincendas, enquanto não houver o retorno das aulas presenciais"8.

Em petição inicial, a parte autora havia requerido a redução de 50% e, alternativamente, a redução de 30% da mensalidade. No entanto, a redução foi de 25%.

Na referida decisão, é preciso verificar o seguinte: havendo a produção de prova pertinente pela parte autora que justifique a redução, chama atenção a utilização, como fundamento, dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade. Ocorre que, embora tenham o nome de "princípios", os indicadores epistêmicos de uma adequada teoria do direito indicam que "razoabilidade" e "proporcionalidade" foram utilizados na decisão como meros argumentos retóricos. Nada auxiliaram na decisão. Apenas serviram como justificação a posteriori. Em lugar deles poderia ter utilizado qualquer outro vetor. Assim, por qual motivo o juízo não concedeu o pedido alternativo de 30%? O que justifica a decisão de reduzir 25% e não 30%? O que é razoável? E o que é proporcional? Em que sentido foi usada a proporcionalidade? Foi a de Alexy?

Tais situações já foram denunciadas pelos autores em recente artigo publicado, também na ConJur, cujo título é Pode o juiz arbitrar redução de aluguel dispensando prova?9.

Dito de outro modo, não se está aqui criticando o percentual arbitrado pelo juízo propriamente dito. O ponto é a ausência de fundamentação que justifique o arbitramento realizado pelo próprio juízo, sem acolher o percentual requerido pela parte autora.

Portanto, o que se verifica é a contínua ausência de fundamentação jurídica que justifique os parâmetros a serem fixados pelo juiz. E o que é pior, utiliza-se de princípios — que tudo indica não terem normatividade — para fins equivocados.

Por isso o papel crucial da doutrina de doutrinar.


1 https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/senso-incomum-lidador-direito-conhece-coisas-ele-mesmo-poe-nelas

2 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 26.

3 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 298.

4 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 439.

5 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 441.

6 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p.436/ 440.

7 https://www.conjur.com.br/2020-jun-06/causa-coronavirus-juiz-reduz-mensalidade-escolar-25

8 https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/causa-coronavirus-juiza-mg-reduz-1.pdf

9 https://www.conjur.com.br/2020-mai-15/streck-giannakos-juiz-dispensar-prova-reduzir-aluguel

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